Os avanços tecnológicos e o arranjo político mundial ainda são insuficientes para atender ao aumento na demanda por energia e simultaneamente reduzir as emissões de carbono
Por Rodrigo Squizato, de Roma
O mundo tem dois grandes desafios inter-relacionados à sua frente. O primeiro é reduzir as emissões de gases de efeito estufa (GEE). O segundo, garantir em 2030 uma oferta de energia 55% maior que a atual. Alcançar ambos os objetivos é uma tarefa extraordinária, no sentido literal da palavra. Principalmente porque atuam em sentidos contrários. Com as atuais fontes, tecnologias e padrões de consumo de energia, ao mesmo tempo que se alcança um, distancia-se do outro.
Como lembra o professor da USP, José Goldemberg, fornecer acesso a fontes modernas de energia “é o equivalente a tirar uma pessoa do século XIX e colocá-la no XXI”. Com essa afirmação, o professor sintetiza o dilemma descrito acima. Para conduzir a sociedade a este século, é preciso enfrentar as mudanças climáticas. O que se vê, entretanto, é um investimento bilionário da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) na direção contrária. Segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), a OCDE aplica US$ 250 bilhões por ano em forma de subsídios às fontes fósseis, emissoras de gases de efeito estufa.
As contradições aumentam diante da constatação de que a economia mundial cresce, a despeito da alta do preço do petróleo, enquanto as fontes renováveis enfrentam gargalos. Para tornar mais complexo o cenário, há de se buscar um equilíbrio na delicada dependência energética entre cada nação. Embora o desafio seja global, as agendas para o enfrentamento da crise de oferta e procura de energia são locais, ditadas pelos interesses de cada país. Temas como estes estiveram no foco das discussões durante o 20º Congresso Mundial de Energia, em Roma, que reuniu mais de 3.500 participantes de 112 países, em novembro.
As discussões tomaram por base números no mínimo preocupantes, divulgados recentemente. Segundo o World Energy Outlook – o mais novo estudo sobre o futuro da energia ao redor do globo, produzido pela AIE -, 74% da demanda adicional virá de países em desenvolvimento, notadamente China e Índia. Somente essas duas nações representam cerca de 33% da população mundial e suas economias crescem a taxas ao redor de 10% ao ano. Em termos práticos, até 2030 a China vai precisar adicionar a seu parque gerador cerca de 1.300 gigawatts, 20% a mais do que atual potência instalada nos Estados Unidos.
Eleger uma prioridade entre clima e energia simplesmente não é factível. No que se refere ao aquecimento global, a redução das emissões é o único caminho possível. Reduzir a oferta de energia tem um custo social e ambiental mais alto do que descobrir meios que conciliem os dois objetivos. Atualmente, entre 1,5 bilhão e 2 bilhões de pessoas no mundo ainda não têm acesso a fontes modernas de energia.
SOB O MESMO CÉU
Na divulgação do relatório da AIE, o diretor-executivo da entidade, Nobuo Tanaka, resumiu da seguinte forma o problema de conciliar oferta de energia e emissão de GEE: “Os imensos desafios energéticos da China e da Índia são globais”. Segundo ele, “precisamos agir agora para gerar uma mudança radical em investimentos que favoreçam fontes de energia mais limpas, eficientes e seguras”. A mensagem de Tanaka é mais profunda do que parece à primeira vista. Ela não diz respeito apenas ao auxílio aos dois gigantes asiáticos. Revela o que os especialistas em energia chamam de interdependência.
Nenhum país do mundo é independente em termos energéticos. Todos importam energia sob alguma forma. Segundo a AIE, apenas 42 são exportadores líquidos de energia. Mas a interdependência vai além da oferta. Da mesma forma que os países consumidores precisam importar energia, os países produtores precisam exportar para manter suas economias. A tecnologia do setor, em geral dominada pelos países desenvolvidos, mas cujas aplicações são mais necessárias atualmente nos países em desenvolvimento, ajuda a cristalizar o conceito.
O desafio global imposto pelas mudanças climáticas tornou a interdependência ainda mais forte, à medida que não respeita as fronteiras políticas desenhadas pelo homem. A necessidade de fontes de energia mais limpas complementa o ciclo, pois os recursos disponíveis em alguns países serão essenciais para que o globo atinja as metas de redução das emissões.
A Polônia, por exemplo, tem um potencial bastante limitado em energia renovável, ao contrário do Brasil – um dos países mais bem posicionados nessa área, pelo alto grau de insolação, pelos potenciais hidrelétrico e eólico, e pela ampla costa, que no futuro pode ser fonte para a nascente tecnologia de captação da energia do oceano.
