Representante dos produtores de açúcar e álcool, Marcos Jank está no olho do furacão do debate sobre a influência dos biocombustíveis no encarecimento mundial de alimentos. No dia em que recebeu PÁGINA 22 na sede da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), da qual é presidente, eram anunciadas duas grandes operações no setor, que projeta para 2008/2009 a maior safra de todos os tempos. Suas declarações evidenciam o jogo de forças entre pesos pesados da economia e a disputa para abocanhar as maiores fatias. A seu ver, o bombardeio à agroenergia parte de lobbies contrários, como o dos combustíveis fósseis, de parcela da indústria auto- FOTO: BRUNO BERNARDimobilística e da alimentícia. Por isso, Jank aceita a cobrança pela sustentabilidade do etanol, mas desde que feita também ao setor petrolífero e às demais culturas agrícolas. Enquanto defende na produção da cana as melhores práticas socioambientais, é a favor do uso dos controversos transgênicos e da ocupação do Cerrado. Ex-presidente do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais, considera a inflação dos alimentos resultado do descompasso momentâneo entre a oferta, prejudicada por fenômenos climáticos, e a demanda, impulsionada por países emergentes, além da alta dos insumos agrícolas oriundos do petróleo.
Por Amália Safatle
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Acabam de ser anunciadas duas grandes operações no mercado alcooleiro. O que significa esse movimento? É a primeira vez que uma petroleira no mundo compra uma usina e a primeira vez que uma usina compra uma distribuidora. A British Petroleum (BP) entrou no mercado brasileiro de biocombustíveis, ao comprar 50% da Tropical, usina do grupo Biaggi, e o Grupo Cosan comprou a operação brasileira da Esso, composta de 1.500 postos. Apesar das críticas ao álcool, há um movimento empresarial. De um lado, as grandes empresas de petróleo interessadas em conhecer o setor de álcool de perto e a tentativa de ingressar nele – o que é muito bom, porque a BP tem enorme poder de influência, sobretudo no mercado inglês. E, de outro lado, a Cosan. Quando se anunciou a venda da Esso e, hoje, se anuncia a venda Texaco, sempre achamos que o setor alcooleiro tinha de entrar nisso.
Ainda não foi fechada a venda da Texaco? Não, a Petrobras havia manifestado interesse em comprar a Esso e a Texaco, e para nós seria muito ruim ver uma concentração na mão da Petrobras, que já tem mais 40% da distribuição de combustível. Então, o fato de uma grande empresa do nosso setor entrar em distribuição é uma mudança importante. Aqui dentro se fala que o setor deveria se aproximar mais do consumidor, não ficar vendendo álcool na porteira, mas também entrar em distribuição. O que acontece, então, é um maior domínio da cadeia produtiva.
Essas operações indicam o fortalecimento do setor de biocombustíveis? Digamos que é uma estratégia de uma grande empresa do setor. Não dá pra dizer ainda que isso vá se repetir em larga escala. Mas a Cosan, além do tamanho que já tinha, dá um salto na cadeia produtiva. As duas operações foram anunciadas hoje, mas não têm nada a ver uma com a outra. Nós ainda teremos de refletir sobre isso, e neste momento é difícil dar uma declaração, porque não se sabe se isso é ou não um movimento isolado.
Pelo menos hoje esses anúncios tiram o foco da discussão dos biocombustíveis versus oferta de alimentos? Não sei se vai tirar, porque a discussão dos alimentos nasceu de uma decisão relativamente equivocada dos EUA e da Europa de fazer biocombustíveis em larga escala de matérias-primas agrícolas centrais nas suas cadeias produtivas. O fato de os americanos usarem grandes quantidades de milho para fazer álcool e os europeus grandes quantidades de canola para o biodiesel teria gerado uma pressão que estaria puxando o preço dos alimentos, o que não é verdade. O que realmente está puxando é a demanda asiática, problemas de oferta no mundo e o custo do petróleo na produção agrícola.
Estas são as verdadeiras razões, a seu ver? Sim. A influência (dos biocombustíveis na alta dos alimentos) nos EUA existe em relação ao milho, e pode ser totalmente superada se for aumentada a produtividade. E no Brasil essa influência não existe. O País aumentou muito sua produção de álcool, ao mesmo tempo que a de soja, milho, algodão, carne, leite, café, fumo. E se tornou um dos maiores produtores do mundo de alimentos, de rações, de fibras e de agroenergia. Isso graças ao aumento da produtividade.
Mesmo com toda a perspectiva de uma demanda crescente por agroenergia, não o existe risco de futuramente afetar a oferta de alimentos? Nós já substituímos 50% da gasolina no Brasil por etanol, usando apenas 1% da área agricultável.
Essa área agricultável inclui vegetação nativa? Não. Estou excluindo 60% de florestas, Pantanal, biomas sensíveis. Sobram 40%. Desses 40%, estamos usando 1% para fazer etanol de cana.
Mas existe uma demanda crescente para exportação, não? Sim, mas é muito incipiente ainda. Porque o mercado não existe no mundo. O que existe é o mercado brasileiro de carros flex, mistura de álcool nos motores a gasolina (leia reportagem sobre indústria automobilística à pág. 40). Não faz sentido pegar uma coisa no Brasil que ocupa 7 milhões de hectares de cana, sendo 3,5 milhões para fazer álcool, e dizer que isso tem algum problema num país com 340 milhões de hectares agricultáveis, e dentro de um mundo que tem potencial gigantesco para fazer agroenergia na África, na Ásia, na América Central, na América do Sul.
