Atingidos pelo aquecimento global saem na frente dos Estados Nacionais ao exigirem reparação pela via legal. Mas como punir os culpados se as pessoas do mundo todo são responsáveis?
Por Carolina Derivi
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Fiat iustitia pereat mundus diz o ditado jurídico que, em latim, funciona como princípio geral do Direito Ocidental moderno. Significa “faça-se justiça, ainda que pereça o mundo”. A inspiração é simples: a justiça deve prevalecer em todas as circunstâncias. Mas nenhum doutrinador romano poderia imaginar que, depois de mais de mil anos de existência, o princípio seria posto à prova ao pé da letra.
Em face da crise climática, o Direito enfrenta um impasse sem precedentes. Se a ciência indica que o aquecimento global é causado pelo homem, e se os danos já existem e tendem a se agravar cada vez mais, como cobrar em juízo a responsabilização se as pessoas do mundo todo são, em maior ou menor grau, responsáveis?
O desafio tomou forma em fevereiro, quando a pequena vila de Kivalina, no Alasca, decidiu processar 20 companhias locais de petróleo e carvão por danos sofridos em decorrência do aquecimento global. Com o derretimento do gelo ártico, o vilarejo de cerca de 400 habitantes passou a enfrentar o avanço do oceano em enchentes constantes. “Casas e prédios correm o risco iminente de desabar sobre mar”, diz o processo.
O tema das mudanças climáticas torna-se cada vez mais comum nos tribunais em países desenvolvidos. Para citar apenas os exemplos mais recentes, em 2007, um grupo de ativistas australianos conseguiu embargar uma mina de carvão da Companhia Centennial Coal, sob a justificativa de que o projeto não levava em conta as conseqüências para a mudança do clima. A ONG Friends of the Earth acionou recentemente o governo do Canadá por não cumprir os compromissos previstos no Protocolo de Kyoto. E, nos Estados Unidos, um embate sobre quem deve regulamentar as emissões de carbono levou 11 estados liderados por Massachusetts à Corte Suprema contra a Agência de Proteção Ambiental americana (EPA, na sigla em inglês).
Mas o caso de Kivalina representa um precedente. É a primeira vez que um grupo de atingidos pelos efeitos do aquecimento global decide processar diretamente empresas que estão entre as maiores emissoras de gases de efeito estufa, por danos financeiros. O custo estimado da inevitável realocação do vilarejo é de US$ 400 milhões.
Os acusados são empresas que desenvolvem atividades ligadas aos hidrocarbonetos na região, como a BP America, que investe US$ 600 milhões em prospecção de petróleo no Alasca anualmente, e a Duke Energy, autora do imenso gasoduto Alaska Highway, que abastece o Canadá e 48 estados americanos. A lista de acionados conta também com alguns gigantes, como a Peabody Energy, maior produtora de carvão no mundo e responsável por 10% de toda a energia elétrica nos Estados Unidos. Procurados pela imprensa americana, os porta-vozes dos acusados não quiseram se manifestar sobre o conteúdo do processo.
Para Giselle Araújo, advogada e pesquisadora do Centro de Estudo de Direito Ambiental da Sustentabilidade da Universidade de Oxford, o caso de Kivalina é o primeiro passo de uma tendência mundial voltada para pressionar os Estados Nacionais a regulamentar suas emissões de carbono. “A prática parece ser realmente efetiva, a partir do momento que se considera que não há legislação nacionalou internacional que atribua a determinados agentes a responsabilidade e os custos. Nesse cenário, é coerente acionar as empresas que estão localmente produzindo a maior parte da poluição e, portanto, do dano”, argumenta Giselle.
A idéia de que os direitos difusos, muito comuns em causas ambientais cujos titulares são indeterminados e ligados por circunstâncias de fato, podem influenciar o comportamento dos governos é compartilhada por Kirsten Engel, professora de Direito da Universidade do Arizona. Nos Estados Unidos, essa área legal é chamada de public nuisance law, que em tradução livre seria algo como “direito dos transtornos públicos”.
“O public nuisance law vem sendo usado desde tempos imemoriais para lidar com situações que ainda não foram regulamentadas pela via política”, disse Kirsten em entrevista ao jornal The New York Times. Mas a professora também alertou: “É muito difícil fazer com que um tribunal aceite que a atividade dessas empresas, e o que elas vêm fazendo por anos, criou um prejuízo público”.
