Às vésperas do lançamento de Um Futuro para a Amazônia, a geógrafa e professora emérita da UFRJ, autora de um dos mais importantes conjuntos de estudos sobre a região, adianta análises e propostas de seu próximo livro
PÁGINA 22: Diante das mudanças climáticas, da perspectiva de agravamento da crise ambiental e da pressão demográfica, as próximas décadas deverão ser decisivas para o futuro da Amazônia. Como a senhora gostaria que esse futuro se encaminhasse?
Berta Becker: Para começar, a Amazônia hoje deve ser pensada como Amazônia sul-americana. Nesse contexto da globalização, das infovias, dos projetos que já estão em andamento, temos que pensar nesses termos. Já temos muita coisa em curso nesse sentido. Já existe a IIRSA, que é a Iniciativa para a Integração da Infra-Estrutura Regional Sul-Americana, corredores bioceânicos, hidrelétricas… enfim, vários projetos e obras de infra-estrutura. Tem dois projetos, e a perspectiva de um terceiro, para a gestão de toda a Bacia do Rio Amazonas desde as nascentes. Nas proximidades da fronteira já existem muitos processos, que estão em andamento similares. O mundo da globalização ficou muito mais ligado, e as escalas das ações ambientais estão aumentando. A Amazônia deve ser um lugar de vida. Não só da vida biológica, da natureza, mas um lugar de vida para as populações que lá estão e estarão. E, para que seja assim, será preciso fazer uma revolução científico-tecnológica na região. Enquanto a floresta não tiver valor por ela mesma, valor econômico, ela não compete com as commodities. A coisa mais importante, de cara, é parar o desmatamento. Seja por causa do aquecimento global, seja para manter a vida. Tem que romper, parar, estancar, barrar esse desmatamento, e só vai barrar se a floresta puder competir. Vivemos num sistema capitalista. Enquanto ela não competir, vai ser derrubada.
22: Como se faz essa revolução científica?
BB: Para começar, impõe-se acabar com a falsa dicotomia entre conservação e desenvolvimento. Essa é uma ideologia tremendamente maléfica, no meu entender. A revolução científico-tecnológica precisa exatamente descobrir maneiras de utilizar a natureza, os recursos da natureza, sem destruílos. Dou muita ênfase ao uso dos produtos da biodiversidade. Tem gente que diz que isso não adianta, que a diversidade amazônica é diversa demais. Mas não é preciso usar tudo ao mesmo tempo. À medida que a pesquisa for avançando, podem-se estabelecer cadeias produtivas que venham desde o “âmago” da floresta, e venham progressivamente agregando valor até chegar aos centros de biotecnologia e às empresas — e já existe, em Manaus e Belém, uma boa quantidade de empresas que poderiam participar desse processo mais intensamente. Pequenas e médias empresas que usam produtos da biodiversidade para fazer óleos essenciais, fitofármacos, principalmente cosméticos, e os fitoterápicos, que são mais populares, ainda não são devidamente industrializados. Há ainda um campo imenso no mundo, que é a chamada nutricêutica. O açaí, o guaraná, por exemplo, não são remédios, mas produzem bem-estar. O mercado potencial para esses produtos é enorme. Isso cresceu no Japão, na Europa, nos EUA, e nós não estamos aproveitando.
22: Essas indústrias estabelecidas em torno das duas grandes capitais da Amazônia já se preocupam com sustentabilidade? Os produtos têm algum tipo de certificação?
BB: Ainda não. Elas teriam de ter incentivo e apoio para investir nisso. Se há alguma coisa que deveria ser apoiada na Amazônia, é esse tipo de iniciativa, de cadeia produtiva moderna, no melhor sentido da palavra. Por enquanto predominam relações comerciais parecidas com as da época do Brasil colônia: ainda há comunidades Que recebem quinquilharias — tipo espelhinho — como pagamento pelos produtos da biodiversidade. A revolução que eu proponho não é unilateral, positivista. Tem de envolver também muita pesquisa em áreas como antropologia e sociologia, inclusive para ajudar a organizar as comunidades e ajustar as cadeias prospectivas e produtivas conforme as características e necessidades dessas populações. Uma das coisas mais terríveis para a Amazônia é que ela não tem cadeias produtivas próprias. Como é que se faz um crescimento econômico e um desenvolvimento sem cadeias produtivas? O que tem de cadeia produtiva efetiva na região são pedaços de cadeias originárias do cerrado, da soja, do boi. Isso não dá bem-estar nem renda suficiente para a região. Pode dar para alguns, mas não gera organização e estrutura próprias.