Podemos incluir a questão dos subsídios agrícolas à alta de preços dos alimentos? Não. Hoje há 20 países no mundo que abastecem 200 com combustível fóssil. Com os agrocombustíveis, poderia ter 100 países produtores. É bem mais democrático e pode beneficiar os países em desenvolvimento. Depois tem a discussão sobre o protecionismo. O que é imoral não é alocar uma pequena quantidade de matéria-prima agrícola para fazer biocombustíveis, e sim o mundo rico gastar bilhões de dólares para produzir artificialmente (com subsídios) produtos que têm um custo muito maior do que teriam nos países em desenvolvimento. É uma questão importante, mas não diria que está ligada à inflação neste momento. Essa inflação decorre do problema de oferta e demanda. Oferta problemática, em razão de secas, safras agrícolas baixas, demanda acelerada e uma questão de custo. Alguns itens para produção de alimentos, como óleo diesel e fertilizantes, tiveram aumentos brutais nos últimos tempos, por causa do petróleo. É curioso as pessoas falarem mal de biocombustíveis, que equivale a 1% do consumo de produtos fósseis, e não falar dos outros 99%. O fato de o petróleo ter passado de US$ 30 para US$ 120 não tem merecido da mídia uma atenção como os biocombustíveis.
Por quê? Trata-se de uma perseguição? Perseguição não é bem a palavra. No momento em que os produtos agrícolas deixam o mundo dos alimentos, e começam a entrar no da energia, encontram forças muito poderosas, como as do mundo petrolífero e algumas empresas automobilísticas – a resistência ao álcool na Europa em parte vem da indústria que investiu em carros a diesel. E também um ator importante, que tem feito lobby contrário, é a indústria alimentar. O grande erro é colocar tudo na mesma sacola, em vez de pontuar e dizer: realmente há um problema nos EUA, mas não há com o álcool da cana. Os preços de açúcar e álcool estão, inclusive, muito baixos.
Outro fator apontado para a alta dos preços é a especulação no mercado financeiro em torno das commodities agrícolas. Fundos hedge (especulativos) e até pequenos investidores estariam contribuindo para inflar preços. O senhor concorda? É preciso ver, hoje, o que são razões estruturais e razões conjunturais. Estruturalmente, há o problema de demanda e oferta, que vai ser resolvido com o tempo e é localizado. O papel dos hedge funds tem sido qual? São fundos que ficam migrando atrás de possibilidades de lucro.E, de repente, quando o mercado financeiro está complicado – e tem estado por conta da crise americana –, o pessoal fala: “Vamos investir um pedacinho disso em commodities” (leia reportagem de capa sobre os mercados à pág.16). Isso causa uma volatilidade maior, pois é um capital altamente especulativo. Acaba transformando uma alta de preços em uma alta muito maior, ou uma baixa em uma baixa muito maior, amplificando o sobe-e-desce.
Isso acaba afetando a economia real, a vida produtor e do consumidor. E o produtor não ganha nada com isso.
Em um artigo recente, o jornalista Paul Krugman cita essas mesmas razões de oferta e demanda, mas acrescenta outra, a da escassez dos recursos naturais e os limites físicos do planeta, e a conseqüente dificuldade de atender a toda a demanda crescente de alimentos e energia. O senhor concorda com isso? Não. Desde quando era professor na USP, sempre fuimuito crítico da visão neomalthusiana. A história da agricultura no último século é uma história de imenso ganho de produtividade. A população rural, que no começo do século passado era 50% da total, está se tornando 10%. Quem fica no campo está aumentando imensamente a produtividade, inclusive na Ásia, na América Latina. A industrialização aconteceu no campo também. O que se tem visto no mundo, no último século, é uma redução brutal no preço dos alimentos. Hoje é muito mais fácil produzir alimentos do que há um século. Essa visão malthusiana, de que faltará comida, é um desconhecimento do processo de mudança tecnológica. Na cana, hoje, estamos produzindo 7 mil litros de álcool por hectare. Quando o Proálcool começou, eram 3 mil litros. Há nos laboratórios brasileiros – no Centro de Tecnologia Canavieira, na Embrapa etc. – variedades de cana e técnicas de produção de álcool de segunda geração que podem elevar a produtividade para 14 mil litros por hectare. Podemos dobrar em uma década, sem contar toda a revolução de energia elétrica que está vindo aí, no uso do bagaço e da palha, antes subprodutos jogados fora. Essa transformação da cana de uma cultura alimentícia clássica – da cana-de-açúcar para a cana de etanol e de bioeletricidade – é um dos maiores exemplos no mundo de como se consegue, pela tecnologia, mudar paradigmas. A cana é cada vez mais energética. No Brasil houve ganhos de produtividade nos últimos 15 anos que nenhum país teve. E isso pode acontecer na América do Sul, na África e na Ásia.
O que há, então, é um desajuste momentâneo? Sim. Existe uma questão global: o mundo vai precisar comer muito mais, e vai precisar de muito mais energia.
E o quanto isso é sustentável? A saída para isso é a tecnologia, para que a produção seja sustentável econômica, social e ambientalmente. Ou seja, você pode aumentar a produtividade de alimentos, rações, fibra e energia, sem precisar desmatar. Isso a agronomia nos ensina há muitas décadas e é isso que temos de praticar daqui pra frente. Há muito tempo a gente devia estar praticando isso, mas hoje há essa fronteira, que é a do aumento da produtividade. Não é mais a fronteira da área plantada, como foi no passado. Por exemplo, na Amazônia, há 40 anos, o que o regime militar dizia é que precisava ocupar a Amazônia. Hoje, o que a sociedade quer é preservar a Amazônia. Com isso, abrimos mão de 50% do território brasileiro. Mas nos outros 50% podemos perfeitamente ter uma agricultura de alta produtividade que gere mais alimentos, melhores e mais baratos, mais fibra, mais rações, mais energia.
