Por Carolina Derivi
“No Sertão, a Caatinga, como lhe chamavam os índios (…) Caos de pedras cinzentas cavadas em desordem no chão de argila seca (…) paisagem dura, angulosa, trágica (…) visão que se estende até o infinito.” Roger Bastide, Brasil, Terra de Contrastes
Na série de televisão O Povo Brasileiro, de 1997, inspirada na obra homônima de Darcy Ribeiro, o compositor Paulo Vanzolinicomenta um dos aspectos do Brasil sertanejo: “A vivência naquele sertão é uma proeza cultural tremenda!”
De fato, a Caatinga, que no tupi-guarani significa “mata branca”, é paisagem que abriga um conhecido drama social brasileiro. Os únicos rios perenes que atravessam a região, São Francisco e Parnaíba, têm suas nascentes nos chapadões de cerrado. O solo rochoso e raso é incapaz de reter a pouca água de chuva: 500 milímetros de precipitação média anual. Ainda assim, nos 800 mil quilômetros quadrados do único bioma exclusivamente brasileiro, que abarca todos os estados nordestinos e o Norte de Minas Gerais, instalou-se a região semi-árida mais populosa do mundo, com 28 milhões de pessoas.
Foi ali que os primeiros vaqueiros aprenderam a contornar as agruras do ambiente e do clima, empurrados para o Sertão juntamente com os rebanhos para servir aos engenhos de açúcar que se instalaram na Zona da Mata a partir do século XVI. Desde então, é no comportamento dos ventos, dos anfíbios, das aves, que os profetas do Sertão encontram o prenúncio da chuva ou da desgraça.
O canto do gavião Acauã, que migra quando se aproxima a seca, foi incorporado à crença local como sinal de mau agouro. Canta o menestrel Luiz Gonzaga: Acauã vive cantando/ durante o tempo do verão/ No silêncio das tardes agourando/ chamando a seca pro sertão/ Teu canto é penoso e faz medo/ Te cala Acauã/ Que é pra chuva voltar cedo… Na Caatinga, homem e natureza compartilham a mesma luta pela sobrevivência.
A relação entre a cultura regional e o meio ambiente é tão profunda que levou o sociólogo francês Roger Bastide a identificar nas dificuldades impostas pela aridez do Nordeste a raiz da religiosidade fervorosa do povo sertanejo: “No Sertão, a religião é tão trágica, tão machucada de espinhos, tão torturada de sol quanto a paisagem”. Mas, assim como a cultura sertaneja, que aos olhos do restante do Brasil inspira mais o flagelo da seca e da pobreza, e menos o riquíssimo caldo de artes, festas e crenças, a Caatinga também abriga tesouros menosprezados.
A literatura científica acostumou-se a descrevê-la como pobre em biodiversidade e endemismo (incidência de espécies exclusivas em determinado ambiente). Hoje se sabe que a Caatinga é o bioma semi-árido mais biodiverso do mundo. São 932 espécies vegetais catalogadas, 348 de aves e 185 de peixes. Pelo menos 439 são endêmicas. Mas ainda persiste um grande vácuo científico nessa que é a região menos estudada da América do Sul. Das 53 áreas indicadas como prioritárias para a conservação da Caatinga pelo Atlas oficial do Ministério do Meio Ambiente (MMA), 18 enquadram-se na categoria “insuficientemente conhecidas”.
Até há pouco tempo, o bioma não constava em nenhum dos grandes projetos de conservação que operam em escala mundial. Isso só foi remediado em 2001, quando o programa Homem e Biosfera, da Unesco, criou a Reserva da Biosfera da Caatinga, uma área de 20 mil hectares em Pernambuco dedicada ao uso sustentável e à conservação.
Alexandrina Sobreira, presidente do conselho da Reserva da Biosfera da Caatinga, acredita que o reconhecimento tardio por parte do ambientalismo nacional e internacional teve a ver com o drama humano: “A coisa só começou a mudar nos últimos dez anos, quando se elevaram as críticas às políticas nacionais que enxergavam a Caatinga apenas como uma área de expulsão da população, com a idéia de que a convivência com a seca não seria possível. Os programas eram para resgatar o homem do campo, sem a preocupação de resgatar a questão ambiental”.
Segundo Alexandrina, a Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação, de 1994, teve um papel preponderante na mudança dessa mentalidade sobre áreas vulneráveis. “Mudou um pouco o foco do combate à desertificação em si, para a possibilidade de criar um desenvolvimento sustentável nessas áreas. Nós não temos um deserto. Temos um Semi-Árido com graves problemas hídricos, mas com ativos ambientais muito importantes.”
