Fruto da contracultura, a internet renovou o sentido de democracia, cidadania e mobilização. Mas sob o peso da marginalidade digital, a rede prova que não é panacéia. Será o que fizermos dela
Em fevereiro passado, mais de 500 mil cidadãos colombianos se reuniram em Bogotá na maior marcha da história do país contra a violência das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as Farc. Outros milhares protestaram em diversas áreas do país e em outras 100 cidades mundo afora. Dois anos antes, o chefe de milícia congolês, Thomas Lubanga Dyilo, tornara-se o primeiro prisioneiro da Corte Internacional de Justiça, acusado de recrutar crianças como soldados. E, em outubro de 2007, o Conselho de Segurança da ONU condenou a repressão violenta do regime militar de Mianmar contra protestos pacíficos de monges budistas, a primeira manifestação formal do órgão sobre o conflito.
São fatos de uma conturbada geopolítica pós-moderna, amplamente conhecidos e aparentemente desconexos. Mas, na raiz desses acontecimentos, há algo em comum que diz muito sobre as novas formas de mobilização social na chamada “era da informação”: todos foram desencadeados por meio da internet.
Na Colômbia, tudo começou com o engenheiro Oscar Morales, que fundou um grupo de discussão sobre as Farc no site de relacionamentos Facebook, o mais popular da rede mundial. Em menos de um Unimês, 250 mil usuários se inscreveram para apoiar a causa e passaram a trocar informações que resultaram na articulação dos protestos.
Tanto a prisão de Lubanga quanto a mudança de postura da ONU em relação a Mianmar tiveram como fator decisivo a produção de vídeos para a internet com flagrantes dos crimes cometidos contra a população local. As filmagens foram publicadas no site The Hub, uma plataforma on-line para registro audiovisual de violações dos direitos humanos criada pela ONG Witness, organização que há 15 anos atua como facilitadora do uso de novas tecnologias no combate a crimes contra a humanidade. Uma vez na rede, os vídeos se difundiram como rastilho de pólvora, criando um escândalo internacional.
Talvez o aspecto mais imediato que se pode depreender com base nesses casos é a capacidade da internet de documentar situações que os veículos de comunicação tradicionais muitas vezes não alcançam, seja devido a restrições à liberdade de imprensa, seja por questões meramente logísticas. Em 2005, em meio à tragédia provocada pelo furacão Katrina, o jornal Times-Picayune, de Nova Orleans, ficou impossibilitado de funcionar devido à completa destruição das máquinas rotativas. Os repórteres, então, transformaram o site do jornal em um blog. Em 2006, a cobertura em tempo real lhes valeu dois prêmios Pulitzer, pela primeira vez concedidos ao jornalismo on-line.
Ciberativismo
Os fenômenos sociais suscitados pela internet, entretanto, vão muito além das questões pertinentes à imprensa. As novas possibilidades para a construção do conhecimento, e para as relações entre pessoas e comunidades, alteraram o modus operandi dos movimentos sociais, tornando-o nitidamente diverso do tipo de ativismo que prevaleceu no mundo bipolarizado entre comunismo e capitalismo. “É próprio do século 20 a figura do grande intelectual que deve levar a sua idéia salvadora às massas”, explica Simone Andrade Pereira de Sá, doutora em comunicação e diretora da Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura (ABCiber). “Definitivamente acho que a gente não perdeu nada. As lideranças hoje são pulverizadas. O ativismo contemporâneo é a atividade de criar pontes. O agir político está ligado à possibilidade da diversidade.”
Depois de um século tão marcado pela disputa entre dois modelos civilizatórios e pelo papel preponderante dos movimentos de juventude, como o que deu origem ao Maio de 1968, é fácil cair na presunção de que as novas gerações são formadas por “órfãos de causa”. Aparentemente é essa a premissa de uma reportagem da revista Newsweek, publicada em 2007, sobre a crescente agitação dos campi nos Estados Unidos em torno do tema do aquecimento global.
A campanha Step it Up, criada com a ambiciosa missão de persuadir o governo americano a criar regras para reduzir as emissões de carbono, já reúne mais de mil entidades estudantis universitárias, cujas ações se concentram na web. A reportagem compara o fenômeno a movimentos que mudaram a história americana, como a luta pelos direitos civis ou contra a Guerra do Vietnã. E lança a pergunta: “Será esse o próximo grande movimento de juventude?”
Certo é que, armados de novas tecnologias como YouTube, blogs e podcasts, os jovens ativistas de hoje têm larga vantagem sobre os hippies de outrora. Mas isso não se deve apenas à interatividade facilitada e ao novo alcance de disseminação e visibilidade online. Inspirados pela própria internet, os movimentos sociais passaram a apostar em sistemas de gestão mais cooperativos e horizontalizados, que traduzem na vida real uma cultura de rede.
