Seu Modesto trocou a criação de gado pela conservação. E provou as vantagens econômicas do ecoturismo
Por Priscila Steffen, de Jardim (MS)
Em Brasília, criou alvoroço a proposta que pretende modificar o Código Florestal Brasileiro, alterando a lei segundo a qual 80% da área de propriedades rurais na Amazônia deve ser destinada à reserva legal. Ao cogitar uma redução da reserva legal para 50%, a ser votada na Câmara dos Deputados, a bancada ruralista inflamou os ânimos especialmente das entidades voltadas à conservação ambiental.
Teme-se que mais uma vez o desmatamento imponha seu preço em modelo de desenvolvimento econômico não sustentável, justamente no momento em que a redução de florestas tropicais como a Amazônia está no alvo das preocupações mundiais por conta do aquecimento global.
Um tanto longe de Brasília e pouco conhecida pelo restante do mundo, uma história se desenrola na contramão dessa polêmica. Quem a protagoniza é um senhor chamado Modesto, que intuitivamente reconheceu o valor econômico dos serviços que a natureza é capaz de prestar.
Quando Modesto Sampaio comprou, em 1986, uma terra para pastagem em Jardim (MS), município próximo a Bonito, o povo do lugar achou que era um péssimo negócio. A agricultura e, principalmente, a pecuária extensiva ainda reinavam soberanas como únicas fontes de receita para as vastas fazendas da região. Os 100 hectares de Seu Modesto pareciam prejuízo na certa, já que ele comprou as terras sabendo que no meio da pequena propriedade havia um buraco. Não um buraco qualquer, mas com 2 hectares de diâmetro e 110 metros de profundidade.Tinha direito até a nome próprio: “Buraco das Araras”.
Vindos de Corumbá, Seu Modesto e a família tinham a tradição de criar bois, coisa que começaram a fazer em sua nova propriedade. Mas a fauna e a flora exuberantes do Pantanal também estavam enraizadas no coração da família, e logo perceberam que o “a terra do buraco” apresentava características únicas, por encontrar-se na zona de transição entre três biomas: Cerrado, Mata Atlântica e seu velho Pantanal.
Com o tempo, ficou claro que a pastagem “furada” não garantiria o sustento financeiro do clã, e havia uma recusa tácita a queimar a vegetação nativa de Cerrado para formar pastagens mais densas. Já em 1995, um dos filhos do proprietário, Roosevelt Sampaio, começou a alertar o pai sobre o crescente turismo ecológico na região. E o buraco, que antes era visto como problema, passou a ser percebido como solução.
DEPÓSITO DE LIXO
Assuntando sobre a história da propriedade, descobriram que não era à toa o nome do buraco: até o início do século XX, a região era repleta de araras-vermelhas (Ara chloroptera). Só os mais velhos lembravam, porque, quando os Sampaio chegaram, as araras já tinham ido embora. “Os moradores da região praticavam tiro, caça, faziam desova de cadáveres, de carros, jogavam lixo, faziam de tudo nesse buraco. Por isso, no final década de 70, elas já tinham desaparecido daqui”, explica Roosevelt.
A decisão crucial, então, foi tomada: desenvolver o potencial de turismo ecológico da singular propriedade. A idéia partiu dos Roosevelt e seu irmão Bergson, atentos para o fato de que outras fazendas de Bonito já estavam investindo pesado em ecoturismo.
Mas, para implantar o turismo na reserva, precisavam pôr fim à criação de bois, e dedicar-se a “criar araras”, já que as duas atividades não combinavam: para aumentar a área de pasto, teriam de derrubar as árvores, essenciais para o projeto de repovoamento das araras. Seu Modesto não pensou duas vezes e foi enfático: “Foi muito fácil, porque sempre fui criado no meio de bichos. Com o boi não dá pra ter muitos animais, tem que desmatar, e eu isso eu não queria”.
