Políticas públicas e mudanças no comportamento do consumidor são decisivas para solucionar o caos urbano no trânsito e reduzir a poluição gerada pelo transporte. Mas e a responsabilidade das montadoras? Este é um convite para que participem do debate
Por Giovana Girardi
Os sucessivos recordes de congestionamento registrados em São Paulo neste ano reacenderam os alertas sobre a urgência de investimentos em meios de transporte sustentáveis. Nas páginas de jornais e revistas de todo o País, especialistas cobraram políticas públicas que coloquem o transporte coletivo à frente do individual e, com isso, contribuam também para reduzir a poluição atmosférica e o aquecimento global. É relativamente bem aceita a idéia de criar novas formas de restringir o uso do carro, como pedágios urbanos e a extensão do rodízio. Mas pouco se questiona o papel da indústria automobilística, peça fundamental nessa história.
Ao mesmo tempo que cresce o caos no trânsito, o setor automobilístico apresenta números inéditos de vendas. O primeiro trimestre de 2008 foiconsiderado pela Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave) o melhor da História – só o segmento de automóveis e comerciais leves cresceu 31,7% em comparação com os três primeiros meses de 2007. A cidade de São Paulo sozinha atingiu a marca de 6 milhões de veículos no fi nal de fevereiro – 4,5 milhões são automóveis, o que dá uma média de 1 carro para 2,4 habitantes na cidade.
Em tempos nos quais o setor privado é cada vez mais cobrado a operar de forma socioambientalmente responsável, fica a pergunta: cabe à indústria automobilística de algum modo ajudar a resolver o problema de mobilidade criado pelo uso de seus produtos? Para fomentar o debate que pode ajuda a responder tal questão, PÁGINA 22 ouviu especialistas e o próprio setor.
Onze montadoras – Citroën, Fiat, Ford, General Motors, Hyundai, Honda, Mitsubishi, Peugeot, Renault, Toyota e Volkswagen –, que, segundo a Fenabrave, respondem juntas por mais de 97% das vendas de carros novos, receberam um questionário. Além da pergunta anterior, foram sabatinadas sobre consumo consciente, poluição – e seus impactos no aquecimento global e na saúde –, fontes alternativas de combustível e projetos para minimizar o trânsito. Tiveram dez dias para responder às questões, mas nenhuma empresa se manifestou.
A Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) respondeu em nome do setor (leia quadro “Direção Defensiva”). O presidente da entidade, Jackson Schneider, disse por e-mail que a mobilidade “certamente preocupa a indústria automobilística” e que a “Anfavea tem consciência, por si e pela indústria que representa, que é de sua responsabilidade social colaborar para a fluidez e mobilidade do trânsito”.
Pediu a “urgente adoção” da inspeção técnica veicular, porque “em São Paulo, parte considerável dos congestionamentos decorre de veículos quebrados parados nas principais vias”. Mas não especificou como a indústria poderia efetivamente trabalhar para minimizar o problema.
Dividindo a conta
Para alguns especialistas ouvidos na reportagem, essa postura não cabe diante das atuais circunstâncias. Além do trânsito, os veículos automotores são responsáveis pela maior parte das emissões de gases de efeito estufa da cidade.
“A indústria vem batendo recordes nunca vistos. Já está na hora de começarmos a pensar em coresponsabilizar o setor pelo caos urbano”, afirma o historiador Mauricio Broinizi, coordenador da secretaria-executiva do Movimento Nossa São Paulo. “Deveria participar da conta geral que a população está pagando com doenças respiratórias, cardíacas, estresse, provocados pela poluição. Sem falar no custo do gerenciamento do trânsito.”
Ele recorda dados do patologista Paulo Saldiva, coordenador do Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da Faculdade de Medicina da USP, cuja estimativa é de que por dia cerca de dez pessoas morrem em São Paulo em decorrência dos poluentes do ar e mais 200 adoecem com pneumonia, asma ou sofrem infarto do miocárdio.
“Algumas empresas sabem que vão pagar lá na frente, estão provisionando recursos, assim como ocorreu com a indústria do tabaco. Não é absurdo pensar que em alguns anos vítimas de câncer de pulmão ou traquéia que nunca tenham fumado responsabilizem a indústria automobilística pela poluição atmosférica que os deixou doentes”, complementa Eric Ferreira, diretor de mobilidade do Instituto de Energia e Meio Ambiente.