Mas na prática, quando se tem a possibilidade de ocupar uma área virgem, o produtor não vai preferir ocupá-la em vez de buscar uma área degradada, que exige custos para recuperação? Não é isso que acontece?Por que a mídia assume que a expansão da cana vai se dar em floresta?
Não digo especificamente a cana, mas a produção agropecuária como um todo. Vamos olhar os números.Você tem 3,5 milhões de hectares para fazer álcool e outros 3,5 milhões para fazer açúcar. Aí tem 13 milhões de hectares de milho e 23 milhões de hectares de soja. E 220 milhões de hectares de pastagem. A pastagem, comparada com a cana, é 60 vezes maior. Você precisa ir para a Amazônia? Não. Por que as usinas não estão indo para a Amazônia? Estão indo para o Oeste de São Paulo, para o Triângulo Mineiro. Por quê? Porque lá tem áreas de pastagem degradada, onde há 0,7 ou 0,8 cabeças de boi por hectare. E você tem logística, tem tudo aqui. O que há no Brasil é uma monocultura de pasto. A ocupação do Centro-Oeste foi feita em cima de pasto e soja. Hoje há naquela região uma diversificação do modelo pastosoja para pecuária de corte, pecuária de leite, suínos, aves, soja, milho, algodão, arroz, café, cana. Tudo isso acontecendo em um processo de integração em uma das grandes fronteiras tecnológicas do mundo, com uso de terras de maneira mais intensiva, eficiente, com técnicas conservacionistas incríveis, como a do plantio direto.
Então, por que a taxa de desmatamento no Cerrado hoje é de 22 mil quilômetros quadrados por ano? Se não tivéssemos um pé de cana no Brasil, estaríamos desmatando a Amazônia. A idéia de que a cana e a soja empurram a pastagem para cima não é verdade. As causas do desmatamento são basicamente duas: a falta de direito de propriedade e a falta de fiscalização.
Mas no Cerrado o problema não é esse. Vamos começar pela Amazônia. Lá, para você se instalar, deveria ocupar apenas 20% da área das propriedades.Quando se ocupa mais que isso, está-se quebrando a lei. E, fora isso, mais de 75% das áreas da Amazônia não têm título, são terras do Estado, ou devolutas – há muitas décadas um convite para grileiros e posseiros. Se não mexer nisso, não se vai interromper esse processo. Porque esse desmatamento se dá com a grilagem, a ocupação e o madeireiro ilegal.
Mas não se pode dizer que não tem usinas de cana na Amazônia, ainda que em escala pequena. Tem três usinas lá, que foram criadas naquela política de 40 anos atrás, quando a regra era ocupar. Um caso simbólico é a usina ao norte de Manaus, da Coca-Cola, que foicriada para a empresa se instalar na cidade, pois a regra estabelecia que o açúcar usado na fabricação precisava ser produzido na região. Então a Coca-Cola recebeu incentivo para instalar sua usina lá. Tem cabimento isso no mundo de hoje? Não. Nem tinha naquela época, era até muito mais barato levar açúcar do Sul para lá. Mas se fez a usina. Isso é economicamente viável? Tenho minhas dúvidas. Numa região que tem dez meses de chuva por ano, que não tem logística, se não tiver incentivos, não vai ser vantajoso. A cana é perecível, precisa ser transportada rapidamente. Por isso o pessoal que está indo hoje para Goiás está desesperado para ter um alcoolduto. Então, não consigo enxergar essa necessidade. É até uma contradição você imaginar que um produto que é ambientalmente correto vá se desenvolver em cima de desmatamento. Então, onde a cana está crescendo? Basicamente em cima de áreas de pastagem de baixa produtividade. É isso que os dados de satélite mostram.
Do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Especiais)? Do Inpe, do Canasat (Mapeamento da cana via imagens de satélite), o que você quiser pegar.
Mas e o desmatamento no Cerrado? No Cerrado, a ocupação da cana se dá basicamente em áreas que já tinham sido desmatadas. O agente do desmatamento foi a pastagem. Mas o Cerrado tem de ser preservado em sua íntegra? O que a legislação determina é que, em um tipo de Cerrado, é preciso manter 20% da cobertura vegetal e, em outro, 35%. Essa é uma das leis ambientais mais rígidas do mundo, a reserva legal.
Que não é respeitada, em grande parte. Que é respeitada, sim, em muitos estados. Em algumas regiões, há problemas. Mas se um produtor hoje compra uma terra no Centro-Oeste, vai ter de passar por “n” processos para aprovar o uso dessa terra para agricultura. Jamais conseguirá derrubar tudo.
Só que isso depende de haver fiscalização. Depende, mas a fiscalização tem sido crescente no Cerrado. Nos projetos empresariais que tenho visto, as dificuldades para se implantar uma atividade agrícola é grande. A sociedade tem que dar esse direito de usar essa região. O desenvolvimento de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e outros estados está muito ligado ao agronegócio. Então, se você mantiver as áreas de proteção permanente em ordem, a reserva legal, se fizer um uso racional de água, de agroquímicos, eu não vejo por que não usar essas áreas. A ocupação dentro da legislação brasileira hoje é uma ocupação necessária para o Brasil e o mundo. A lei brasileira é bastante avançada nessa área da ocupação agrícola.