Para adquirir maior conhecimento sobre a atividade, o próprio Roosevelt trabalhou dois anos em uma outra fazenda da região como guia turístico. Assim aprendeu as técnicas necessárias para cativar turistas ávidos por todo tipo de informação sobre fauna e flora. Mas ainda faltava resolver um problema: como atrair as araras de volta?
Sem ter lido manuais de ecologia ou de empreendedorismo, mas com a base da vivência pantaneira, os Sampaio fizeram o que lhes pareceu mais lógico: buscaram autorização para realocar um casal de araras domesticadas que viviam em uma fazenda próxima.
Araras são animais gregários. Por isso, a presença dos animais em refúgio tão apropriado para sua reprodução – nas íngremes paredes do buraco há frestas onde os ninhos ficam protegidos de predadores – acabou atraindo novos “vizinhos”. Como a caça também foi reprimida pelos Sampaio e as árvores preservadas, a chegada de novos “condôminos” foi crescendo, junto com o processo de reprodução natural da espécie.
RETORNO NATURAL
A natureza fez a sua parte no investimento e o retorno foi extraordinário: menos de dez anos depois do pontapé inicial, hoje existem aproximadamente 50 casais de araras vivendo ali. No buraco, as aves saem ao amanhecer, alimentando-se em um raio de 30 quilômetros, e voltam ao final do dia, em um espetáculo belíssimo, capaz de encantar o mais insensível turista.
Mas, enquanto o turismo não emplacou e tornou-se viável economicamente, a família sobreviveu com os poucos bois que tinha, enquanto os filhos faziam “bicos” e a renda era complementada com o arrendamento da fazenda de propriedade da família em Corumbá.
A “esquisitice” de trocar bois por araras começou em 1997, quando os Sampaio deram início à cobrança de ingressos, recebendo em média três visitantes diariamente. Hoje, a média entre alta e baixa temporada está em 30 pessoas, que pagam 5 reais cada.
“Boi, agora, só na parede”, afirma Seu Modesto, apontando para as cabeças empalhadas dos companheiros pantaneiros Crioulo e Dourado, nomes dos dois últimos bovinos que habitaram a propriedade.
Mas essa parede onde estão os bois também foi construída aos poucos. Roosevelt lembra que, no início das visitações, quando ainda não sabiam bem como tudo funcionava, atendiam as pessoas em um banco na entrada da propriedade, ao contrário de várias outras fazendas, que já ofereciam o conforto de banheiros e lanchonetes. “A cada ano, a gente foi colocando uma coisa e agora está assim, bonito, agradável”, orgulha-se, já atrás do balcão da lanchonete que vende souvenirs com formato de araras. Tudo produzido e administrado pela família.
Em 2007, o Buraco das Araras tornou-se Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), protegendo não só araras, mas toda a rica diversidade biológica na reserva. O plano de manejo já começou a ser feito e é financiado pela ONG Conservação Internacional.
Segundo biólogos que já estudaram a biodiversidade da região, há mais de 120 espécies de aves. Tucanos são vistos com grande facilidade no buraco. Além disso, existe um lago no meio, lá embaixo, onde curiosamente vivem dois jacarés-de-papo-amarelo, o que também desperta o interesse dos pesquisadores. O show ainda pode melhorar. Todo ano o número de araras aumenta e, pelos relatos dos antigos moradores, no início do século passado havia uma quantidade de araras cinco vezes maior do que hoje.
A família Sampaio também prospera na gestão da RPPN. O trabalho de Roosevelt como guia e administrador da reserva é tão intenso que ele vem adiando os planos de seguir um curso de Administração.