GARGALO DAS RENOVÁVEIS
Em termos práticos, divergências entre países sobre o acesso à energia ameaçam a segurança, a oferta e o clima global. Pode-se argumentar que as fontes renováveis são a solução para a maioria desses problemas.
De fato, tanto o World Energy Council (WEC) como a AIE apontam que elas serão fundamentais e terão importância crescente. Recomendam o incentivo a fontes mais limpas, o que inclui as renováveis, mas também a controversa energia nuclear. Mas, segundo esses organismos, essas tecnologias são apenas parte da resposta, pois não dão conta de atender o crescimento da demanda a curto e médio prazo.
A geração de eletricidade a partir do vento, vista como a mais competitiva entre as renováveis atualmente, cresceu a uma média de 8,2% entre 1971 e 2005. Mesmo assim, segundo a AIE, representa menos de 0,06% da oferta global de energia – não mais que um sopro de ar fresco no meio de uma atmosfera poluída.
Especialistas dizem que taxas maiores de uso de renováveis podem ser obtidas devido aos imensos investimentos nos últimos dois anos, mas a falta de dados atualizados não permite traçar com precisão quão maior poderia ser a participação das fontes limpas.
De qualquer forma, a qualidade da energia limpa deve melhorar, pois hoje entre as renováveis ainda se consideram fontes primitivas como lenha, carvão vegetal e esterco, que tendem a ser substituídas por opções mais modernas e menos poluentes. Em muitas vilas da África, por exemplo, a eletrificação é feita a partir de painéis fotovoltaicos e não de longas linhas de transmissão ligadas, na maioria dos casos, a usinas termelétricas.
O presidente emérito do Electric Power Research Institute (EUA), Kurt Yeager, diz que “as formas modernas de energia beneficiam sobretudo as mulheres, porque, em muitas regiões do mundo, elas são responsáveis pela coleta de lenha, água e outros insumos básicos”. Ao lado dos filhos, também são as mais afetadas pela poluição interna, causada pela fumaça da lenha dentro de suas casas. Segundo a Organização Mundial da Saúde, esse tipo de poluição mata 1,3 milhão de pessoas prematuramente por ano.
Em relação a uma base ainda pequena, as taxas de crescimento das renováveis devem continuar expressivas até 2030. Estimativas da AIE projetam incremento de 18 vezes para a energia eólica, e 60 vezes para a solar fotovoltaica. Todas as outras formas de renováveis devem crescer pelo menos quatro vezes mais que a demanda por combustíveis fósseis. Caso isso ocorra, a participação na oferta mundial passará de 13,1% para 16,2%, na melhor das hipóteses traçadas pela AIE. Mesmo assim, a participação delas aumenta para apenas 13,5%
Há diversos exemplos de gargalo na oferta registrados nos principais setores de energias renováveis. O aumento da demanda por painéis fotovoltaicos, principalmente na Alemanha, fez o preço do silício disparar no mercado internacional. Mesmo sendo um material abundante no planeta, a capacidade atual de mineração e refino colocou pressão sobre a oferta do produto, que também é matéria-prima para fabricação de chips para computadores.
A geração de energia a partir do bagaço de cana, fonte largamente subaproveitada no Brasil, também enfrenta problemas de oferta de turbinas e caldeiras. Por essa razão, segundo os três principais fabricantes do País – Siemens, TGW e NG Metalúrgica -, equipamentos encomendados em meados deste ano só vão entrar em operação em 2009 ou 2010, apesar do tempo de construção do parque gerador girar entre 10 e 14 meses, em média.
DEMANDA BRUTAL
Ainda que se equacione a questão referente à oferta mais limpa, há um problema crucial relacionado à energia: a imensa demanda. Até mesmo a indústria de petróleo e gás tem tido dificuldade para acompanhar o passo. Faltam engenheiros, equipamentos e mão-de-obra especializada, o que aumenta os custos e os prazos para os novos projetos começarem a produzir.
Por essa razão, um recente relatório sobre mudanças climáticas do WEC recomenda aos empresários, formadores de políticas públicas e público em geral uma série de ações combinadas para atender à demanda ao mesmo tempo que reduz as emissões.
O trabalho do WEC aponta como principais caminhos a eficiência energética e o desenvolvimento de novas tecnologias e de políticas públicas adequadas. Entre elas, uma análise sobre a cobrança de impostos sobre combustíveis, adoção de padrões de eficiência, negociação de redução de emissões, revisão dos subsídios aos combustíveis fósseis e reavaliação sistemática do ambiente regulatório para atingir as metas traçadas.