Para o engenheiro, a indústria poderia colaborar investindo em projetos de transporte sustentável. Ele cita como exemplo o investimento da Fundação Toyota na ONG americana Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento, (ITDP na sigla em inglês), que promove projetos de transporte sustentável em todo o mundo. A montadora apoiou um trabalho em Yogyakarta, na Indonésia, para diminuir o tráfego em uma rua de grande movimento da cidade. O espaço foi transformado para ser mais adequado para pedestres e ciclistas, e o número de veículos caiu 30%.
“Lá fora a indústria vem soltando um pouco de dinheiro, ainda que timidamente, para projetos do tipo. No Brasil não existe nada semelhante, mas acredito que, se a sociedade começar a fazer pressão, a indústria vai começar a apoiar outros métodos de transporte”, diz Ferreira. “É claro que o negócio da indústria é vender, e as pessoas vão continuar comprando, o problema é todo mundo usar o carro ao mesmo tempo.”
A mobilidade que o carro proporciona, segundo o engenheiro, é ótima para viajar e fazer compras, mas diante da situação em que os ônibus da capital paulista trafegam a uma velocidade média de 12 km/h nos horários de pico – menos da metade da média dos automóveis –, a população é “empurrada” para usar o carro no dia-a-dia. “Não só é mais confortável usá-lo, mas mais prático.”
Para mudar o quadro atual, acredita Ferreira, é preciso rever o sistema. “A cidade é hostil ao pedestre, andar é um martírio. As calçadas são ruins, esburacadas e estreitas; as faixas de pedestre ficam às vezes no meio da quadra, em vez de na esquina, com o intuito de melhorar a fluidez do trânsito dos veículos.É tudo pensado para o carro”, afirma, acrescentando que quase não existem ciclovias. “Hoje, investe-se em um sistema em que simplesmente não vaicaber todo mundo.”
Rever o sistema, entretanto, implica oferecer alternativas decentes aos carros, destaca Broinizi. “As pessoas têm direito, principalmente as classes C e D, que nunca tiveram condições e agora podem possuir um veículo”, opina. Para ele, uma alternativa é criar corredores de ônibus com duas faixas, que permitam ultrapassagem. “Isso vai deixar as ruas mais estreitas para os carros, que sofreriam com mais congestionamento, mas o transporte público ganharia qualidade.”
A receita de Broinizi é conhecida, mas custa a ser posta em prática, devido ao desajuste do modelo de transporte, que perdura desde a década de 50. “Foi com JK (Juscelino Kubitschek) que o País abandonou a política do transporte coletivo”, conta o historiador. “Ferrovias e o transporte naval foram suspensos, o início das obras de metrôs foi postergado. Abrimos estradas, rasgamos as cidades com ruas e avenidas. Houve uma série de incentivos para abrigar a indústria que chegava”, lembra. Agora é um bom momento para o setor compartilhar com a sociedade e os governos a responsabilidade por tal modelo, defende Broinizi.
Fernando Almeida, presidente-executivo do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (Cebds), é outro especialista que chama a atenção para a responsabilidade da indústria. “Para caminhar na direção da sustentabilidade, o lucro tem de ser revisto e as empresas precisam repensar suas atuações. Não dá mais tempo de esperar por uma melhora progressiva nos sistemas. Tem de haver uma ruptura”, alerta.
Segundo ele, é melhor que as empresas façam algo por livre e espontânea vontade, antes que sejam obrigadas, como pode ocorrer na Califórnia, que tenta na Justiça estabelecer limites mais rigorosos de emissões de gases. “Ou partem para a prática sustentável ou vão começar a perder terreno.”
Mudança no core business
Uma maneira de pôr a mudança em marcha, acreditam os especialistas, é tocar em um ponto caro à indústria: o incentivo ao consumo. “As campanhas de marketing construíram todo um ideário em cima dos carros que vai muito além da necessidade de ter um veículo. Predomina o individualismo, a satisfação dos desejos próprios. Nas famílias, cada um tem sua TV, seu computador, seu celular e seu carro. Não é à toa que chegamos a uma frota tão grande”, avalia Rachel Biderman, coordenadora-adjunta do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getulio Vargas.
Para sua tese de doutorado, ela investiga o modo como a indústria incentivou o consumo ao longo de sua história. “O carro é visto hoje quase como um ser com desejo, é como se ele externasse a personalidade do dono”, afirma. A pesquisa está no começo, mas Rachel arrisca uma conclusão: “O olhar sobre esse objeto tem de mudar.” Não só por parte do consumidor, mas também da indústria.