O senhor afirma que a sustentabilidade é um dos temas que mais têm recebido atenção da Unica atualmente. Por quê? Por uma questão estratégica? O tempo na Unica tem sido usado de maneira crescente com o tema da sustentabilidade ambiental e social. Isso está ligado a toda a questão da energia. Quando você passa a utilizar a cana para fazer combustível, ou eletricidade, tem que discutir emissões, mudanças climáticas, uso de água, vinhaça (subproduto poluente do álcool), agroquímicos, transgênicos… Colocou-se uma posição no Brasil historicamente contra transgênicos. Uma forma de se evitar a expansão horizontal da agricultura é aumentar a produtividade. Desde que sejam seguros ambientalmente e como alimentos, é uma tecnologia que não se pode ignorar, até para combater a fome no mundo. Esse debate precisa ser conduzido por cientistas, por especialistas em biossegurança, e não carregados de ideologia.
É que existe o princípio da precaução, segundo o qual, quando se desconhecem os riscos, não se pode avançar. Mas tudo no mundo é precaução, você sempre lida com risco. Os americanos invadiram o Iraque usando o princípio da precaução. Mas não são conhecidos exatamente os efeitos a longo prazo dos transgênicos no ambiente. Vamos pegar o exemplo da soja transgênica. Essa que se planta no País, que demorou tanto tempo para ser aprovada, é uma variedade usada no mundo inteiro.
A soja não tem risco tão alto de contaminação, porque não tem o pólen, como o milho. Certo. Então, você poderia ter uma cana transgênica para fazer álcool. E ninguém até agora conseguiu fazer, não foi liberado. Tenho tido esse debate sobre biossegurança com ONGs, e algumas entendem isso, que se pode reduzir o uso de agroquímicos, de expansão horizontal, produzir alimentos em regiões áridas.
A Unica diz que sua missão é liderar o processo de transformação do tradicional setor de cana em uma moderna agroindústria capaz de competir de modo sustentável. O quanto os agentes produtivos estão preparados para isso? O quanto entendem o conceito da sustentabilidade? A sociedade hoje está mais consciente do tema da sustentabilidade, em todos os níveis, e a produção agrícola também. A própria Esalq (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz), que era uma escola de agronomia, hoje tem gestão ambiental. É claro que o setor da cana, como todo setor, é muito heterogêneo.
E muito tradicional, não é? É, mas também de muita vanguarda. Ao mesmo tempo que a cana chegou aqui em 1532 com os portugueses, hoje é uma fronteira de energia produzida por plantas que o mundo começou a buscar. A Europa está fazendo álcool, os EUA estão fazendo álcool. O que o Brasil fez nos últimos 35 anos hoje é observado pelo resto do mundo.
O quanto um selo socioambiental é decisivo para as exportações de etanol e o quanto está próximo de acontecer? A certificação é uma exigência cada vez mais forte, do exterior, do governo brasileiro, da sociedade. Ela vai existir. O que queremos é que seja feita sobre todas as plantas, e não só sobre a cana. E que se discuta também a sustentabilidade do combustível fóssil.
Para a cobrança não ficar desigual, é isso? É isso. A Unica hoje está se engajando em todas as frentes que discutem sustentabilidade. Estamos, por exemplo, entrando para a Better Sugar Cane Initiative, iniciativa global para melhores padrões de produção de cana. Já estamos conversando com ONGs aqui dentro e lá fora. No ano passado fizemos o protocolo do fim da queima da cana e estamos antecipando o fim da queima muito rapidamente. É o típico assunto que beneficia o lado ambiental, mas causa desemprego (entre os cortadores de cana, pois a colheita torna-se mecanizada).
Já se sabe o que vai ser feito para gerar empregos depois da diminuição da queima da cana na colheita? Estamos discutindo isso com trabalhadores e o próprio governo. Este ano será de um grande debate nacional sobre o sistema trabalhista do setor sucroalcooleiro.
Que tem problemas, e há várias denúncias sobre trabalho degradante. É, tem várias denúncias sobre trabalho degradante. Agora, acho que precisa haver uma clarificação do que é trabalho degradante, porque a lei brasileira é fluida nesse assunto. E tem de haver realmente um processo de combate e eliminação desses problemas, que são exceções, não regras. O que nos preocupa é que as pessoas pegam casos isolados e transformam em regra. É importante verificar os avanços que houve. Nós estamos hoje conversando com trabalhadores colhedores de cana sobre dez itens que serão introduzidos acima do que a lei brasileira prevê. Em São Paulo, estamos eliminando o “gato”, que é o agenciador de mão-de-obra. As empresas associadas à Unica estão com 100% de carteira assinada, mas alguns fornecedores não estão.
E quanto à participação do pequeno produtor no setor? O professor Ignacy Sachs aponta a pequena agricultura da biomassa como uma saída de inclusão social, enquanto o professor José Goldemberg afirma que a produção de etanol só é viável em larga escala. Hoje há 400 usinas e 70 mil fornecedores no País, quase todos pequenos e médios. A presença do pequeno produtor já é real. É um equívoco imaginar que a cana é atividade de grande produtor. Você tem, de fato, cana própria em grandes usinas, mas também uma grande rede de pequenos. Todas as commodities têm essa questão da escala. Agora, a escala não quer dizer que é uma firma única. Pode-se ter uma usina supereficiente, com 30% de cana própria, e 70% de cana contratada de pequenos e médios fornecedores.
O balanço de emissões do etanol de cana em relação ao petróleo é bem favorável à cana. Mas, considerando a queima da cana, que hoje ainda é de 53% do total colhido, mais a do combustível nos automóveis e a de combustível fóssil por máquinas agrícolas e no transporte para as distribuidoras, qual é o balanço das emissões do etanol? Já foi estimado? Já, e a metodologia do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), que usa análise do ciclo de vida, considera tudo isso. De fato, existem essas emissões, mas a cana absorve grande quantidade de CO2, e o balanço é de 90% de redução em comparação à gasolina.