Para responsabilizar as empresas poluidoras pelos danos em Kivalina, é preciso estabelecer o que o Direito chama de nexo de causalidade. Primeiro, reconhecer que a mudança do clima é resultado da ação humana. Depois, comprovar que o fenômeno que se abate sobre o Alasca é causado pelo aquecimento global e não por outros fenômenos naturais. Por fim, o mais difícil dos embates é ligar diretamente as emissões das empresas aos danos observados naquele vilarejo.
Do Alasca à Amazônia
“Essas ações são importantes porque provocam impacto na opinião pública e fazem com que o judiciário se movimente. Mas, do ponto de vista técnico e judicial, não vejo isso com facilidade”, considera Fabio Feldmann, advogado, ambientalista e secretário-executivo do Fórum Paulista de Mudanças Climáticas Globais. “Há aqui uma questão muito nova do ponto de vista legal e doutrinário, porque esse tema surgiu na escala e na dimensão que existe desde 1990, quando foi lançado o primeiro relatório do IPCC. Mas a queima de combustíveis fósseis remonta ao começo da era industrial. Quais poluidores vão ser processados? E a partir de que data?”, questiona.
Feldmann revela que há cerca de um ano vem discutindo com algumas ONGs ambientalistas a possibilidade de processar o governo brasileiro pelo descumprimento do Código Florestal na Amazônia, em uma linha de causa e efeito que relacionaria o desmatamento às mudanças climáticas e por fim os prejuízos em perspectiva para todo o País. A idéia, por ora, não deslanchou.
“Para uma ação como essa, do ponto de vista de ciência, o dano tem de ser bem caracterizado e a relação de causa e efeito também. O risco de promover uma ação com grande grau de incerteza é não ter um resultado positivo, o que pode firmar uma jurisprudência contra”, explica Feldmann. Para ele, o debate sobre danos e responsabilidades do aquecimento global ainda apresenta muitas questões sem resposta.
“Hoje, 20% do aquecimento global atribui-se ao desmatamento. Mas é preciso levar em consideração a complexidade do que nós estamos falando. Quem nós vamos responsabilizar primeiro? Os produtores de gado ou os consumidores de carne?”, provoca.
Um por todos
Segundo Consuelo Yoshida, desembargadora do Tribunal Regional Federal e professora de Direito Ambiental da PUC de São Paulo, nas legislações ambientais mais avançadas, a reparação dos danos pode ser distribuída segundo o princípio da solidariedade. Isso significa que alguns agentes ficam obrigados a compensar a totalidade do dano, sem a necessidade de acionar o elenco completo de causadores.
A desembargadora reconhece que o princípio pode parecer injusto do ponto de vista de quem paga, mas em alguns casos é a única saída. “Esse mecanismo existe para proteger o credor, nesse caso, a sociedade”, explica Consuelo. “Se cobrar o dano de todos for muito complexo e ineficiente, podese evitar desse modo que a sociedade seja penalizada. No caso de Kivalina, a rede de responsabilidade seria sem precedentes.” O princípio, entretanto, não impede que sujeitos eventualmente punidos possam cobrar de outros responsáveis a partilha dos custos.
Vale destacar que a teoria nem sempre se traduz na prática. Em Cubatão, nos anos 80, os graves impactos da poluição sobre o meio ambiente e a saúde da população levaram as empresas do pólo industrial ao banco dos réus. Mas a dificuldade em se estabelecer o nexo causal e a individualização das responsabilidades de 23 complexos industriais com 111 fábricas fez com que o processo se arrastasse até hoje, sem solução.
Consuelo explica que o imbróglio é próprio da burocracia brasileira e não se aplica a outros países: “No Brasil é mais difícil, porque a nossa tradição jurídica é de que tudo deve ser previsto em lei. Mas nos Estados Unidos, muitas vezes, uma única jurisprudência passa a ter um efeito de lei”.
Conspiração
É justamente com base na jurisprudência que se formulou a estratégia para o caso de Kivalina. Os advogados alegam que a indústria de energia, nos Estados Unidos, patrocinou uma campanha de desinformação baseada na controvérsia científica sobre as causas do aquecimento global.
