É a rica biodiversidade que mantém espécies transmissoras de doenças em equilíbrio. Ao afetá-la, a degradação ambiental facilita a emergência e reemergência de moléstias.
As populações que convivem há séculos com a malária na Amazônia adquiriram uma espécie de imunidade e, apesar de contaminadas, não apresentam sintomas. Mas basta uma leva nova de pessoas chegar à região para haver uma explosão da doença: é o que aconteceu durante a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. É o que se nota com o crescimento desordenado de cidades como Manaus. E o que se teme que ocorra nas obras das usinas do Rio Madeira.
A combinação é catastrófica: grande quantidade de pessoas que nunca tiveram contato com malária perto de outras que carregam o agente causador. Todas invadindo o habitat do mosquito transmissor. A epidemia é quase imediata. A receita vale, mudando um ingrediente ou outro, para as mais diversas doenças que têm animais silvestres como hospedeiro ou transmissor.
A ligação entre a degradação ambiental e a emergência ou reemergência de algumas moléstias ganhou destaque nos últimos anos com as projeções feitas por cientistas de todo o mundo sobre os impactos que o aquecimento global pode ter na saúde humana.
Parte-se do princípio de que um planeta mais quente terá mais áreas para abrigar, por exemplo, mosquitos que hoje se concentram na região tropical. Alguns modelos sugerem que, no futuro, doenças como a febre amarela vão se expandir para regiões onde não existem.
No entanto, nem é preciso um evento de proporções globais para perceber que a degradação do ambiente tornou-se um caso de saúde pública. Com o desmatamento de florestas tropicais, situações de desequilíbrio são realidade agora, levando a cada vez mais surtos de malária, leishmaniose, hantavirose, doença de Chagas, entre outras. E a tendência é que o fenômeno só aumente, como mostra pesquisa publicada no fim de fevereiro na revista científica Nature.
Pesquisadores dos Estados Unidos e do Reino Unido divulgaram um mapa dos locais mais prováveis (ou hotspots) para a emergência de epidemias no futuro. Eles fizeram a projeção com base nos dados de 335 surtos de doenças infecciosas emergentes que ocorreram em todo o mundo ao longo dos últimos 60 anos.
Pela análise, perceberam que mais de 60% das doenças, como Aids e Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave), vêm de microrganismos que originalmente afetam animais selvagens. Em segundo lugar, estão as moléstias trazidas por insetos e outros invertebrados, como o vírus do Nilo. É nesta categoria que se encaixam os chamados hotspots do Brasil. O trabalho, coordenado por Peter Daszak, do Consórcio para a Medicina da Conservação, em Nova York, considera possível a emergência de novas moléstias no País diante do quadro de desmatamento da Amazônia e do avanço do homem sobre os remanescentes de florestas no Sul.
Comida de mosquito
Uma boa olhada na situação atual mostra que a previsão dos pesquisadores merece atenção. Os surtos recentes estão direta ou indiretamente ligados a impactos ao ambiente. Em parte, eles ocorrem pela simples invasão de hordas humanas em áreas florestais, como se vê nos casos de crescimento de periferias urbanas em direção à zona rural ou à mata. Ao invadir um novo habitat, o homem está exposto a contrair doenças, como ocorre com os novos surtos de febre amarela – é o caso de pessoas não vacinadas que adentram a mata para fazer ecoturismo ou explorar a floresta. Mas o risco aumenta quando ações humanas sobre o ambiente criam condições para a proliferação de vetores de doenças, como mosquitos e carrapatos.
O parasitologista Luiz Hildebrando Pereira da Silva, um dos principais especialistas em malária do mundo, cita como exemplo o inchaço da população em Manaus. “Lá ocorreu uma intensa migração de pessoas da área rural para a cidade em busca de trabalho. Essa população se instalou nas periferias, onde há uma complexa rede de igarapés (pequenos rios), e acabou obstruindo vários deles. Com isso surgiram criadores de mosquito por toda a periferia da cidade”, explica.
Pereira da Silva lembra que a ação de madeireiros – que retiram da floresta somente o tronco de árvores, deixando para trás galhos e folhas – também perturba a circulação de águas de superfície, criando poças enormes. “Em áreas alagadas extensas, o darlingi (Anopheles darlingi, um dos transmissores da malária) se desenvolve com facilidade. Há 50 anos, quase não se via esse mosquito na floresta. Atualmente ele é majoritário em áreas próximas a populações”, afirma.