“Quando questionadas sobre problemas de poluição e trânsito, as empresas tendem a apresentar somente propostas tecnológicas, novos combustíveis, etc. Mas, se não houver uma mudança de consumo, não funciona”, diz a pesquisadora, para quem a indústria terá de mexer no core business e investir mais em transporte coletivo do que em individual. “Hoje, espera-se de uma Petrobras, por exemplo, um investimento maior em energias alternativas do que em perfuração em busca de petróleo. Por que não cobrar da indústria automobilística a mesma coisa?”
Dificilmente, porém, o futuro trará montadoras que investem em corredores de ônibus, prevê Sérgio Roberto Ribeiro de Souza, sócio-diretor da Quality Way Consultoria, que desenvolve sistemas de sustentabilidade para empresas do setor automobilístico.“Elas devem continuar explorando a tecnologia dos seus produtos, como novos combustíveis, motores mais econômicos, carros mais leves, que consomem menos e geram menos poluição, e mais seguros. Talvez surjam sistemas que possam detectar os trechos com trânsito e indicar novos caminhos.”
Ele reconhece que é pouco. “As montadoras poderiam incentivar o motorista a ter mais consciência no uso do veículo ou investir em educação no trânsito”, diz. Mas completa: “Ainda assim é uma questão complexa que depende muito do governo. As empresas têm responsabilidade e algumas já perceberam que mobilidade é um problema. Mas é prerrogativa delas tomar uma atitude ou não, e isso vai depender de cobrança da sociedade”.
Direção defensiva
Jackson Schneider, presidente da Anfavea, afi rma que os veículos não causam danos à saúde, e, sim, promovem bem-estar social, conforto e dinamismo econômico
Como o setor avalia o caos do trânsito em São Paulo?
A questão da mobilidade em São Paulo e em outras grandes metrópoles certamente preocupa a indústria automobilística. Ao produzir veículos, e não apenas automóveis, mas também comerciais leves, caminhões e ônibus – indispensáveis ao transporte de passageiros e carga –, a indústria faz parte do tema e, claro, também busca soluções dentro de seu campo de atuação. Os congestionamentos têm a ver com a questão do planejamento urbano, com o investimento no transporte de massa, o desenvolvimento da infra-estrutura viária, engenharia do tráfego etc. A mobilidade urbana está na ordem do dia. Há que se buscar soluções estruturais para a questão.
Considera que também é de responsabilidade do setor enfrentar esse problema? O problema é debatido com os órgãos públicos? Acha necessário ou pretende participar da discussão?
A Anfavea tem consciência, por si e pela indústria que representa, que é de sua responsabilidade social colaborar para a fluidez e mobilidade do trânsito e, nesse sentido, participa dos fóruns em que tais temas são debatidos. Por exemplo, é membro permanente das Câmaras Temáticas do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran).
A indústria automobilística tem como objetivo aumentar seus lucros, mas, a longo prazo, o congestionamento não pode inviabilizar o próprio negócio?
A frota brasileira é estimada em cerca de 25 milhões de veículos. A relação média é de um veículo para cada oito habitantes, apesar de nas regiões metropolitanas essas relações serem mais densas. Mas o Brasil detém apenas a décima maior frota em termos mundiais. Os Estados Unidos apresentam uma frota de 241 milhões de unidades. Lá há (quase) um veículo por habitante. Na Europa Ocidental e no Japão, a relação é de um veículo para cada um ou dois habitantes. Sabemos que tais países harmonizaram a relação entre cidadania, transporte público e transporte particular por meio de várias ações conjugadas. Portanto, soluções há. O Brasil haverá de encontrá-las.
O setor tem propostas para ajudar a minimizar o problema?
Uma idéia aventada é investir parte da receita com a venda de carros no transporte coletivo ou na criação de ciclovias. Na aquisição de um automóvel, de 25% a 33% do preço final são recolhidos como IPI, ICMS e PIS/Cofins. Além disso, o consumidor paga um tributo aos estados pela propriedade do veículo, o IPVA. No preço do combustível, também há impostos. Há pedágios nas rodovias concedidas. Manutenção também gera impostos. Ou seja, os veículos recolhem tributos e geram receitas por toda sua vida útil. Só com a venda de veículos se estima a geração anual de R$ 25,7 bilhões em tributos. Cabe às políticas públicas determinar quanto dessa arrecadação deve ser destinada ao transporte coletivo e ao trânsito de modo geral. Um ponto que defendemos é a urgente adoção, em caráter nacional, da Inspeção Técnica Veicular, com o objetivo de tornar boa parte da frota, hoje sem manutenção e em precárias condições de segurança, apta ao tráfego. Em São Paulo, parte considerável dos congestionamentos decorre de veículos quebrados parados nas principais vias.