Para quem chegou em Jardim sem ter tido a chance de estudar, Seu Modesto pode afirmar com a tranqüilidade de quem venceu na vida por meio da conservação: “Hoje sou apaixonado pelas araras. Eu não preciso viajar para conhecer o mundo, o mundo está vindo até a mim…”
Seu Modesto trocou a criação de gado pela conservação. E provou as vantagens econômicas do ecoturismo
Por Priscila Steffen, de Jardim (MS)
Em Brasília, criou alvoroço a proposta que pretende modificar o Código Florestal Brasileiro, alterando a lei segundo a qual 80% da área de propriedades rurais na Amazônia deve ser destinada à reserva legal. Ao cogitar uma redução da reserva legal para 50%, a ser votada na Câmara dos Deputados, a bancada ruralista inflamou os ânimos especialmente das entidades voltadas à conservação ambiental.
Teme-se que mais uma vez o desmatamento imponha seu preço em modelo de desenvolvimento econômico não sustentável, justamente no momento em que a redução de florestas tropicais como a Amazônia está no alvo das preocupações mundiais por conta do aquecimento global.
Um tanto longe de Brasília e pouco conhecida pelo restante do mundo, uma história se desenrola na contramão dessa polêmica. Quem a protagoniza é um senhor chamado Modesto, que intuitivamente reconheceu o valor econômico dos serviços que a natureza é capaz de prestar.
Quando Modesto Sampaio comprou, em 1986, uma terra para pastagem em Jardim (MS), município próximo a Bonito, o povo do lugar achou que era um péssimo negócio. A agricultura e, principalmente, a pecuária extensiva ainda reinavam soberanas como únicas fontes de receita para as vastas fazendas da região. Os 100 hectares de Seu Modesto pareciam prejuízo na certa, já que ele comprou as terras sabendo que no meio da pequena propriedade havia um buraco. Não um buraco qualquer, mas com 2 hectares de diâmetro e 110 metros de profundidade.Tinha direito até a nome próprio: “Buraco das Araras”.
Vindos de Corumbá, Seu Modesto e a família tinham a tradição de criar bois, coisa que começaram a fazer em sua nova propriedade. Mas a fauna e a flora exuberantes do Pantanal também estavam enraizadas no coração da família, e logo perceberam que o “a terra do buraco” apresentava características únicas, por encontrar-se na zona de transição entre três biomas: Cerrado, Mata Atlântica e seu velho Pantanal.
Com o tempo, ficou claro que a pastagem “furada” não garantiria o sustento financeiro do clã, e havia uma recusa tácita a queimar a vegetação nativa de Cerrado para formar pastagens mais densas. Já em 1995, um dos filhos do proprietário, Roosevelt Sampaio, começou a alertar o pai sobre o crescente turismo ecológico na região. E o buraco, que antes era visto como problema, passou a ser percebido como solução.
DEPÓSITO DE LIXO
Assuntando sobre a história da propriedade, descobriram que não era à toa o nome do buraco: até o início do século XX, a região era repleta de araras-vermelhas (Ara chloroptera). Só os mais velhos lembravam, porque, quando os Sampaio chegaram, as araras já tinham ido embora. “Os moradores da região praticavam tiro, caça, faziam desova de cadáveres, de carros, jogavam lixo, faziam de tudo nesse buraco. Por isso, no final década de 70, elas já tinham desaparecido daqui”, explica Roosevelt.
A decisão crucial, então, foi tomada: desenvolver o potencial de turismo ecológico da singular propriedade. A idéia partiu dos Roosevelt e seu irmão Bergson, atentos para o fato de que outras fazendas de Bonito já estavam investindo pesado em ecoturismo.
Mas, para implantar o turismo na reserva, precisavam pôr fim à criação de bois, e dedicar-se a “criar araras”, já que as duas atividades não combinavam: para aumentar a área de pasto, teriam de derrubar as árvores, essenciais para o projeto de repovoamento das araras. Seu Modesto não pensou duas vezes e foi enfático: “Foi muito fácil, porque sempre fui criado no meio de bichos. Com o boi não dá pra ter muitos animais, tem que desmatar, e eu isso eu não queria”.