Isso se a cana não tiver causado desmatamento? Sim.
Representante dos produtores de açúcar e álcool, Marcos Jank está no olho do furacão do debate sobre a influência dos biocombustíveis no encarecimento mundial de alimentos. No dia em que recebeu PÁGINA22 na sede da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), da qual é presidente, eram anunciadas duas grandes operações no setor, que projeta para 2008/2009 a maior safra de todos os tempos. Suas declarações evidenciam o jogo de forças entre pesos pesados da economia e a disputa para abocanhar as maiores fatias. A seu ver, o bombardeio à agroenergia parte de lobbies contrários, como o dos combustíveis fósseis, de parcela da indústria automobilística e da alimentícia.
Por isso, Jank aceita a cobrança pela sustentabilidade do etanol, mas desde que feita também ao setor petrolífero e às demais culturas agrícolas. Enquanto defende na produção da cana as melhores práticas socioambientais, é a favor do uso dos controversos transgênicos e da ocupação do Cerrado. Ex-presidente do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais, considera a inflação dos alimentos resultado do descompasso momentâneo entre a oferta, prejudicada por fenômenos climáticos, e a demanda, impulsionada por países emergentes, além da alta dos insumos agrícolas oriundos do petróleo.
Por Amália Safatle
Foto Bruno Bernardi
Acabam de ser anunciadas duas grandes operações no mercado alcooleiro. O que significa esse movimento? É a primeira vez que uma petroleira no mundo compra uma usina e a primeira vez que uma usina compra uma distribuidora. A British Petroleum (BP) entrou no mercado brasileiro de biocombustíveis, ao comprar 50% da Tropical, usina do grupo Biaggi, e o Grupo Cosan comprou a operação brasileira da Esso, composta de 1.500 postos. Apesar das críticas ao álcool, há um movimento empresarial. De um lado, as grandes empresas de petróleo interessadas em conhecer o setor de álcool de perto e a tentativa de ingressar nele – o que é muito bom, porque a BP tem enorme poder de influência, sobretudo no mercado inglês. E, de outro lado, a Cosan. Quando se anunciou a venda da Esso e, hoje, se anuncia a venda Texaco, sempre achamos que o setor alcooleiro tinha de entrar nisso.
Ainda não foi fechada a venda da Texaco? Não, a Petrobras havia manifestado interesse em comprar a Esso e a Texaco, e para nós seria muito ruim ver uma concentração na mão da Petrobras, que já tem mais 40% da distribuição de combustível. Então, o fato de uma grande empresa do nosso setor entrar em distribuição é uma mudança importante. Aqui dentro se fala que o setor deveria se aproximar mais do consumidor, não ficar vendendo álcool na porteira, mas também entrar em distribuição. O que acontece, então, é um maior domínio da cadeia produtiva.
Essas operações indicam o fortalecimento do setor de biocombustíveis? Digamos que é uma estratégia de uma grande empresa do setor. Não dá pra dizer ainda que isso vá se repetir em larga escala. Mas a Cosan, além do tamanho que já tinha, dá um salto na cadeia produtiva. As duas operações foram anunciadas hoje, mas não têm nada a ver uma com a outra. Nós ainda teremos de refletir sobre isso, e neste momento é difícil dar uma declaração, porque não se sabe se isso é ou não um movimento isolado.
Pelo menos hoje esses anúncios tiram o foco da discussão dos biocombustíveis versus oferta de alimentos? Não sei se vai tirar, porque a discussão dos alimentos nasceu de uma decisão relativamente equivocada dos EUA e da Europa de fazer biocombustíveis em larga escala de matérias-primas agrícolas centrais nas suas cadeias produtivas. O fato de os americanos usarem grandes quantidades de milho para fazer álcool e os europeus grandes quantidades de canola para o biodiesel teria gerado uma pressão que estaria puxando o preço dos alimentos, o que não é verdade. O que realmente está puxando é a demanda asiática, problemas de oferta no mundo e o custo do petróleo na produção agrícola.
Estas são as verdadeiras razões, a seu ver? Sim. A influência (dos biocombustíveis na alta dos alimentos) nos EUA existe em relação ao milho, e pode ser totalmente superada se for aumentada a produtividade. E no Brasil essa influência não existe. O País aumentou muito sua produção de álcool, ao mesmo tempo que a de soja, milho, algodão, carne, leite, café, fumo. E se tornou um dos maiores produtores do mundo de alimentos, de rações, de fibras e de agroenergia. Isso graças ao aumento da produtividade.
Mesmo com toda a perspectiva de uma demanda crescente por agroenergia, não o existe risco de futuramente afetar a oferta de alimentos? Nós já substituímos 50% da gasolina no Brasil por etanol, usando apenas 1% da área agricultável.
Essa área agricultável inclui vegetação nativa? Não. Estou excluindo 60% de florestas, Pantanal, biomas sensíveis. Sobram 40%. Desses 40%, estamos usando 1% para fazer etanol de cana.
Mas existe uma demanda crescente para exportação, não? Sim, mas é muito incipiente ainda. Porque o mercado não existe no mundo. O que existe é o mercado brasileiro de carros flex, mistura de álcool nos motores a gasolina (leia reportagem sobre indústria automobilística à pág. 40). Não faz sentido pegar uma coisa no Brasil que ocupa 7 milhões de hectares de cana, sendo 3,5 milhões para fazer álcool, e dizer que isso tem algum problema num país com 340 milhões de hectares agricultáveis, e dentro de um mundo que tem potencial gigantesco para fazer agroenergia na África, na Ásia, na América Central, na América do Sul.
