O momento é bom para pensar na atualidade de Judith Cortesão, sobre a capacidade de aceitar as diferenças de fato. E não como jogo de aparências que atualiza estratégias de dominação e disfarça a arrogância sob o discurso politicamente correto
Por Maristela Bernardo
Nos idos de 80 do século XX, vivia-se, como hoje, um aumento das preocupações ambientais. O tema ganhava status político e institucional e cresciam no planeta a conectividade e a organização do movimento ambientalista. Em 1987 surgiu o relatório Nosso Futuro Comum, produzido pela Comissão Brundtland e marco na abordagem integrada da crise ecológica e de seus fundamentos econômicos e sociais. No mesmo ano, a Organização das Nações Unidas criou grupo de trabalho para estudar as mudanças climáticas globais. O efeito estufa entrava no vocabulário de milhões de pessoas, assim como biodiversidade, conservação, desenvolvimento sustentável.
No Brasil, a Constituinte era o primeiro grande acerto político pós-ditadura. O lobby ambientalista impactava por ser uma novidade barulhenta, criativa, com capacidade de negociação e pressão, ancorado no debate internacional e na denúncia de problemas como poluição das águas, extinção de espécies, o risco nuclear de Angra.
Nesse cenário, circulava uma figura discreta, pequena, com seu sotaque português, cabelo de moça antiga, repartido de lado e com a franja domada por uma presilha na lateral. Com bom humor e ânimo permanentes, Judith Cortesão arrebanhava o que chamava de “ecoespiões”, em apoio à costura parlamentar de Fabio Feldmann para aprovar o capítulo “Do Meio Ambiente”.
Em 25 de setembro de 2007, Judith morreu em Genebra, aos 92 anos. Para quem não conheceu seu encantamento, ela materializou a idéia da sabedoria integral, visceralmente vivida. Filha do historiador português Jaime Cortesão e viúva de Agostinho da Silva, Judith formou-se em Medicina, Antropologia, Letras, Biblioteconomia, Meteorologia, Climatologia e Biologia. Lecionou em 16 universidades e fez a síntese atuando na área da Ecologia e na busca da inteireza da relação seres humanos-natureza. Passou aqui boa parte da vida. Foi fundadora e consultora de ONGs, trabalhou no setor ambiental federal, foi referência em questões ligadas à ecologia marinha.
Ajudou na concepção e criação de coisas tão diferentes quanto o programa Globo Ecologia e o Centro de Informação e Formação de Médicos e Cirurgiões de Doenças do Aparelho Locomotor do Hospital Sarah Kubitschek, em Brasília. Nos seus últimos anos no Brasil, dedicou-se a criar e implementar o curso de pós-graduação em Educação Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Essa é a Judith, digamos, do curriculum vitae. Mas não revela o essencial, que ficou impresso na história de milhares de pessoas que ela influenciou. Como diz Bruno Pagnoccheschi, hoje diretor da Agência Nacional de Águas: “Judith pegava qualquer pessoa, fizesse o que fizesse, fosse de que área fosse, e inseria num contexto maior. Eu era um engenheirão cheio de regras e cercas e ela me despertou a consciência de que as pessoas têm de fazer parte do mundo, não se encolher”.
Para ele, o “efeito Judith” talvez se explique em parte pelo amor que ela dedicava à poesia, pelo seu olhar sobre as coisas. “Algo assim como Adélia Prado e Cora Coralina: o que parece banal, que se vê todo dia, volta transformado. Elas mostram as coisas além do visível, dos critérios de importância e desimportância que costumamos aplicar.”
Meu contato com ela foi marcante e formador, sobretudo durante a Constituinte. Simples e frugal, Judith não era professoral nunca, não constrangia ninguém com sua bagagem acadêmica e intelectual, não tinha pose. Conversava com todos, de crianças a ministros, com a mesma generosidade e interesse. Gostava de pessoas e achava sempre alguma graça nelas. Via além de limites e alinhamentos ideológicos, estéticos, etários, profissionais; das discriminações que em geral usamos para defender nosso espaço, nosso “lado” na vida. Judith não respeitava essas fronteiras, não vetava ninguém. Sofreu algumas birras de burocratas, a quem enlouquecia com seus métodos heterodoxos de agir dentro do Estado, mas parecia não se importar.
A passagem dessa mulher excepcional pelo Brasil foi sempre de um frescor, de um viço únicos. Suas lições estão menos nos livros que escreveu e nas instituições que idealizou do que na vida das pessoas que tocou, muitas vezes sem que elas se dessem conta.
O tempo decorrido desde a Constituinte registra avanços importantes. Ficou mais clara a identidade comum das questões ambientais, sociais e econômicas. Também caminhou o diálogo entre setores (ou parte deles) que se tratavam como inimigos inconciliáveis (ou quase), como empresariado, governos e organizações da sociedade civil. Já se entende que o mundo não será nem de uns nem de outros e, portanto, é melhor sentar pra conversar e dedicar esforço e tempo para transformar esse encontro em paradigmas mais civilizados e sustentáveis.
O momento é bom para pensar na atualidade de Judith Cortesão. Sobre a capacidade de aprender com as diferenças e aceitá-las de fato, não como jogo de aparências que atualiza estratégias de dominação e disfarça a arrogância sob o discurso politicamente correto.
O que Judith chamava de “ecoespiões” era uma brincadeira para apontar a importância de ouvir, conhecer e entender aquele que você considera seu adversário. Outra lição é a de não reverenciar fronteiras, porque elas não existem de fato.
Quase sempre são apenas espaços de poder que se diluem na consciência da conexão entre tudo o que existe. Em 2001, ao jornal Mundo Jovem, de Porto Alegre, Judith disse, sobre os grandes desafios ecológicos do século XXI: “O primeiro desafio é o ético, coletivo. É indispensável que o homem vivencie, sinta que pertence a uma rede de vida e que esta rede se sustenta pela participação de todos. (…) Nós não somos muitos, nós somos um só.”