Uma boa rede de transporte coletivo é saída para os grandes centros urbanos. Mas não aplaca o desejo pelo automóvel – bem de consumo que ainda seduz e congestiona até cidades européias
Por Thiago Guimarães
Entramos no século XXI no rastro de um fantasma: muitos de nós estamos sentados ao volante, emperrados no casual horário de pico na avenida de alguma cidade imensa. Mesmo bombardeado por ambientalistas e urbanistas, o automóvel adaptou-se a diferentes circunstâncias socioeconômicas e consolida-se hoje como objeto de desejo de grandes massas e signo poderoso em diversas sociedades.
Não só no Brasil, onde a indústria automobilística comemora inéditos patamares de produção e de vendas. Também os países desenvolvidos ainda têm grande sede por automóveis. Apesar da abrangente infra-estrutura de transporte público nos principais centros urbanos e do discurso da sustentabilidade bastante presente, a sociedade alemã, por exemplo, não teria por que esperar que a nova edição da Mobilidade na Alemanha, pesquisa conduzida neste momento pelo governo federal, trouxesse um resultado que contrariasse a tendência de maior motorização.
Seria o automóvel um fetiche ou, de fato, meio de transporte superior? Cerca de 55% dos alemães que utilizam ônibus, trem e metrô dizem chegar bem ou muito bem onde desejam; de carro, esse percentual sobe para 90%. Como revelou em abrilo semanário Der Spiegel, o automóvel do alemão médio é um Golf com seis anos de idade, 100 cavalos de potência, vidros e trava elétrica, ar condicionado. Em conseqüência dos 41 milhões de veículos que circulam no país, a perda de produtividade do trabalho, devido ao engarrafamento, atinge a casa dos 100 bilhões de euros por ano.
Esses dados, assim como os numerosos antiexemplos de cidades americanas, atestam que cada um andando em seu próprio carro é insustentável do ponto de vista coletivo. Mas, ainda hoje, o “cada um por si” predomina, seja como fato, seja como desejo. Na Alemanha é assim: quando criança, o menino sonha em ser condutor de trem. Mas quando chegam aos 20 anos, 90% dos jovens tiram a carteira de motorista. Em 1976, 38% dos domicílios não dispunham de um automóvel. Em 2002, um levantamento realizado com 100 mil pessoas constatou que eram apenas 19% os lares sem-carro e que três em cada cinco deslocamentos dependiam de um automóvel.
Mesmo assim, é inegável que os consumidores das hiperpopulosas China e Índia, da Rússia pós-socialista e de países africanos e latino-americanos sejam os principais alvos da indústria automobilística neste começo de século. A demanda de nenhum país desenvolvido é comparável com a desses países emergentes, prognostica Ralf Kambach, especialista em transportes há mais de 20 anos pela consultoria Roland Berger, uma das principais da Alemanha. “Em sua essência, o automóvel é tido como bem fundamental, um pedaço de liberdade para quem o compra”, afirma.
Por isso, do ponto de vista das montadoras, vender carro é importante, mas anos, novas fábricas são esperadas nos mercados emergentes. De acordo com Kambach, investimentos em pesquisa e desenvolvimento de novos produtos também deverão ser feitos em países com mão-deobra barata. Aliás, foi assim que o compacto indiano Tata Nano – carro que custa o equivalente a R$ 4.500 – transformou-se na vedete do último Salão Internacional do Automóvel de Genebra.
Se meu carro falasse
E o maior volume de vendas se dá, sobretudo, em grandes cidades – justamente aquelas que já sofrem com os congestionamentos, a poluição atmosférica e o esgarçamento do tecido urbano em função do uso excessivo do automóvel. Será que os investimentos nos projetos de responsabilidade social e ambiental propagandeados por essas empresas crescem na mesma proporção do volume de produção de veículos nesses países?
Assim formulada, a pergunta foi feita para quatro montadoras com sede na Europa e com relevantes market shares no Brasil. Os retornos foram os mais variados. A Renault silenciou. A Peugeot informou que não tem endereço eletrônico para receber esse tipo de pergunta; pediu para enviá-la por fax (não respondido até o fechamento desta edição). De Turim, a Fiat adiantou que não iria responder nada. A Volkswagen foi a única que não fugiu à questão. Deu uma resposta que, no fundo, poderia vir também das outras empresas.
A empresa responsável pela produção do modelo mais vendido no Brasil espera que a substituição de carros antigos por mais novos – que atendem a padrões de emissão de poluentes mais rigorosos – contribua para reduzir a poluição do ar nas grandes cidades. O interessante é que a indústria vê como oportunidade, e não como risco, as políticas de restrição ao uso do automóvel, como o pedágio urbano de Londres, e a zona ambiental livre de material particulado na região central de Berlim. Tais medidas não deixam de ser interpretadas como uma “mãozinha” do governo para que os cidadãos comprem novos carros. Mais eficientes e menos danosos ao meio ambiente, esses veículos escapam ao cerco e devem sustentar a principal parte das vendas nos próximos anos.
Com relação à perda de tempo provocada pelo excesso de veículos nas ruas das grandes cidades, a Volkswagen responde que pouco pode fazer. “O cliente decide como reagir aos congestionamentos – ele está livre para tomar outro meio de transporte, percorrer rotas alternativas, deixar de realizar o trajeto…”
Para o consumidor em geral, o valor da liberdade – mesmo que esfumaçada em um engarrafamento – parece ser ainda mais forte do que as irrefutáveis motivações ambientais e sociais, que condenam os abusos no uso do carro e reconfiguram o panorama da concorrência industrial. Mas o automóvel ainda parece preservado como ícone de uma inviável modernidade, de uma duvidosa liberdade e, por enquanto, de mobilidade.