Podemos incluir a questão dos subsídios agrícolas à alta de preços dos alimentos? Não. Hoje há 20 países no mundo que abastecem 200 com combustível fóssil. Com os agrocombustíveis, poderia ter 100 países produtores. É bem mais democrático e pode beneficiar os países em desenvolvimento. Depois tem a discussão sobre o protecionismo. O que é imoral não é alocar uma pequena quantidade de matéria-prima agrícola para fazer biocombustíveis, e sim o mundo rico gastar bilhões de dólares para produzir artificialmente (com subsídios) produtos que têm um custo muito maior do que teriam nos países em desenvolvimento. É uma questão importante, mas não diria que está ligada à inflação neste momento. Essa inflação decorre do problema de oferta e demanda. Oferta problemática, em razão de secas, safras agrícolas baixas, demanda acelerada e uma questão de custo. Alguns itens para produção de alimentos, como óleo diesel e fertilizantes, tiveram aumentos brutais nos últimos tempos, por causa do petróleo. É curioso as pessoas falarem mal de biocombustíveis, que equivale a 1% do consumo de produtos fósseis, e não falar dos outros 99%. O fato de o petróleo ter passado de US$ 30 para US$ 120 não tem merecido da mídia uma atenção como os biocombustíveis.
Por quê? Trata-se de uma perseguição? Perseguição não é bem a palavra. No momento em que os produtos agrícolas deixam o mundo dos alimentos, e começam a entrar no da energia, encontram forças muito poderosas, como as do mundo petrolífero e algumas empresas automobilísticas – a resistência ao álcool na Europa em parte vem da indústria que investiu em carros a diesel. E também um ator importante, que tem feito lobby contrário, é a indústria alimentar. O grande erro é colocar tudo na mesma sacola, em vez de pontuar e dizer: realmente há um problema nos EUA, mas não há com o álcool da cana. Os preços de açúcar e álcool estão, inclusive, muito baixos.
Outro fator apontado para a alta dos preços é a especulação no mercado financeiro em torno das commodities agrícolas. Fundos hedge (especulativos) e até pequenos investidores estariam contribuindo para inflar preços. O senhor concorda? É preciso ver, hoje, o que são razões estruturais e razões conjunturais. Estruturalmente, há o problema de demanda e oferta, que vai ser resolvido com o tempo e é localizado.
O papel dos hedge funds tem sido qual? São fundos que ficam migrando atrás de possibilidades de lucro.E, de repente, quando o mercado financeiro está complicado – e tem estado por conta da crise americana –, o pessoal fala: “Vamos investir um pedacinho disso em commodities” . Isso causa uma volatilidade maior, pois é um capital altamente especulativo. Acaba transformando uma alta de preços em uma alta muito maior, ou uma baixa em uma baixa muito maior, amplificando o sobe-e-desce.
Isso acaba afetando a economia real, a vida produtor e do consumidor. E o produtor não ganha nada com isso.
Em um artigo recente, o jornalista Paul Krugman cita essas mesmas razões de oferta e demanda, mas acrescenta outra, a da escassez dos recursos naturais e os limites físicos do planeta, e a conseqüente dificuldade de atender a toda a demanda crescente de alimentos e energia. O senhor concorda com isso? Não. Desde quando era professor na USP, sempre fui muito crítico da visão neomalthusiana. A história da agricultura no último século é uma história de imenso ganho de produtividade. A população rural, que no começo do século passado era 50% da total, está se tornando 10%. Quem fica no campo está aumentando imensamente a produtividade, inclusive na Ásia, na América Latina. A industrialização aconteceu no campo também. O que se tem visto no mundo, no último século, é uma redução brutal no preço dos alimentos. Hoje é muito mais fácil produzir alimentos do que há um século. Essa visão malthusiana, de que faltará comida, é um desconhecimento do processo de mudança tecnológica. Na cana, hoje, estamos produzindo 7 mil litros de álcool por hectare. Quando o Proálcool começou, eram 3 mil litros. Há nos laboratórios brasileiros – no Centro de Tecnologia Canavieira, na Embrapa etc. – variedades de cana e técnicas de produção de álcool de segunda geração que podem elevar a produtividade para 14 mil litros por hectare. Podemos dobrar em uma década, sem contar toda a revolução de energia elétrica que está vindo aí, no uso do bagaço e da palha, antes subprodutos jogados fora. Essa transformação da cana de uma cultura alimentícia clássica – da cana-de-açúcar para a cana de etanol e de bioeletricidade – é um dos maiores exemplos no mundo de como se consegue, pela tecnologia, mudar paradigmas. A cana é cada vez mais energética. No Brasil houve ganhos de produtividade nos últimos 15 anos que nenhum país teve. E isso pode acontecer na América do Sul, na África e na Ásia.
O que há, então, é um desajuste momentâneo? Sim. Existe uma questão global: o mundo vai precisar comer muito mais, e vai precisar de muito mais energia.
E o quanto isso é sustentável? A saída para isso é a tecnologia, para que a produção seja sustentável econômica, social e ambientalmente. Ou seja, você pode aumentar a produtividade de alimentos, rações, fibra e energia, sem precisar desmatar. Isso a agronomia nos ensina há muitas décadas e é isso que temos de praticar daqui pra frente. Há muito tempo a gente devia estar praticando isso, mas hoje há essa fronteira, que é a do aumento da produtividade. Não é mais a fronteira da área plantada, como foi no passado. Por exemplo, na Amazônia, há 40 anos, o que o regime militar dizia é que precisava ocupar a Amazônia. Hoje, o que a sociedade quer é preservar a Amazônia. Com isso, abrimos mão de 50% do território brasileiro. Mas nos outros 50% podemos perfeitamente ter uma agricultura de alta produtividade que gere mais alimentos, melhores e mais baratos, mais fibra, mais rações, mais energia.