Com isso, pretendem conseguir amparo na decisão judicial que levou a indústria do tabaco a pagar mais de US$ 300 bilhões em indenizações nos Estados Unidos, nos anos 90. Alguns dos advogados que atuam no caso Kivalina participaram também desse processo.
“Aqui nos Estados Unidos, a campanha de desinformação sobre o aquecimento global teve enorme impacto na opinião pública e criou um debate que retardou medidas mais urgentes”, aponta Jennifer Gleason, coordenadora do grupo Environmental Law Alliance Worldwide (Elaw), coletivo de advogados que se dedica a fomentar marcos regulatórios ambientais por meio de ações judiciais em diversos países.
O principal expoente dessa campanha é Patrick Michaels, um dos maiores climatologistas do mundo e também o principal cético em relação ao aquecimento global. Michaels recebeu US$ 100 mil da empresa americana de geração de energia Irea para custear seus estudos e palestras. A mesma empresa promoveu uma campanha de arrecadação entre seus pares para continuar financiando Michaels. A partir daí, os valores são desconhecidos.
Outro indicador de que a controvérsia sobre as mudanças climáticas influenciou a política americana é a longa disputa entre uma coalizão de estados e a EPA. Desde 2003, a Califórnia tenta incluir o dióxido de carbono entre os gases controlados pela leiconhecida como Clean Air Act. Quer promover uma redução de 30% nas emissões de carros e caminhões até 2016 e conseguir permissão para que outros estados adotem a mesma norma. Na primeira tentativa, a EPA recusou a licença alegando “incerteza científica substancial” sobre o efeito estufa e suas causas.
Vira o jogo
Em 2007, depois de a questão ser levada à Corte Suprema, a coalizão conseguiu enfim um resultado favorável. Disse o juiz em seu despacho: “A história sugere que a engenhosidade da indústria, uma vez posta à prova, responde admiravelmente à maioria dos desafios tecnológicos”.
Para Jennifer, essa é uma questão-chave na distribuição de responsabilidades: “Todos temos alguma contribuição para o problema. Mas se centrarmos os esforços nessas grandes companhias que emitem mais, isso vai se traduzir em preços e afetar o público em geral”. Quanto aos efeitos do embate sobre o governo americano, a advogada aposta na inversão do jogo político: “O esperado é que, pressionadas, essas empresas parem de usar seu poder político para influenciar o governo e fiquem mais abertas à regulamentação”.
A despeito dessas novas iniciativas locais, é nos fóruns internacionais que a grande discussão sobre distribuir custos e responsabilidades se trava. Mas, além das discrepâncias entre os países, a questão enfrenta um impasse de ordem hierárquica: acordos internacionais estão subjugados às normas nacionais. Tratados e convenções sobre os mais diversos temas costumam ser assinados, mas pouco cumpridos.
Na última Conferência das Partes sobre o Clima, realizada em dezembro passado, em Bali, a questão dos custos evoluiu com a criação do Fundo de Adaptação, para ajudar as nações mais vulneráveis. “Como isso não foi disciplinado de forma obrigatória, os assuntos ficam numa espécie de limbo, ligados a uma ação voluntária”, lamenta Giselle. “Sem a legislação, protocolos voluntários não têm o condão de gerir uma situação grave. É preciso internalizar as normas”.
Há ainda um grande gargalo no que se refere aos refugiados ambientais, categoria na qual se insere o povoado de Kivalina. O tema ainda não teve respaldo em nenhum acordo internacional, apesar da previsão da Universidade das Nações Unidas (UNU) de que, até 2010, 50 milhões de pessoas terão sido obrigadas a abandonar seus lares em conseqüência de problemas relacionados ao meio ambiente. Em 2007, os habitantes do arquipélago de Carteret, em Papua Nova Guiné, foram os primeiros refugiados das mudanças climáticas, forçados a abandonar as ilhas por causa da elevação do nível do mar.
Diante da urgência e dos entraves, Giselle afirma que o Direito tem a oportunidade de se reinventar e apresentar respostas compatíveis com as demandas atuais: “O Direito Ambiental Brasileiro, por exemplo, é de uma tradição exclusivamente ambiental. Isso faz com que as diferentes demandas estejam sempre em choque. Por isso a tendência do mundo é caminhar em direção ao Direito da Sustentabilidade, um Direito que seja capaz de aliar aspectos econômicos, sociais e ambientais”. Resta saber se esse novo Direito será capaz também de empreender celeridade na corrida contra o relógio climático.
