Por Regina Scharf
Quem revirava latas de lixo em busca de comida, atravessava a cidade a pé e só vestia roupas usadas até recentemente era chamado de mendigo. Mas uma nova subcultura de mendigos por convicção ideológica começa a florescer nos Estados Unidos, na Austrália e, claro, na pátria dos punks, a Inglaterra: são os freegans.
Eles vivem do desperdício alheio. Que, em países ricos, não é pouco. Há estimativas de que a cidade de Nova York descarta 23 milhões de quilos anuais de alimentos, incluindo aí os 9 milhões que são doados aos pobres. Boa parte dessa comida vai parar nas lixeiras de supermercados, armazéns e mercearias por problemas relativamente pequenos: a embalagem amassada, o prazo de validade expirado na véspera, a folhagem meio murcha.
Nesse cenário, os freegans se refestelam. É o que conta a ex-executiva Madeline Nelson, entrevistada há poucas semanas pelo Los Angeles Times. Até 2005, ela era diretora de comunicações da Barnes & Noble, uma das maiores redes de livrarias dos Estados Unidos, morava num apartamento elegante de Manhattan e – para a alegria da indústria têxtil – tinha 40 blusas só para trabalhar. Largou tudo, virou voluntária de projetos sociais e percorre as lixeiras de Nova York atrás da sua próxima refeição.
Há três anos ela não compra ovos, verduras, frutas, pão ou café. Acha tudo no lixo. Diz que nunca foi tão feliz.
É também o caso da australiana Phoebe Turner, ex-estudante de Artes da Universidade de Sydney, que vasculha os depósitos de lixo de supermercados e economiza dinheiro para viajar a Bornéu, onde pretende trabalhar num projeto de conservação de primatas.
Descendente do movimento de direitos dos animais, das campanhas antiglobalização, da militância ambiental, dos ascetas, eremitas e hippies, o freeganismo foge do consumismo e das trocas monetárias como o vampiro da água benta. Sujo é o dinheiro, não o lixo.
O freegan almeja uma pegada ecológica ainda menor que a dos vegans, que, além de se abster de qualquer produto de origem animal, só compram alimentos locais. “Se uma pessoa decide adotar um estilo de vida ético, não basta ser vegan. Ela precisa excluir-se do capitalismo”, prega Adam Weissman, espécie de porta-voz da categoria e fundador, quatro anos atrás, do website freegan.info, o Orkut do lixo. Ele é formado por redes de contatos que dão o endereço das lixeiras mais promissoras e a hora em que os resíduos são recolhidos em diversas cidades.
Se você consultar o site antes da sua próxima visita a Manhattan, saberá que vale a pena dar uma passadinha pela lixeira da carésima loja de chocolates finos Godiva, na esquina da Broadway com a 84th Street. Ali você pode encontrar morangos tamanho-família e barras de um excelente meio amargo. Você também pode coletar foie gras no Food Emporium da 3rd Avenue ou sanduíches na Taylor’s da 2nd Avenue (mas não vá muito depois das 10, quando os lixeiros recolhem tudo).
Outro site, freegankitchen.com, é um videoblog que ensina a cozinhar utilizando ingredientes reciclados do lixo. Aliás, é possível ver no YouTube o crítico gastronômico inglês Giles Coren, do The Times, degustando um banquete trash.
Freegans veteranos costumam tranqüilizar os novatos garantindo que nunca tiveram uma intoxicação alimentar devido às suas expedições noturnas. E a facção não vegetariana, os meagans, até se aventura a comer carne e peixe.
Outsiders com um parafuso a menos ou pioneiros de uma nova tendência? Sejam o que forem, os freegans não são poucos. Já existem tours organizados para apresentar as melhores lixeiras aos novatos em várias metrópoles americanas. Pelo menos 14 mil pessoas teriam participado desse tipo de turismo nos últimos dois anos em Nova York. Menos radical no conceito, mas igualmente alternativo, o site freecycle.org, que permite aos seus usuários doar, trocar ou ganhar todo tipo de coisa, informa ter quase 4 milhões de membros em milhares de cidades.
O mais interessante da experiência freegan é a forma como essas pessoas incorporam o conceito de ciclo de vida no seu cotidiano. Como diz o manifesto do grupo, divulgado no website freegan.info, eles “olham para o plástico que envolve os cachorros-quentes feitos com tofu e pensam nos peixes e aves que morrem asfixiados por manchas de petróleo nos oceanos”. É, comer lixo – isto sim é que é quebra de paradigma.