Nesse sentido, a recente elevação do preço do petróleo e de outros combustíveis fósseis seria até uma boa notícia. O aumento do custo da energia é, ou deveria ser, um grande incentivo para uma matriz mais limpa, pois nesse caso os próprios mecanismos de mercado fazem os consumidores buscar maior eficiência no uso. O que se vê no momento, entretanto, é uma economia mundial em crescimento que parece ignorar a alta do preço do petróleo. Com preços mais altos, a tendência de muitos governos é reduzir os impostos e aumentar os subsídios para evitar que o custo da energia freie a economia. Uma visão de curto prazo que pode prejudicar consideravelmente a redução das emissões a longo prazo.
Uma elevação consistente do patamar dos preços do petróleo, como a vista nos últimos anos, em teoria afeta o crescimento econômico. Mas, como as economias centrais mostram vigor, o efeito se revela como um aumento menor do PIB e não como uma recessão. Estima-se que, desde 2002, a economia global tenha deixado de crescer apenas 0,3 ponto percentual ao ano em função da elevação dos custos da energia. Uma das razões para isso é que a atual fase de aumento é guiada pelo crescimento da demanda, ao contrário dos choques da década de 1970, detonados por fatores políticos, com efeitos na oferta.
Outra explicação está no fato de que o aumento dos preços não ocorreu ao mesmo tempo, nem na mesma intensidade, para as principais fontes. Desde 2002, gás e carvão demoraram mais para começar a escalada de preços e subiram menos que o petróleo. Esses fatores, aliados à menor dependência de petróleo para geração de eletricidade em relação à década de 1970, reduziram o impacto sobre o desempenho econômico internacional.
Além das emissões, outras nuvens aparecem no horizonte do setor energético e complicam ainda mais o quadro. Internacionalmente, as questões políticas relacionadas à energia voltam a preocupar os Estados Unidos, a Europa, o Japão e a China.
Embora dez entre dez especialistas de energia americanos considerem o conceito de independência energética defendido pelo presidente George W. Bush uma utopia prejudicial à formulação de políticas públicas adequadas, ele reflete a insegurança em relação ao acesso às fontes de energia.
No caso europeu, a situação parece ser ainda mais grave, porque os países da União Européia querem acesso a fontes mais limpas também. Dona das maiores reservas de gás natural do mundo, a Rússia está no ponto mais alto do pedestal das discussões sobre o setor no Velho Continente. Os líderes europeus querem saber se a Rússia manterá as torneiras abertas para a fonte fóssil mais limpa que existe. Caso contrário, terão de usar novamente o carvão abundante no Norte do continente e financiar o renascimento da energia nuclear, a fim de gerar a energia necessária para cumprir as metas de redução das emissões da UE, estabelecidas em 20% até 2020.
É a segurança de acesso, portanto, e não a disponibilidade de recursos, a principal engrenagem do setor energético hoje. Segundo o presidente da ExxonMobil, Rex Tillerson, apenas 20% das reservas provadas de petróleo estão nas mãos de companhias privadas.O restante está sob o domínio de estatais, na maioria dos casos sujeitas a canetadas políticas e a um nível de eficiência menor.
O nacionalismo em torno dos recursos naturais aumentou com a escalada do preço do petróleo e medidas reais já foram tomadas na Rússia, Venezuela, Bolívia, no Equador e na Líbia, entre outros.
As tensões políticas e o desafio internacional para reduzir as emissões de GEE são suficientes para mostrar que a solução do problema não está apenas nas mãos do mercado, como afirmou o primeiro-ministro da Itália, Romano Prodi, na abertura do Congresso. A livre negociação certamente terá sua importância, mas em alguns casos apenas depois da definição de um marco regulatório estável em relação ao corte de emissões. Talvez as emissões de carbono sejam o melhor exemplo da necessidade de um acordo internacional.
CARBONO IMPÕE PREÇO
Quinze anos de discussões e quatro relatórios do IPCC, o Painel Internacional sobre Mudança Climática, tornaram os executivos das grandes multinacionais do setor de energia cientes de que o carbono terá um preço. Até mesmo a Exxon, que sempre procurou minimizar a importância do aquecimento global, já reconhece que “as mudanças climáticas merecem atenção”, nas cautelosas palavras de Tillerson.
Poucos estão mais ansiosos que as empresas de energia elétrica dependentes do carvão. “Gostaria que isso fosse definido o mais rápido possível, para eliminar incertezas de planejamento. Em nossa empresa não temos mais dúvidas de que o carbono terá seu preço”, diz Rafael Miranda, CEO da Endesa e presidente da Eurelectric, entidade que reúne o setor elétrico europeu.