Atingidos pelo aquecimento global saem na frente dos Estados Nacionais ao exigirem reparação pela via legal. Mas como punir os culpados se as pessoas do mundo todo são responsáveis?
Fiat iustitia pereat mundus diz o ditado jurídico que, em latim, funciona como princípio geral do Direito Ocidental moderno. Significa “faça-se justiça, ainda que pereça o mundo”. A inspiração é simples: a justiça deve prevalecer em todas as circunstâncias. Mas nenhum doutrinador romano poderia imaginar que, depois de mais de mil anos de existência, o princípio seria posto à prova ao pé da letra.
Em face da crise climática, o Direito enfrenta um impasse sem precedentes. Se a ciência indica que o aquecimento global é causado pelo homem, e se os danos já existem e tendem a se agravar cada vez mais, como cobrar em juízo a responsabilização se as pessoas do mundo todo são, em maior ou menor grau, responsáveis?
O desafio tomou forma em fevereiro, quando a pequena vila de Kivalina, no Alasca, decidiu processar 20 companhias locais de petróleo e carvão por danos sofridos em decorrência do aquecimento global. Com o derretimento do gelo ártico, o vilarejo de cerca de 400 habitantes passou a enfrentar o avanço do oceano em enchentes constantes. “Casas e prédios correm o risco iminente de desabar sobre mar”, diz o processo.
O tema das mudanças climáticas torna-se cada vez mais comum nos tribunais em países desenvolvidos. Para citar apenas os exemplos mais recentes, em 2007, um grupo de ativistas australianos conseguiu embargar uma mina de carvão da Companhia Centennial Coal, sob a justificativa de que o projeto não levava em conta as conseqüências para a mudança do clima. A ONG Friends of the Earth acionou recentemente o governo do Canadá por não cumprir os compromissos previstos no Protocolo de Kyoto. E, nos Estados Unidos, um embate sobre quem deve regulamentar as emissões de carbono levou 11 estados liderados por Massachusetts à Corte Suprema contra a Agência de Proteção Ambiental americana (EPA, na sigla em inglês).
Mas o caso de Kivalina representa um precedente. É a primeira vez que um grupo de atingidos pelos efeitos do aquecimento global decide processar diretamente empresas que estão entre as maiores emissoras de gases de efeito estufa, por danos financeiros. O custo estimado da inevitável realocação do vilarejo é de US$ 400 milhões.
Os acusados são empresas que desenvolvem atividades ligadas aos hidrocarbonetos na região, como a BP America, que investe US$ 600 milhões em prospecção de petróleo no Alasca anualmente, e a Duke Energy, autora do imenso gasoduto Alaska Highway, que abastece o Canadá e 48 estados americanos. A lista de acionados conta também com alguns gigantes, como a Peabody Energy, maior produtora de carvão no mundo e responsável por 10% de toda a energia elétrica nos Estados Unidos. Procurados pela imprensa americana, os porta-vozes das empresas não quiseram se manifestar sobre o conteúdo do processo.
Para Giselle Araújo, advogada e pesquisadora do Centro de Estudo de Direito Ambiental da Sustentabilidade da Universidade de Oxford, o caso de Kivalina é o primeiro passo de uma tendência mundial voltada para pressionar os Estados Nacionais a regulamentar suas emissões de carbono. “A prática parece ser realmente efetiva, a partir do momento que se considera que não há legislação nacional ou internacional que atribua a determinados agentes a responsabilidade e os custos. Nesse cenário, é coerente acionar as empresas que estão localmente produzindo a maior parte da poluição e, portanto, do dano”, argumenta Giselle.
A idéia de que os direitos difusos, muito comuns em causas ambientais cujos titulares são indeterminados e ligados por circunstâncias de fato, podem influenciar o comportamento dos governos é compartilhada por Kirsten Engel, professora de Direito da Universidade do Arizona. Nos Estados Unidos, essa área legal é chamada de public nuisance law, que em tradução livre seria algo como “direito dos transtornos públicos”.
“O public nuisance law vem sendo usado desde tempos imemoriais para lidar com situações que ainda não foram regulamentadas pela via política”, disse Kirsten em entrevista ao jornal The New York Times. Mas a professora também alertou: “É muito difícil fazer com que um tribunal aceite que a atividade dessas empresas, e o que elas vêm fazendo por anos, criou um prejuízo público”.