Essa nova mentalidade também se traduz no desejo de superação da “indústria da seca”. O termo foi usado para designar os projetos extravagantes criados para combater o problema na segunda metade do século XX, e que, no frigir da macaxeira, apenas asseguravam o domínio da elite econômica e do coronelismo. “Não adianta combater um fenômeno natural que existe há milhares de anos e que não vai mudar. Não é uma posição derrotista, é trabalhar alternativas criativas que em muito tempo não se buscaram”, diz Rodrigo Castro, diretor da ONG Associação Caatinga.
Como exemplo, Castro cita o projeto Um Milhão de Cisternas, da ONG Articulação no Semi-Árido (ASA Brasil), em parceria com o MMA. Desde 2003, foram instalados mais de 200 mil desses equipamentos que armazenam água da chuva e são capazes de assegurar o bem-estar de uma família de quatro pessoas por até oito meses de seca. Pretende-se beneficiar 5 milhões de pessoas, ao atingir a meta final.
Convencidos de que a solução está em tecnologias simples, adaptadas à cultura local, os movimentos socioambientais refutam o projeto de transposição do Rio São Francisco, que já está em estágio de construção dos canais que vão bombear até 127 metros cúbicos de água por segundo. Para João Suassuna, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco e especialista em recursos hídricos, o projeto vai beneficiar apenas as grandes lavouras de algodão, uva, feijão e milho. “Com um volume desses de água, não há dúvidas de que vai para o agronegócio. Se usassem tubulações mais simples, o bombeamento seria de meio metro cúbico por segundo, propenso ao consumo domiciliar. Não temos nada contra o agronegócio, mas essa é uma questão moral: primeiro as pessoas”, diz Suassuna. Também há dúvidas se a transposição afetará os múltiplos usos do Velho Chico, que já sustenta cinco usinas hidrelétricas.
Conservação
A má fama da Caatinga também rendeu a ela a lanterna no ranking da conservação. É um dos biomas brasileiros menos protegidos, com apenas 4% de sua área ocupada por unidades de conservação federais. Pouco mais de 1% são áreas de proteção integral. A meta do MMA é alcançar um mínimo de 10%, mas, segundo João Artur Seyffarth, coordenador do Núcleo Caatinga do ministério, não há previsões. “A dificuldade é conciliar os interesses locais. Você tem de desapropriar, comprar as terras, não é barato”, justifica.
No caso do Semi-Árido, as dificuldades são ainda maiores porque é preciso superar a idéia de que áreas protegidas ocupam as terras mais férteis e úmidas, competindo com atividades de sustento da população. “Isso é uma falsa dicotomia. O problema é que faltam investimentos nessa área. No Vale do Catimbal, onde há um Parque Nacional belíssimo, cada município recebe o ICMS ecológico, entre R$ 800 mil a R$ 1 milhão por ano”, esclarece Alexandrina.
Riqueza oculta
Euclides da Cunha, no livro Os Sertões, descreve o homem sertanejo como “forte, esperto, resignado e prático”, desde cedo acostumado à luta. Na vegetação da Caatinga, é quase possível testemunhar a versão biológica da mesma personalidade.
Os galhos retorcidos, as folhas transformadas em espinhos e as raízes profundas são artimanhas que garantem a sobrevivência no meio seco e quente. E é nessa aptidão para a luta que se encontra o maior tesouro da flora nativa: os sinais químicos que permitem à planta reagir a um ambiente hostil, chamados de metabólico-secundários, que são ricos em ativos medicinais.
Um levantamento preliminar feito em apenas quatro municípios de Pernambuco, em 1990, listou mais de 400 plantas com potencial fitoterápico. Desenvolvido recentemente pelo MMA, o projeto Plantas do Futuro buscou o conhecimento do potencial de exploração econômica da vegetação nas cinco regiões brasileiras. No Nordeste, as medicinais ocuparam a liderança entre as espécies consideradas prioritárias.
“Quando se pensa em biodiversidade, pensa-se logo em onde tem muita árvore. Mas a quimiodiversidade da Caatinga é uma coisa impressionante”, considera José Maria Barbosa, chefe do Laboratório de Tecnologia Farmacêutica da Universidade Federal da Paraíba. Ele é capaz de descrever um sem-número de plantas da Caatinga indicadas para o tratamento de diversas doenças, como asma e diabetes, além do potencial para cosméticos e para óleos essenciais.
É no rastro da sabedoria popular que os cientistas encontram as pistas certas para o uso da biodiversidade. “Quase 100% das informações da medicina popular a gente comprova em laboratório”, revela Barbosa.
Mas, por se tratar de um processo caro, que requer altos investimentos em mão-de-obra qualificada e infra-estrutura, o aproveitamento comercial desse segmento ainda é muito incipiente. “Nunca houve interesse de financiamento da indústria farmacêutica na nossa pesquisa. O medicamento sintético hoje em dia é monopolizado pelas multinacionais”, lamenta.