Junte-se a isso o fato de que no local de ação de uma madeireira há grande concentração de gente e está formado o quadro para um surto de malária. “Normalmente na floresta a fonte de alimentação do mosquito é pequena, então sua população se mantém controlada. Mas, com uma concentração de, por exemplo, mil pessoas – 4 quilômetros quadrados de pele humana recobrindo sangue –, passa a existir uma fonte alimentar inesgotável para o mosquito”, afirma Pereira da Silva. “Quanto mais pele humana, mais mosquito.”
Claro que para uma epidemia é preciso que haja no local uma fonte de infecção: algumas pessoas que tenham malária. A doença é endêmica entre os ribeirinhos, que, apesar de infectados, desenvolveram certa imunidade e são assintomáticos. Mas, se estiverem próximos a grandes populações sensíveis à doença, a malária pode rapidamente se espalhar. Ocorreu durante as obras da ferrovia Madeira-Mamoré no começo do século XX e teme-se que se repita na construção das hidrelétricas do Rio Madeira. Pereira da Silva, no entanto, é otimista. “Acho que fizemos um certo progresso. Hoje os governos e as empresas estão preparados para evitar que ocorra o mesmo problema.”
Rumo ao sul
A preocupação é válida para a febre amarela, que assustou o Brasil e matou 19 pessoas entre dezembro e final de fevereiro últimos. Especialistas lembram que é natural ao ciclo da doença a ocorrência de surtos periódicos, mas admitem que a invasão cada vez maior de pessoas ao habitat do mosquito transmissor pode elevar o número de casos.
A febre amarela é hoje no Brasil uma doença silvestre, ocorrendo com freqüência entre macacos, e só chega aos humanos quando estes entram na floresta e são picados por um mosquito dos gêneros Haemagogus e Sabethes que tenha anteriormente picado um macaco doente. Nas cidades, o vírus pode vir a ser espalhado pelo Aedes aegypti (transmissor da dengue), mas desde 1942 não há registro de transmissão urbana no País.
Originalmente endêmica na Região Amazônica, a doença ao poucos desce para o sul do País. No fim de 2007, macacos morreram em decorrência da febre amarela nas cercanias de Brasília e nos estados de Goiás e Mato Grosso do Sul. Neste ano, pela primeira vez desde 1973, o Paraguai voltou a ter indícios da moléstia. Apesar disso, devido à ausência de estudos, ainda é prematuro dizer que o avanço se dá por pressões ambientais, afirma o entomologista Ricardo Lourenço, da Fiocruz.
De tempos em tempos, explica Lourenço, a quantidade de macacos que podem contrair a doença em uma região se esgota, porque eles ou se tornaram imunes ou morreram. Aquele local só voltará a ter casos de febre amarela quando novos macacos nascerem e a população se restabelecer.
O mosquito migra, então, para regiões próximas que tenham macacos suscetíveis, causando um novo surto e a migração do problema. “Eles podem voar por quilômetros em busca de alimento”, afirma o entomologista, referindo-se aos mosquitos. Sem contar que os macacos também se deslocam quando há perda de habitat, por exemplo, fazendo com que a doença se movimente em ondas.
Populações em desequilíbrio
Outra situação delicada para a emergência e reemergência de algumas doenças é a chamada homogeneização da paisagem, quando a floresta é substituída por pasto ou algum tipo de plantação.
A questão é que a biodiversidade tem razão de ser. Em um ambiente heterogêneo, as mais diferentes espécies são mantidas em equilíbrio, com populações em quantidade adequada de indivíduos para que nenhuma se sobressaia à outra.
Com a interferência na paisagem, perde-se a riqueza da flora e simplifica-se a fauna.
Sem a mata, boa parte dos animais morre. Outros fogem para locais mais adequados a sua sobrevivência. Restam as espécies mais generalistas, que vivem bem em qualquer ambiente e, sozinhas naquelas novas condições, sem competidores nem predadores, acabam se expandindo.
Ocorre que, às vezes, as espécies sobreviventes são hospedeiras ou transmissoras de agentes causadores de doenças aos seres humanos. O papel da biodiversidade em manter o equilíbrio é um serviço prestado pela floresta a que pouca gente dá atenção, mas, sem ele, a emergência ou reemergência de doenças se torna bem mais possível, acreditam os especialistas.