Para responsabilizar as empresas poluidoras pelos danos em Kivalina, é preciso estabelecer o que o Direito chama de nexo de causalidade. Primeiro, reconhecer que a mudança do clima é resultado da ação humana. Depois, comprovar que o fenômeno que se abate sobre o Alasca é causado pelo aquecimento global e não por outros fenômenos naturais. Por fim, o mais difícil dos embates é ligar diretamente as emissões das empresas aos danos observados naquele vilarejo.
“Essas ações são importantes porque provocam impacto na opinião pública e fazem com que o judiciário se movimente. Mas, do ponto de vista técnico e judicial, não vejo isso com facilidade”, considera Fabio Feldmann, advogado, ambientalista e secretário-executivo do Fórum Paulista de Mudanças Climáticas Globais. “Há aqui uma questão muito nova do ponto de vista legal e doutrinário, porque esse tema surgiu na escala e na dimensão que existe desde 1990, quando foi lançado o primeiro relatório do IPCC. Mas a queima de combustíveis fósseis remonta ao começo da era industrial. Quais poluidores vão ser processados? E a partir de que data?”, questiona.
Feldmann revela que há cerca de um ano vem discutindo com algumas ONGs ambientalistas a possibilidade de processar o governo brasileiro pelo descumprimento do Código Florestal na Amazônia, em uma linha de causa e efeito que relacionaria o desmatamento às mudanças climáticas e por fim os prejuízos em perspectiva para todo o País. A idéia, por ora, não deslanchou.
“Para uma ação como essa, do ponto de vista de ciência, o dano tem de ser bem caracterizado e a relação de causa e efeito também. O risco de promover uma ação com grande grau de incerteza é não ter um resultado positivo, o que pode firmar uma jurisprudência contra”, explica Feldmann. Para ele, o debate sobre danos e responsabilidades do aquecimento global ainda apresenta muitas questões sem resposta.
“Hoje, 20% do aquecimento global atribui-se ao desmatamento. Mas é preciso levar em consideração a complexidade do que nós estamos falando. Quem nós vamos responsabilizar primeiro? Os produtores de gado ou os consumidores de carne?”, provoca.
Um por todos
Segundo Consuelo Yoshida, desembargadora do Tribunal Regional Federal e professora de Direito Ambiental da PUC de São Paulo, nas legislações ambientais mais avançadas, a reparação dos danos pode ser distribuída segundo o princípio da solidariedade. Isso significa que alguns agentes ficam obrigados a compensar a totalidade do dano, sem a necessidade de acionar o elenco completo de causadores.
A desembargadora reconhece que o princípio pode parecer injusto do ponto de vista de quem paga, mas em alguns casos é a única saída. “Esse mecanismo existe para proteger o credor, nesse caso, a sociedade”, explica Consuelo. “Se cobrar o dano de todos for muito complexo e ineficiente, pode-se evitar desse modo que a sociedade seja penalizada. No caso de Kivalina, a rede de responsabilidade seria sem precedentes.” O princípio, entretanto, não impede que sujeitos eventualmente punidos possam cobrar de outros responsáveis a partilha dos custos.
Mas a teoria nem sempre se traduz na prática. Em Cubatão, nos anos 80, os graves impactos da poluição sobre o meio ambiente e a saúde da população levaram as empresas do pólo industrial ao banco dos réus. Mas a dificuldade em se estabelecer o nexo causal e a individualização das responsabilidades de 23 complexos industriais com 111 fábricas fez com que o processo se arrastasse até hoje, sem solução.
Consuelo explica que o imbróglio é próprio da burocracia brasileira e não se aplica a outros países: “No Brasil é mais difícil, porque a nossa tradição jurídica é de que tudo deve ser previsto em lei. Mas nos Estados Unidos, muitas vezes, uma única jurisprudência passa a ter um efeito de lei”.
Conspiração
É justamente com base na jurisprudência que se formulou a estratégia para o caso de Kivalina. Os advogados alegam que a indústria de energia, nos Estados Unidos, patrocinou uma campanha de desinformação baseada na controvérsia científica sobre as causas do aquecimento global.
Com isso, pretendem conseguir amparo na decisão judicial que levou a indústria do tabaco a pagar mais de US$ 300 bilhões em indenizações nos Estados Unidos, nos anos 90. Alguns dos advogados que atuam no caso Kivalina participaram também desse processo.