Mas na prática, quando se tem a possibilidade de ocupar uma área virgem, o produtor não vai preferir ocupá-la em vez de buscar uma área degradada, que exige custos para recuperação? Não é isso que acontece? Por que a mídia assume que a expansão da cana vai se dar em floresta?
Não digo especificamente a cana, mas a produção agropecuária como um todo. Vamos olhar os números.Você tem 3,5 milhões de hectares para fazer álcool e outros 3,5 milhões para fazer açúcar. Aí tem 13 milhões de hectares de milho e 23 milhões de hectares de soja. E 220 milhões de hectares de pastagem. A pastagem, comparada com a cana, é 60 vezes maior. Você precisa ir para a Amazônia? Não. Por que as usinas não estão indo para a Amazônia? Estão indo para o Oeste de São Paulo, para o Triângulo Mineiro. Por quê? Porque lá tem áreas de pastagem degradada, onde há 0,7 ou 0,8 cabeças de boi por hectare. E você tem logística, tem tudo aqui. O que há no Brasil é uma monocultura de pasto. A ocupação do Centro-Oeste foi feita em cima de pasto e soja. Hoje há naquela região uma diversificação do modelo pasto soja para pecuária de corte, pecuária de leite, suínos, aves, soja, milho, algodão, arroz, café, cana. Tudo isso acontecendo em um processo de integração em uma das grandes fronteiras tecnológicas do mundo, com uso de terras de maneira mais intensiva, eficiente, com técnicas conservacionistas incríveis, como a do plantio direto.
Então, por que a taxa de desmatamento no Cerrado hoje é de 22 mil quilômetros quadrados por ano? Se não tivéssemos um pé de cana no Brasil, estaríamos desmatando a Amazônia. A idéia de que a cana e a soja empurram a pastagem para cima não é verdade. As causas do desmatamento são basicamente duas: a falta de direito de propriedade e a falta de fiscalização.
Mas no Cerrado o problema não é esse. Vamos começar pela Amazônia. Lá, para você se instalar, deveria ocupar apenas 20% da área das propriedades.Quando se ocupa mais que isso, está-se quebrando a lei. E, fora isso, mais de 75% das áreas da Amazônia não têm título, são terras do Estado, ou devolutas – há muitas décadas um convite para grileiros e posseiros. Se não mexer nisso, não se vai interromper esse processo. Porque esse desmatamento se dá com a grilagem, a ocupação e o madeireiro ilegal.
Mas não se pode dizer que não tem usinas de cana na Amazônia, ainda que em escala pequena. Tem três usinas lá, que foram criadas naquela política de 40 anos atrás, quando a regra era ocupar. Um caso simbólico é a usina ao norte de Manaus, da Coca-Cola, que foi criada para a empresa se instalar na cidade, pois a regra estabelecia que o açúcar usado na fabricação precisava ser produzido na região. Então a Coca-Cola recebeu incentivo para instalar sua usina lá. Tem cabimento isso no mundo de hoje? Não. Nem tinha naquela época, era até muito mais barato levar açúcar do Sul para lá. Mas se fez a usina. Isso é economicamente viável? Tenho minhas dúvidas. Numa região que tem dez meses de chuva por ano, que não tem logística, se não tiver incentivos, não vai ser vantajoso. A cana é perecível, precisa ser transportada rapidamente. Por isso o pessoal que está indo hoje para Goiás está desesperado para ter um alcoolduto. Então, não consigo enxergar essa necessidade. É até uma contradição você imaginar que um produto que é ambientalmente correto vá se desenvolver em cima de desmatamento. Então, onde a cana está crescendo? Basicamente em cima de áreas de pastagem de baixa produtividade. É isso que os dados de satélite mostram.
Do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Especiais)? Do Inpe, do Canasat (Mapeamento da cana via imagens de satélite), o que você quiser pegar.
Mas e o desmatamento no Cerrado? No Cerrado, a ocupação da cana se dá basicamente em áreas que já tinham sido desmatadas. O agente do desmatamento foi a pastagem. Mas o Cerrado tem de ser preservado em sua íntegra? O que a legislação determina é que, em um tipo de Cerrado, é preciso manter 20% da cobertura vegetal e, em outro, 35%. Essa é uma das leis ambientais mais rígidas do mundo, a reserva legal.
Que não é respeitada, em grande parte. Que é respeitada, sim, em muitos estados. Em algumas regiões, há problemas. Mas se um produtor hoje compra uma terra no Centro-Oeste, vai ter de passar por “n” processos para aprovar o uso dessa terra para agricultura. Jamais conseguirá derrubar tudo.
Só que isso depende de haver fiscalização. Depende, mas a fiscalização tem sido crescente no Cerrado. Nos projetos empresariais que tenho visto, as dificuldades para se implantar uma atividade agrícola é grande. A sociedade tem que dar esse direito de usar essa região. O desenvolvimento de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e outros estados está muito ligado ao agronegócio. Então, se você mantiver as áreas de proteção permanente em ordem, a reserva legal, se fizer um uso racional de água, de agroquímicos, eu não vejo por que não usar essas áreas. A ocupação dentro da legislação brasileira hoje é uma ocupação necessária para o Brasil e o mundo. A lei brasileira é bastante avançada nessa área da ocupação agrícola.
