Não poderia ser maior a incoerência dos que alardeiam confiança absoluta nas conclusões do painel das Nações Unidas sobre mudanças climáticas (IPCC) e simultaneamente aceitam que se possa aguardar o vencimento do tragicômico Protocolo de Kyoto para reformá-lo. Pior, até existe por aqui quem rejeite qualquer margem de dúvida sobre os cenários do IPCC e também concorde que em 2012 o protocolo dê lugar a mero “aprofundamento”, com metas voluntárias para China, Índia e Brasil.
Ora, quem realmente compreender as conseqüências do que diz a maioria esmagadora dos especialistas em aquecimento global – espelhada pelo painel da ONU – será necessariamente obrigado a se posicionar pela denúncia do protocolo e por sua imediata substituição por algo que seja realmente conseqüente. Por um acordo que combine – no mínimo – três eixos:
Em primeiro lugar, o da mais intensa cooperação científica possível na busca de formas de descarbonizar as matrizes energéticas. Baseada na idéia de que se trata de uma guerra contra a pior ameaça à ecossistêmica das futuras gerações, e não de simples combate a mais um dos atuais impactos ambientais. Comparável ao estrago da camada de ozônio, por exemplo.
Em segundo, metas de redução muito mais ambiciosas e obrigatórias para os 20 principais países emissores, causadores de 90% do estrago, independentemente da etapa econômica em que se encontrem.
Terceiro, um imposto mínimo inicial, com acréscimos anuais previamente conhecidos. Por exemplo, de 10 dólares por tonelada emitida de equivalente em dióxido de carbono (CO2e), com aumento de meio dólar a cada ano.
Estes devem ser os ingredientes mínimos de qualquer decisão que rime com as evidências científicas revisadas pelo IPCC. Afinal, já é bem sólida a convicção do painel de que será loucura deixar que a temperatura global aumente 2 graus além de seu nível pré-industrial. Vários dos riscos de relar nesse teto estão bem estimados: entre 700 milhões e 4,4 bilhões de pessoas sofreriam de crescente falta de água; haveria queda de rendimento agrícola em muitos países pobres; as florestas amazônicas seriam irreversivelmente comprometidas; de 15% a 40% das espécies se extinguiriam; geleiras desapareceriam; o derretimento da placa de gelo da Groenlândia aceleraria a elevação do nível do mar; e o permafrost siberiano exalaria seu imenso estoque de metano (CH4), gás estufa bem mais furioso que o dióxido de carbono (CO2).
Como o processo de aquecimento é em grande parte determinado pela concentração desses gases na atmosfera, há 50% de probabilidade de que o marco de 2 graus seja evitado se ela for estabilizada abaixo de 450 partes por milhão em equivalentes de dióxido de carbono (450 ppm CO2e). Ao contrário, se essa concentração não for freada, facilmente passará em alguns decênios para 550 ppm CO2e. Nesse caso, a probabilidade de que o aquecimento ultrapasse os 2graus fica superior a 77%. Pior: com esses de 550 ppm CO2e, a chance de que o aumento da temperatura exceda 3 graus é de 30% a 70%, e a de que exceda 4 graus, de cerca de 24%. Saltos com impactos imprevisíveis, mas tão calamitosos quanto seria o colapso de inúmeros ecossistemas.
Não é difícil perceber, então, a urgência da fixação de um limite inferior a 450 ppm CO2e para a concentração de gases estufa. Lamentavelmente, não é a proposta que mais ganha corpo nos debates internacionais, graças ao sedutor argumento de que o custo anual do combate à mudança climática seria de ínfimos pontos percentuais do PIB global. O influente relatório de Sir Nicholas Stern, cujos principais alvos são os governos dos EUA e da Austrália, toma por baliza esse temerário horizonte de 550, em vez de 450 ppm CO2e.
Impossível, portanto, haver o menor lampejo de otimismo sobre o regime pós-Kyoto que poderá emergir, apesar das rápidas e profundas mudanças de percepção e de consciência a respeito do maior dos problemas ambientais. Problemas que precisarão ser seriamente enfrentados se a humanidade não quiser acelerar o processo de sua própria extinção. Mas que também poderão ser apenas contemporizados caso predomine a preferência por uma estada mais curta no planeta, e repleta, claro, de felicidades, regalias e privilégios para as fatias de cada geração que mais puderem se locupletar.
Como a segunda dessas opções é infinitamente mais provável do que a primeira, nada autoriza supor que as efetivas soluções surgirão de negociações entre governos. Como, por exemplo, a adoção do regime de austeridade exigido pela pretensão de impedir que a elevação de temperatura média da época industrial ultrapasse 2 graus. E, mesmo que por milagre tal propensão se manifestasse, não haveria sequer meios para executá-la.
Como a fusão nuclear dificilmente será obtida neste século, a grande incógnita é o tempo necessário para a viabilização de outras fontes de energia livres de carbono. Daí ser de crucial importância que acordos internacionais sirvam ao menos para acelerar pesquisas de fronteira. Desde o aproveitamento de ondas, marés, e ventos de altitude elevada, até a viabilização de nanobaterias solares ou satélites que irradiem para a Terra energia solar coletada do espaço profundo. Passando provavelmente por alguma viabilização do hidrogênio.
Mas tudo isso continuará sonho se a emissão de carbono não encarecer. Daí porque é tão recomendável a leitura do relatório Aquecimento Global: uma revisão das controvérsias, elaborado em co-autoria com Petterson Vale e disponível na página www.zeeli.pro.br
*José Eli da Veiga é professor titular da FEA-USP e coordenador do Núcleo de Economia Socioambiental.