Para adquirir maior conhecimento sobre a atividade, o próprio Roosevelt trabalhou dois anos em uma outra fazenda da região como guia turístico. Assim aprendeu as técnicas necessárias para cativar turistas ávidos por todo tipo de informação sobre fauna e flora. Mas ainda faltava resolver um problema: como atrair as araras de volta?
Sem ter lido manuais de ecologia ou de empreendedorismo, mas com a base da vivência pantaneira, os Sampaio fizeram o que lhes pareceu mais lógico: buscaram autorização para realocar um casal de araras domesticadas que viviam em uma fazenda próxima.
Araras são animais gregários. Por isso, a presença dos animais em refúgio tão apropriado para sua reprodução – nas íngremes paredes do buraco há frestas onde os ninhos ficam protegidos de predadores – acabou atraindo novos “vizinhos”. Como a caça também foi reprimida pelos Sampaio e as árvores preservadas, a chegada de novos “condôminos” foi crescendo, junto com o processo de reprodução natural da espécie.
RETORNO NATURAL
A natureza fez a sua parte no investimento e o retorno foi extraordinário: menos de dez anos depois do pontapé inicial, hoje existem aproximadamente 50 casais de araras vivendo ali. No buraco, as aves saem ao amanhecer, alimentando-se em um raio de 30 quilômetros, e voltam ao final do dia, em um espetáculo belíssimo, capaz de encantar o mais insensível turista.
Mas, enquanto o turismo não emplacou e tornou-se viável economicamente, a família sobreviveu com os poucos bois que tinha, enquanto os filhos faziam “bicos” e a renda era complementada com o arrendamento da fazenda de propriedade da família em Corumbá.
A “esquisitice” de trocar bois por araras começou em 1997, quando os Sampaio deram início à cobrança de ingressos, recebendo em média três visitantes diariamente. Hoje, a média entre alta e baixa temporada está em 30 pessoas, que pagam 5 reais cada.
“Boi, agora, só na parede”, afirma Seu Modesto, apontando para as cabeças empalhadas dos companheiros pantaneiros Crioulo e Dourado, nomes dos dois últimos bovinos que habitaram a propriedade.
Mas essa parede onde estão os bois também foi construída aos poucos. Roosevelt lembra que, no início das visitações, quando ainda não sabiam bem como tudo funcionava, atendiam as pessoas em um banco na entrada da propriedade, ao contrário de várias outras fazendas, que já ofereciam o conforto de banheiros e lanchonetes. “A cada ano, a gente foi colocando uma coisa e agora está assim, bonito, agradável”, orgulha-se, já atrás do balcão da lanchonete que vende souvenirs com formato de araras. Tudo produzido e administrado pela família.
Em 2007, o Buraco das Araras tornou-se Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), protegendo não só araras, mas toda a rica diversidade biológica na reserva. O plano de manejo já começou a ser feito e é financiado pela ONG Conservação Internacional.
Segundo biólogos que já estudaram a biodiversidade da região, há mais de 120 espécies de aves. Tucanos são vistos com grande facilidade no buraco. Além disso, existe um lago no meio, lá embaixo, onde curiosamente vivem dois jacarés-de-papo-amarelo, o que também desperta o interesse dos pesquisadores. O show ainda pode melhorar. Todo ano o número de araras aumenta e, pelos relatos dos antigos moradores, no início do século passado havia uma quantidade de araras cinco vezes maior do que hoje.
A família Sampaio também prospera na gestão da RPPN. O trabalho de Roosevelt como guia e administrador da reserva é tão intenso que ele vem adiando os planos de seguir um curso de Administração.
Para quem chegou em Jardim sem ter tido a chance de estudar, Seu Modesto pode afirmar com a tranqüilidade de quem venceu na vida por meio da conservação: “Hoje sou apaixonado pelas araras. Eu não preciso viajar para conhecer o mundo, o mundo está vindo até a mim…”
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