O jaborandi, do qual se extrai a pilocarpina, indicada para tratamento de glaucoma, é o único produto do extrativismo da Caatinga usado para fabricação de medicamento.
Ameaças
A baixa fertilidade do solo em seu interior pode até ter livrado a Caatinga da conversão para fronteira agrícola, mas o mesmo não vale para a pecuária sem porteira. A “mata branca”, assim como o Pampa e uma parcela do Cerrado, é repleta de plantas forrageiras, o que torna a paisagem uma pastagem natural. A pecuária extensiva é uma tradição do Nordeste.
Bom seria se os criadores de hoje dessem ouvidos aos preceitos de Padre Cícero, que já no século XIX ensinava: “Não crie o boi nem o bode soltos; faça cerrados e deixe o pasto descansar”. O MMA considera que o limite do sustentável é um animal a cada 10 hectares. Mas os rebanhos estão ultrapassando esse limite e em muitos municípios a lotação excede um animal por hectare. A situação é mais grave em Pernambuco e no Ceará, seguidos pela Paraíba e pelo Rio Grande do Norte.
Como resultado, a vegetação sofre alteração intensa, já que as espécies vegetais mais consumidas pelos rebanhos tendem a desaparecer, enquanto as menos consumidas podem se propagar muito rapidamente. O efeito em cadeia tem desdobramentos também para a fauna local, que vê o seu habitat natural desaparecer.
“Quando o capim seca, o sertanejo leva o gado para a Caatinga. É uma lógica boa porque a população tende a poupar a Caatinga, que é útil. Mas com o superpastoreio, a situação fica insustentável”, diz Francisco Campello, engenheiro florestal que integra a equipe técnica do GEF – Caatinga (Fundo Global para o Meio Ambiente, financiado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).
Segundo Campello, a pecuária também precisa de manejo sustentável e carece de incentivos, mas a atividade não é regulada por nenhum órgão ambiental. Contudo, a ameaça mais grave parece estar no uso de biomassa como fonte de energia.
A lenha e o carvão vegetal representam cerca de um terço da matriz energética da Região Nordeste. Dos fogões a lenha nos domicílios, passando por olarias, casas de farinha e de cerâmica, até as grandes indústrias, a Caatinga queima. O GEF estima que o consumo de lenha na região seja da ordem de 25 milhões de esteres (1 estere corresponde a 1 metro cúbico de madeira retorcida) por ano.
A cadeia produtiva mais criticada por ambientalistas é o Pólo Gesseiro da região da Chapada do Araripe, entre Ceará, Piauí e Pernambuco, que utiliza lenha para processar o minério gipsita. “É uma indústria que vive basicamente de recursos florestais nativos”, reclama Antonio Carlos Hummel, diretor de Uso Sustentável da Biodiversidade e Florestas do Ibama.
O presidente do Sindicato da Indústria do Gesso, Josias Inojosa Filho, diz que o setor foi vítma de uma trapalhada do governo: “Em 1999, para incentivar o uso do gás da Bolívia, a Petrobras aumentou muito o preço do óleo BPF, que era a grande alternativa que estava sendo usada para poupar a Caatinga. Só que o governo esqueceu que o gás natural só era acessível no litoral. Esqueceu o interior. O jeito foi voltar para a lenha.” Inojosa reconhece que pelo menos 95% da indústria gesseira utiliza lenha. Segundo estimativa do Sindicato, apenas 40% das empresas se abastecem com madeira manejada ou oriunda de reposição florestalobrigatória.
A saída parece estar na ampliação das áreas de manejo que hoje atendem somente 4% da demanda total de lenha na Região Nordeste. Nesse caso, bem-estar ambiental e social se encontram, já que a atividade poderia se transformar numa excelente fonte geradora de renda para as populações locais, sobretudo no período da seca, quando a lavoura se torna inviável.
“Trata-se de uma prática técnica, econômica e socialmente viável. O investimento necessário é muito baixo, entre US$ 25 e US$ 30 por hectare”, diz Campello. O segredo dos custos baixos está numa característica única da Caatinga: a regeneração natural da vegetação. O manejo é realizado com o corte raso das terras em sistema de rodízio. No final de cada ciclo, a mata renasce, como se tivesse ela própria sua idéia de Morte e Vida Severina.
O índice de regeneração é de 90%, mas o Ibama está reformulando a cartilha de manejo para garantir que essa capacidade não seja superestimada. “É uma das poucas alternativas para firmar o homem na terra”, diz Campello. “Se você for numa área que foicortada há dois meses, hoje ela já está com 1 metro de regeneração.” A paisagem “dura e trágica” se renova em generosidade, capaz de renovar também a parceria entre os fortes: sertão e sertanejo.