“Aqui nos Estados Unidos, a campanha de desinformação sobre o aquecimento global teve enorme impacto na opinião pública e criou um debate que retardou medidas mais urgentes”, aponta Jennifer Gleason, coordenadora do grupo Environmental Law Alliance Worldwide (Elaw), coletivo de advogados que se dedica a fomentar marcos regulatórios ambientais por meio de ações judiciais em diversos países.
O principal expoente dessa campanha é Patrick Michaels, um dos maiores climatologistas do mundo e também o principal cético em relação ao aquecimento global. Michaels recebeu US$ 100 mil da empresa americana de geração de energia Irea para custear seus estudos e palestras. A mesma empresa promoveu uma campanha de arrecadação entre seus pares para continuar financiando Michaels. A partir daí, os valores são desconhecidos.
Outro indicador de que a controvérsia sobre as mudanças climáticas influenciou a política americana é a longa disputa entre uma coalizão de estados e a EPA. Desde 2003, a Califórnia tenta incluir o dióxido de carbono entre os gases controlados pela lei conhecida como Clean Air Act. Quer promover uma redução de 30% nas emissões de carros e caminhões até 2016 e conseguir permissão para que outros estados adotem a mesma norma. Na primeira tentativa, a EPA recusou a licença alegando “incerteza científica substancial” sobre o efeito estufa e suas causas.
Vira o jogo
Em 2007, depois de a questão ser levada à Corte Suprema, a coalizão conseguiu enfim um resultado favorável. Disse o juiz em seu despacho: “A história sugere que a engenhosidade da indústria, uma vez posta à prova, responde admiravelmente à maioria dos desafios tecnológicos”.
Para Jennifer, essa é uma questão-chave na distribuição de responsabilidades: “Todos temos alguma contribuição para o problema. Mas se centrarmos os esforços nessas grandes companhias que emitem mais, isso vai se traduzir em preços e afetar o público em geral”. Quanto aos efeitos do embate sobre o governo americano, a advogada aposta na inversão do jogo político: “O esperado é que, pressionadas, essas empresas parem de usar seu poder político para influenciar o governo e fiquem mais abertas à regulamentação”.
A despeito dessas novas iniciativas locais, é nos fóruns internacionais que a grande discussão sobre distribuir custos e responsabilidades se trava. Mas, além das discrepâncias entre os países, a questão enfrenta um impasse de ordem hierárquica: acordos internacionais estão subjugados às normas nacionais. Tratados e convenções sobre os mais diversos temas costumam ser assinados, mas pouco cumpridos.
Na última Conferência das Partes sobre o Clima, realizada em dezembro passado, em Bali, a questão dos custos evoluiu com a criação do Fundo de Adaptação, para ajudar as nações mais vulneráveis. “Como isso não foi disciplinado de forma obrigatória, os assuntos ficam numa espécie de limbo, ligados a uma ação voluntária”, lamenta Giselle. “Sem a legislação nacional, protocolos voluntários não têm o condão de gerir uma situação grave. É preciso internalizar as normas”.
Há ainda um grande gargalo no que se refere aos refugiados ambientais, categoria na qual se insere o povoado de Kivalina. O tema ainda não teve respaldo em nenhum acordo internacional, apesar da previsão da Universidade das Nações Unidas (UNU) de que, até 2010, 50 milhões de pessoas terão sido obrigadas a abandonar seus lares em conseqüência de problemas relacionados ao meio ambiente. Em 2007, os habitantes do arquipélago de Carteret, em Papua Nova Guiné, foram os primeiros refugiados das mudanças climáticas, forçados a abandonar as ilhas por causa da elevação do nível do mar.
Diante da urgência e dos entraves, Giselle afirma que o Direito tem a oportunidade de se reinventar e apresentar respostas compatíveis com as demandas atuais: “O Direito Ambiental Brasileiro, por exemplo, é de uma tradição exclusivamente ambiental. Isso faz com que as diferentes demandas estejam sempre em choque. Por isso a tendência do mundo é caminhar em direção ao Direito da Sustentabilidade, um Direito que seja capaz de aliar aspectos econômicos, sociais e ambientais”. Resta saber se esse novo Direito será capaz também de empreender celeridade na corrida contra o relógio climático.
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