“Em um ambiente com grande diversidade de mamíferos existem, por exemplo, espécies que são bons reservatórios do Trypanosoma cruzi (causador da doença de Chagas) e outras não. As que são ficam diluídas entre as demais. Com a destruição de habitats, algumas vão desaparecer e outras, mais generalistas, podem ser favorecidas.
Se nesse processo alguns bons reservatórios, como os gambás, sobreviverem, e o homem entrar nesse ambiente, a transmissão da doença será amplificada”, explica a parasitologista Ana Maria Jansen, que estuda a moléstia na Fiocruz.
Em trabalho publicado em 2007 na revista Parasitology, Ana e colegas lembram que, em localidades brasileiras onde novos casos da doença de Chagas foram recordes nos dois anos anteriores, observou-se o mesmo quadro epidemiológico: “Alta pressão humana sobre o ambiente, baixa diversidade de mamíferos como conseqüência, e a manutenção do mais comum e competente reservatório do T. cruzi, o gambá-de-orelha-preta – espécie conhecida por ser generalista quanto ao habitat e cuja abundância tende a aumentar em áreas afetadas por atividades humanas”.
Além da de Chagas, outra doença que chama a atenção pela relação com a degradação ambiental é a hantavirose, uma síndrome febril com complicações cardiopulmonares causada por infecção por hantavírus.
Uma equipe de pesquisadores da Fiocruz e da Universidade de São Paulo está investigando os riscos de surtos da doença em cidades próximas a áreas em que a Mata Atlântica foi derrubada para a plantação de milho e cana. Onde antes viviam diversas espécies de roedores em equilíbrio com outros competidores, e sob controle de predadores, sobreviveram apenas algumas espécies de ratos silvestres, que proliferaram diante da modificação de habitat e da abundância de recursos.
Vírus na plantação?
O hantavírus circula naturalmente entre várias espécies de roedores, apresentando baixa prevalência de infecção em ambientes em equilíbrio. Quando, no entanto, a modificação do ambiente privilegia uma determinada espécie portadora e sua população cresce demais, aumenta também a prevalência do vírus.
“A presença de mais indivíduos pode facilitar a transmissão do vírus entre os ratos. Com isso também aumenta a probabilidade de o homem ter contato com um animal infectado”, explica o zoólogo Paulo D’Andrea, chefe do Laboratório de Biologia e Parasitologia de Mamíferos Silvestres Reservatórios do Instituto Oswaldo Cruz. “Os surtos da doença estão sempre associados a altas populacionais das espécies de roedores mais competentes para a transmissão dos vírus. Há uma ligação clara dos surtos com a modificação do ambiente”.
D’Andréa lembra que ainda não há evidências de que o vírus encontrado em uma determinada população de ratos silvestres no meio de um canavial, por exemplo, é exatamente o mesmo que provoca doenças na população de agricultores que lidam com aquela plantação. Mas, diante dos indícios, é justamente essa a relação que os pesquisadores tentam comprovar.
Quanto mais quente, pior
Como o aquecimento global aumenta os estragos na saúde
Se a pressão humana sobre o ambiente tem impacto na saúde hoje, os efeitos do aquecimento global podem aumentar os estragos. Essa é a expectativa de trabalhos compilados no ano passado pelo Painel Intergovernamental de Mudança Climática (IPCC) e divulgados em seu quarto relatório sobre o assunto.
O clima mais quente deve ficar mais agradável para mosquitos transmissores de doenças. A Europa teme, por exemplo, que doenças como dengue, leishmaniose e malária subam da África em direção ao Mediterrâneo. Estudos feitos no continente africano apontam que lá as regiões montanhosas deverão ficar mais suscetíveis ao inseto transmissor da malária, que passaria a ocupar espaços onde hoje não está presente.
Com a perspectiva de uma freqüência cada vez maior de eventos climáticos extremos, como secas e inundações, os pesquisadores prevêem que populações hoje vulneráveis fiquem em situação de fragilidade ainda maior.
Para o Brasil e outros países em desenvolvimento, a preocupação é com a escassez de água e a indisponibilidade de alimentos. Projeções feitas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontam que o aumento da temperatura deve elevar a aridez do Nordeste, o que pode provocar levas migratórias para o litoral e o Sul do País e ocasionar a redistribuição de doenças endêmicas carregadas pelos migrantes.
Para outras regiões, em especial os grandes aglomerados urbanos do Sudeste, está previsto aumento de chuvas e de inundações, que podem causar uma explosão de doenças relacionadas à água, como diarréias e leptospirose.