Uma forma que muitas empresas estão buscando para contornar o problema das emissões é a captura e o seqüestro de carbono (CSC) no processo de geração de eletricidade a partir do carvão mineral. “Precisamos de CSC e precisamos logo”, afirma Michael Morris, presidente da American Electric Power (quadro à pág. XX).
Outro mercado que requer um acordo internacional é o de biocombustíveis. Tanto a União Européia como o National Petroleum Council dos Estados Unidos não têm dúvida do seu importante papel na nova matriz energética mundial.
“Queremos os biocombustíveis, mas desde que sejam sustentáveis”, ressalva em bom português o presidente da Comissão Européia, José Manuel Barroso. Para o presidente da Global Bioenergy Partnership (GBEP), Corrado Clini, o ideal seria um acordo feito no ambiente da Organização Mundial do Comércio, que previsse parâmetros internacionais de sustentabilidade para o setor biocombustíveis.
Definidos os critérios de sustentabilidade, os biocombustíveis poderiam driblar o longo imbróglio relacionado aos subsídios agrícolas. Para isso deveriam ser enquadrados no parágrafo 31 da agenda de Doha, que prevê redução ou eliminação das tarifas e barreiras comerciais para bens e serviços ambientais na opinião do presidente da GBEP, que reúne países do G8+5 (Brasil, China, Índia, México e África do Sul), a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e a AIE, entre outros.
Marco regulatório e tecnologia não encerram os problemas relacionados à oferta de energia e ao aquecimento global. É preciso interesse e capital para investir.
Para Uriel Sharef, vice-presidente da Siemens, “falta a muitas empresas o interesse em adquirir as tecnologias mais modernas”. Sharef não afirma, mas a razão para isso seria financeira. Como o marco regulatório não as força a ter tecnologias mais eficientes, vale mais a pena comprar as antigas, que dão retorno em um prazo mais curto.
Exemplo claro disso é colocado por Jeffrey Immelt, presidente da GE. “Em 25 anos, a GE produziu nove gerações de tecnologias relacionadas à energia, mas hoje ainda temos uma grande demanda pelas primeiras dessas gerações, mais antigas, ineficientes e poluentes.” Immelt defende que a solução para os próximos 20 anos está na CSC e na energia nuclear, porque “até lá nenhuma tecnologia nova deve estar pronta para ser lançada no mercado na escala necessária”, avalia.
Enquanto o investimento em tecnologias mais modernas e limpas não for elevado ao topo da pauta das empresas do setor energético, todo o resto pouco adiantará, deixando claro que a adaptação necessária para superar os desafios da interdependência passa pela comunhão de interesses de empresas, governos e sociedade. Somente assim a sociedade do século XXI conseguirá sair do século XIX.
A SUJEIRA PARA DEBAIXO DO TAPETE
A técnica de captura e seqüestro de carbono (CSC) é a maneira que os geradores de eletricidade a partir do carvão estão buscando para contornar o problema das emissões de gases de efeito estufa. Nesse processo, os gases que seriam lançados à atmosfera são capturados durante a queima e armazenados em formações geológicas subterrâneas.
Cerca de 70 projetos-piloto já são desenvolvidos em diferentes partes do mundo, como Canadá, Austrália e Mar do Norte. Mas ainda têm problemas de viabilidade econômica. O World Energy Council (WEC), estima que os custos precisariam ser reduzidos em cerca de 50% para algo entre US$ 25 e US$ 50 por tonelada de CO2 seqüestrada e e armazenada.
Segundo relatório do WEC, a técnica permite reduzir as emissões de CO2 em até 82%, incluindo a energia gasta no processo. Contudo, o desempenho depende da idade da usina e da tecnologia empregada no seqüestro. Existem duas tecnologias para isso. Uma é a pré-combustão, que converte carvão, ou qualquer fonte fóssil, em hidrogênio e combustíveis líquidos com baixo teor de carbono, ao mesmo tempo em que captura o CO2. Produtos químicos originados nesse processo podem ser usados como matéria-prima industrial. Já na tecnologia de pós-combustão, o carbono dos gases provenientes da queima é retirado por meio de reações químicas.
Após o seqüestro, o dióxido de carbono é comprimido e liqüefeito para ser transportado a reservatórios subterrâneos em formações geológicas.
Além da necessidade de reduzir custos, o processo de armazenagem precisa ser melhor estudado para evitar riscos de vazamento do gás letal. Em 1986, gás carbônico que estava preso por razões naturais no fundo do lago Nyos, na República dos Camarões, vazou e matou 1.200 pessoas, enquanto dormiam.