A indústria trabalha com duas idéias que incentivam diretamente o consumo: a primeira é a do carro dos sonhos; a segunda é a de que os modelos se tornam ultrapassados e a cada três anos é melhor trocar de carro. Isso contraria a noção do consumo consciente como medida para poupar os recursos do planeta. Como o setor enxerga essa questão? Por que os automóveis não são projetados para durar?
A indústria trabalha para oferecer ao consumidor evolução tecnológica e vasta gama de produtos para atender a todas as necessidades, com qualidade e durabilidade. Os veículos não têm, por definição, vida curta. Uma recente estimativa do Sindipeças, entidade que reúne os fabricantes de partes, peças e componentes automotivos, considera a vida útil teórica de automóveis de 20 anos, e de comerciais leves, de 15 anos. Caminhões e ônibus, de 17 a 25 anos. Há preocupação cada vez maior dos fabricantes de veículos de trabalhar com materiais recicláveis. Também incentivamos o consumo consciente e o uso racional dos veículos. A indústria tem investido maciçamente em tornar seus veículos cada vez mais econômicos do ponto de vista de consumo de combustíveis.
São freqüentemente anunciados, por parte da indústria automobilística, carros movidos a energia mais limpa. Por que essas alternativas ainda não chegaram ao grande público? Dependerá sempre da procura do consumidor, ou de uma imposição legal, para que a produção desse tipo de tecnologia seja estimulada, ganhe escala e, então, torne-se economicamente viável e acessível?
A indústria participa do debate e da preocupação com o uso de combustíveis fósseis e do seu fim. No Brasil, a indústria desenvolveu motores que podem rodar exclusivamente com álcool de cana-deaçúcar e os fl ex fuel. Estamos agora participando de outra frente, a do biodiesel. Outras tecnologias que nos levem à emissão zero ou perto disso, como os híbridos, os movidos exclusivamente a energia elétrica, a célula de combustível, estão em estudo. São tecnologias em desenvolvimento, que ainda não estão prontas para o mercado, porque é preciso torná-las efetivas do ponto de vista tecnológico e viáveis economicamente. É preciso conseguir uma escala de produção que reduza custos de tal forma que o produto possa de fato chegar às mãos do consumidor. Certamente serão as tecnologias do futuro. Temos uma frota mundial de 1 bilhão de veículos que roda com combustíveis fósseis em sua maioria – exceto a frota brasileira de álcool e flex fuel, carros com mistura de etanol de milho nos EUA e biodiesel totalmente vegetal em parte da Europa. Toda essa frota terá que ser sucateada para a chegada ao mercado desses novos veículos. De modo que todo esse processo tende a ser lento e gradual.
A indústria automobilística, grande anunciante na mídia nacional e internacional, teme alguma restrição em suas campanhas publicitárias, assim como existe em relação ao incentivo do consumo de bebidas e tabaco?
Não temos esse temor porque, ao contrário de bebidas alcoólicas e tabaco, nossos produtos não causam danos à saúde; trazem soluções, conforto, bem-estar social e dinamizam a economia. As cidades do século 20 e deste século não seriam o que são, em tamanhos e distâncias, se não estivessem ligadas pelo veículo automotor.
Há quem imagine que em alguns anos poderá haver ações judiciais movidas por pacientes com câncer contra a indústria automobilística, a exemplo do que ocorre com a indústria do tabaco. Vários estudos mostram que respirar o ar de São Paulo provoca males consideráveis nas vias respiratórias. Não-fumantes poderiam no futuro alegar que suas doenças são provocadas pelas emissões dos carros. Como o setor enxerga essa questão?
No que diz respeito às emissões veiculares, a legislação brasileira estabelece normas idênticas às das melhores práticas internacionais (EUA, Europa Ocidental, Japão). Os veículos atuais têm redução na fonte em até 97% da emissão de poluentes. Estima-se que de 1986 a 2005 a indústria tenha investido US$ 920 milhões em aquisição de equipamentos e instalações para desenvolvimento, modificações de produtos, adaptações nos processos de manufatura e controle de qualidade; trabalhos de desenvolvimento e projeto, treinamento de pessoal; e instalação de linhas de manufatura de novos componentes, tudo isso relacionado às questões ambientais do veículo automotor. Portanto, é juízo da Anfavea que o automóvel evolui ambientalmente e não pode ser objeto dessa preocupação.