O senhor afirma que a sustentabilidade é um dos temas que mais têm recebido atenção da Unica atualmente. Por quê? Por uma questão estratégica? O tempo na Unica tem sido usado de maneira crescente com o tema da sustentabilidade ambiental e social. Isso está ligado a toda a questão da energia. Quando você passa a utilizar a cana para fazer combustível, ou eletricidade, tem que discutir emissões, mudanças climáticas, uso de água, vinhaça (subproduto poluente do álcool), agroquímicos, transgênicos… Colocou-se uma posição no Brasil historicamente contra transgênicos. Uma forma de se evitar a expansão horizontal da agricultura é aumentar a produtividade. Desde que sejam seguros ambientalmente e como alimentos, é uma tecnologia que não se pode ignorar, até para combater a fome no mundo. Esse debate precisa ser conduzido por cientistas, por especialistas em biossegurança, e não carregados de ideologia.
É que existe o princípio da precaução, segundo o qual, quando se desconhecem os riscos, não se pode avançar. Mas tudo no mundo é precaução, você sempre lida com risco. Os americanos invadiram o Iraque usando o princípio da precaução. Mas não são conhecidos exatamente os efeitos a longo prazo dos transgênicos no ambiente. Vamos pegar o exemplo da soja transgênica. Essa que se planta no País, que demorou tanto tempo para ser aprovada, é uma variedade usada no mundo inteiro.
A soja não tem risco tão alto de contaminação, porque não tem o pólen, como o milho. Certo. Então, você poderia ter uma cana transgênica para fazer álcool. E ninguém até agora conseguiu fazer, não foi liberado. Tenho tido esse debate sobre biossegurança com ONGs, e algumas entendem isso, que se pode reduzir o uso de agroquímicos, de expansão horizontal, produzir alimentos em regiões áridas.
A Unica diz que sua missão é liderar o processo de transformação do tradicional setor de cana em uma moderna agroindústria capaz de competir de modo sustentável. O quanto os agentes produtivos estão preparados para isso? O quanto entendem o conceito da sustentabilidade? A sociedade hoje está mais consciente do tema da sustentabilidade, em todos os níveis, e a produção agrícola também. A própria Esalq (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz), que era uma escola de agronomia, hoje tem gestão ambiental. É claro que o setor da cana, como todo setor, é muito heterogêneo.
E muito tradicional, não é? É, mas também de muita vanguarda. Ao mesmo tempo que a cana chegou aqui em 1532 com os portugueses, hoje é uma fronteira de energia produzida por plantas que o mundo começou a buscar. A Europa está fazendo álcool, os EUA estão fazendo álcool. O que o Brasil fez nos últimos 35 anos hoje é observado pelo resto do mundo.
O quanto um selo socioambiental é decisivo para as exportações de etanol e o quanto está próximo de acontecer? A certificação é uma exigência cada vez mais forte, do exterior, do governo brasileiro, da sociedade. Ela vai existir. O que queremos é que seja feita sobre todas as plantas, e não só sobre a cana. E que se discuta também a sustentabilidade do combustível fóssil.
Para a cobrança não ficar desigual, é isso? É isso. A Unica hoje está se engajando em todas as frentes que discutem sustentabilidade. Estamos, por exemplo, entrando para a Better Sugar Cane Initiative, iniciativa global para melhores padrões de produção de cana. Já estamos conversando com ONGs aqui dentro e lá fora. No ano passado fizemos o protocolo do fim da queima da cana e estamos antecipando o fim da queima muito rapidamente. É o típico assunto que beneficia o lado ambiental, mas causa desemprego (entre os cortadores de cana, pois a colheita torna-se mecanizada).
Já se sabe o que vai ser feito para gerar empregos depois da diminuição da queima da cana na colheita? Estamos discutindo isso com trabalhadores e o próprio governo. Este ano será de um grande debate nacional sobre o sistema trabalhista do setor sucroalcooleiro.
Que tem problemas, e há várias denúncias sobre trabalho degradante. É, tem várias denúncias sobre trabalho degradante. Agora, acho que precisa haver uma clarificação do que é trabalho degradante, porque a lei brasileira é fluida nesse assunto. E tem de haver realmente um processo de combate e eliminação desses problemas, que são exceções, não regras. O que nos preocupa é que as pessoas pegam casos isolados e transformam em regra. É importante verificar os avanços que houve. Nós estamos hoje conversando com trabalhadores colhedores de cana sobre dez itens que serão introduzidos acima do que a lei brasileira prevê. Em São Paulo, estamos eliminando o “gato”, que é o agenciador de mão-de-obra. As empresas associadas à Unica estão com 100% de carteira assinada, mas alguns fornecedores não estão.
E quanto à participação do pequeno produtor no setor? O professor Ignacy Sachs aponta a pequena agricultura da biomassa como uma saída de inclusão social, enquanto o professor José Goldemberg afirma que a produção de etanol só é viável em larga escala. Hoje há 400 usinas e 70 mil fornecedores no País, quase todos pequenos e médios. A presença do pequeno produtor já é real. É um equívoco imaginar que a cana é atividade de grande produtor. Você tem, de fato, cana própria em grandes usinas, mas também uma grande rede de pequenos. Todas as commodities têm essa questão da escala. Agora, a escala não quer dizer que é uma firma única. Pode-se ter uma usina supereficiente, com 30% de cana própria, e 70% de cana contratada de pequenos e médios fornecedores.
O balanço de emissões do etanol de cana em relação ao petróleo é bem favorável à cana. Mas, considerando a queima da cana, que hoje ainda é de 53% do total colhido, mais a do combustível nos automóveis e a de combustível fóssil por máquinas agrícolas e no transporte para as distribuidoras, qual é o balanço das emissões do etanol? Já foi estimado? Já, e a metodologia do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), que usa análise do ciclo de vida, considera tudo isso. De fato, existem essas emissões, mas a cana absorve grande quantidade de CO2, e o balanço é de 90% de redução em comparação à gasolina.
Isso se a cana não tiver causado desmatamento? Sim.
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