22: O que mais mudou na Amazônia nas últimas décadas?
BB: Uma das coisas que mais mudaram foi o povo. A população da Amazônia, e isso é uma coisa que poucas pessoas entendem, não é mais a mesma de 1970. A população passou por vários modelos, uns violentos, outros paradões. Expansão da fronteira agrícola, projeto de integração nacional etc. Mudanças violentas, de estradas, de gente do Sul, extorsão de posseiro, índio brigando com posseiro, fazendeiro com posseiro… A população virou peão, era desterritorializada continuamente, ia para cá, ia para lá. Abriam a mata aqui, vinha um fazendeiro, os grandes grupos, que tiravam a turma e ela ia abrir mata em outro lugar. Isso foi uma mobilidade imensa, acompanhada de intenso crescimento urbano. A Amazônia teve as maiores taxas de urbanização do país nas últimas três décadas do século passado. Não se passa por um processo assim incólume, sem um aprendizado político e social. Ela aprendeu a ter muito mais informação e a fazer muito mais perguntas. Ao longo da Transamazônica, ou em outras áreas, como Santarém, faço pesquisa de campo e converso com o povo. E eles falam coisas do arco-da-velha. Por exemplo: “Temos que ter lazer”. Dizem: “Temos que ter pesquisa quando quiserem estabelecer uma área protegida”. Quando que iríamos lá, 30 anos atrás, e ouviríamos alguém dizer uma coisa dessas?
22: O que mais a população pede? O que é mais importante para eles?
BB: Quando eu pergunto do que eles mais precisam, ouço assim: “A presença do governo, do Estado”. Todos os atores da região colocam como mais importante a presença do Estado, dizem que o Estado é omisso na região. Os fazendeiros, pelas razões deles: “Chega de área protegida, chega de reserva, de 80% da terra em reserva. Deixa criar mais área protegida, mas deixa a gente fazer da nossa propriedade o que a gente quiser”. Os pequenos, porque eles querem segurança, porque estão continuamente ameaçados pela expansão dos fazendeiros. Todo mundo quer a presença, mediação, a regra, a segurança do Estado. Outra coisa que me surpreendeu, no ano passado, quando estive lá, foi que o que eles mais almejavam, em segundo lugar, era o zoneamento ecológico e econômico. Eu ajudei a fazer a metodologia do zoneamento, em 1996. Todo mundo era absolutamente descrente, dizia que não iria ajudar em nada, porque ninguém entendia o que era. Agora a população quer zoneamento. Quer garantir as áreas dela contra os conflitos. Se decodificarmos o que eles pedem — Estado e zoneamento —, o que eles querem são as regras do jogo claras e cumpridas. Acho um grande avanço. Mas a solução não é fácil. Um dos grandes problemas do Brasil e da Amazônia é que não tem condições de monitorar, de fiscalizar, e de fazer cumprir as regras do jogo. É uma questão institucional muito séria. A situação só vai melhorar de verdade com o desenvolvimento da região em novos moldes.
22: E quanto aos índios, o que eles querem? O que a senhora propõe para os índios em seu livro?
BB: Tem de haver vários tipos de zonas de florestas. Áreas riquíssimas em biodiversidade devem ser áreas preservadas. Outras áreas devem ser de florestas produtivas, terreno para revolução científico-tecnológica. Estou distinguindo vários tipos — você vai dizer que eu estou louca —, vários tipos de florestas produtivas. As terras indígenas para mim não devem ter o mesmo tratamento das áreas protegidas, porque índio não é a mesma coisa que árvore. Muitas populações indígenas vivem em extrema pobreza. Lá em São Gabriel da Cachoeira, por exemplo, é uma coisa de chorar. Eles podem explorar a natureza de maneira mais lucrativa, aproveitando a tradição cultural e com poucos danos ambientais.
A cultura deles, em termos de produção, baseia-se na pesca e na mandioca. Eu, nas áreas indígenas, faria energia à base de mandioca, etanol de mandioca. Energia renovável. É loucura? É uma alternativa muito interessante. A mandioca como alimento, e a mandioca para gerar combustível. Hoje, eles pagam fortunas pela gasolina para botar no barquinho a motor. Eles podiam ter uma pequena usina de etanol, e talvez até vender o excedente.
Porque eles querem ter relógio, roupa etc. Eles não querem perder a cultura deles, o que não significa que não tenham direito de consumir. Mas, para muita gente, índio consumir é pecado. Mas por quê? Se ele está em contato com a chamada “civilização”, não está? Para mim, o direito de consumir pelo menos um mínimo hoje é um direito à cidadania. Eles também podem fazer manejo de madeira e participar de cadeias de biodiversidade.
22: O que a senhora acha de novas iniciativas, como a concessão para exploração de áreas florestais?
BB: Teoricamente está correto. O grande problema da Amazônia é que ninguém cumpre a lei. Aí eu fico morrendo de medo, porque deixar todas as florestas nacionais e estaduais — os estados entraram também — permissivas à exploração é um tremendo de um risco. Talvez fosse melhor adotar um sistema parecido com o que os índios usavam, de rotação da terra: usa-se uma parte da floresta durante alguns anos, conforme certas regras, depois deixa-se aquele pedaço de floresta em paz por 40 ou 50 anos. E os que cumprirem as regras podem passar a explorar outras partes da floresta. Era assim que os índios faziam, e a mata está aí até hoje. Mas se não tomar cuidado… O que tem de exploração de madeira no Peru hoje, partindo de uma frente de expansão de Pucallpa…o centro é Iquitos. De Iquitos a madeira desce como se fosse madeira peruana, e é exportada por Belém e por Macapá. O grande centro consumidor da madeira amazônica é o Sudeste brasileiro, com 85%. Mas os outros 15% são exportados para o exterior.
22: E a polêmica hidrelétrica do Rio Madeira: como a senhora avalia o projeto?
BB: Isso virou uma guerra particular entre a Odebrecht e os ambientalistas. Não tem cabimento. A Amazônia é uma questão global, continental e, sobretudo, nacional. É uma questão de Estado. O debate sobre o desenvolvimento dela não pode ficar restrito a uma guerra de interesses entre ambientalistas e uma empresa, pode? Tem de ser debatido pela sociedade toda, e a ciência e a tecnologia deveriam ter um papel enorme aí. O que proponho para obras de infra-estrutura? Planejamento integrado. Ninguém mais poderá fazer só hidrelétrica ou só estrada isoladamente, explorar um recurso da Amazônia para exportar para o Sudeste. Se eu fosse o governo, proibiria isso. Agora, simplesmente não fazer hidrelétrica também não pode: tem é de estudar seriamente a melhor maneira de fazer. Eu até já falei para o pessoal da Odebrecht: estamos na era do planejamento integrado. Faz a usina, mas tem de ter navegação fluvial, tem de planejar a produção de alimentos no entorno, nas áreas que já estão alteradas, com produtores familiares, com apoio à produção. Nas áreas de floresta, mantê-las, fazer cadeias de biodiversidade utilizando a navegação fluvial.
22: Existem riscos reais de perda da soberania brasileira na Amazônia?
BB: Acho que sim, e tenho escrito também sobre isso. Primeiro tem de ser bem entendido o que é soberania. Ela não é mais a soberania militar do passado, dos séculos anteriores. O melhor seria, hoje, falar em autonomia do que soberania. Porque estamos num mundo dominado por fluxos que obedecem cada vez menos as fronteiras, fluxos financeiros, de informação, de mercadorias… Em relação à Amazônia, há um interesse externo muito grande. Não é paranóia coisa nenhuma, existe mesmo. Não é por acaso que há tantas ONGs por lá. Nem todas as ONGs são iguais, mas tem muita ONG aí que faz geopolítica pura. E, se olharmos hoje para a América do Sul e para a América Latina, o Brasil é quase que uma grande ilha, cercada de militares por todos os lados. Existem as localidades de base avançada, dos EUA e européias, também na América Central, na Colômbia, no Peru, Equador, Paraguai. Estamos cercados das chamada “localidades avançadas”. Ninguém chama mais de bases. Muda-se a nomenclatura, mas são bases militares, na verdade.
Não foi por acaso que o Brasil fez um projeto Sivam-Sipam. São respostas à pressão. Mas o que os militares e o governo parecem não entender é que a soberania tem duas faces. Eles em geral só se preocupam com a face externa e esquecem a interna, o bem-estar da Nação, das populações, do cidadão. Na Amazônia, com todo o atual clamor pela presença do Estado, isso fica muito claro. O Estado brasileiro precisa, sobretudo, conquistar legitimidade e soberania internamente.