“Redes sempre existiram, mas com a popularização da internet produziu-se um boom de redes sociais no Brasil e no mundo. Para além do aspecto instrumental, a internet foicapaz de ilustrar esse modelo para as pessoas, se é que elas não conseguiam ver isso em outras instâncias da realidade”, diz Cássio Martinho, autor do livro Redes – Uma Introdução às Dinâmicas da Conectividade e da Auto-organização, e um dos maiores especialistas brasileiros nesse conceito.
Segundo Martinho, as redes sociais são sistemas de associação cooperativa, cujo intuito é a troca de informações e experiências e o estabelecimento de parcerias, pautados por uma lógica não hierárquica.
No Brasil, a idéia se difundiu no terceiro setor a partir da Conferência Eco-92, sob influência de outros movimentos internacionais reunidos na ocasião.A Rede Brasileira de Educação Ambiental (Rebea) foi pioneira ao estabelecer um projeto de alcance nacional já em 1992. “Naquela época, marcávamos reuniões por cartas e telefonemas. Era difícil, mas não impossível”, conta Jacqueline Guerreiro, uma das fundadoras da Rebea.
Segundo Jacqueline, a criação da Rebea influenciou o amadurecimento de referências para a educadores ambientais no Brasil, como a idéia de que sociedade e ambientes urbanos são indissociáveis dos ambientes naturais e de que a atuação deve ser interdisciplinar.Como principal conquista ela aponta o empoderamento dos membros para a participação em políticas públicas. Em 2003, o Programa Nacional de Educação Ambiental (Pronea), um projeto conjunto dos Ministério do Meio Ambiente e da Educação, foi gestado pelos membros da rede.
“Hoje é difícil encontrar fóruns oficiais em que os ‘rebeanos’ não tenham assento cativo”, diz Jacqueline. No mesmo ano, quando o então ministro da educação Cristovam Buarque decidiu extinguir a Coordenadoria de Educação Ambiental do ministério, a reação da Rebea foi provocar uma avalanche de e-mails em protesto. Tanto fizeram que Buarque voltou atrás.
“Na hora em que você está num coletivo, a agenda de interesse social é muito mais ampla. As causas se potencializam, a sociedade ganha com isso e atribui mais legitimidade aos seus interlocutores”, considera Cinthia Sento Sé, coordenadora de articulação do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife).
Entre as dificuldades apontadas pelos especialistas está a manutenção da horizontalidade. “É da nossa cultura política achar que ordem é sinônimo de hierarquia”, aponta Martinho. Segundo ele, muitas iniciativas em rede descambam para o controle centralizado de uma entidade ou indivíduo e acabam se descaracterizando. Na outra ponta, estão os entraves práticos do excesso de democracia. “Como todo mundo tem que ser ouvido para tudo, o maior problema é fazer com que a rede não seja tão lenta que ela não possa acontecer. Por outro lado, a rede é um organismo vivo e o processo de construção dos consensos é muito fértil de idéias”, conta Cinthia.
Exclusão e contracultura
Se por um lado a internet possibilitou experiências sociais baseadas em valores da sustentabilidade, por outro, nasceu para ser um novo indicador da desigualdade no mundo. No artigo “Access denied – marginalização na era da informação”, o sociólogo Christian German afirma que “a quinta parte mais pobre dos Information Poor conta com meros 0,2% das conexões à internet, enquanto a quinta parte mais rica dos Information Rich chega a abocanhar mais de 93%. No máximo, 3% da população mundial dispõe atualmente de uma conexão à internet”.
No Brasil, apenas 17% da população possuiconexão domiciliar e 59% jamais utilizaram a rede. Matthew Shirts, curador do projeto Planeta Sustentável, da Editora Abril, exemplifica bem a relatividade do alcance da internet no País. O projeto lançou, primeiramente no portal de mesmo nome, o Manual de Etiqueta Sustentável, um guia com 50 dicas para a responsabilidade socioambiental cotidiana. “Mas foi só quando produzimos 2,5 milhões de encartes e distribuímos junto com as revistas da editora que percebemos uma resposta realmente poderosa por parte do público”, diz Shirts.
Para Alice Gismonti, coordenadora da Rede Jovem, projeto de inclusão digital da ONG Comunitas, a lógica é perversa: “Quem não tem acesso a esse instrumento é justamente quem mais precisa das oportunidades difundidas na web. Informação no Brasil é TV aberta, a que todo mundo tem acesso, mas mantém as pessoas limitadas a um ponto de vista que é quase uma ditadura”.
É importante perceber, entretanto, que a exclusão digital não se limita à questão do acesso à pluralidade de informações, mas também impõe a marginalidade de produção e vivência culturais. É o que o mundo acadêmico passou a chamar de “cibercultura”. Depois de montada a estrutura das relações estabelecidas em rede, criam-se linguagens, signos, fenômenos e normas próprias do meio virtual.
A ética da informação livre, limitada pelo respeito aos direitos intelectuais é uma dessas marcas. Para notá-la, basta tomar como exemplo os softwares livres ou o movimento copyleft. Parte desse caldo cultural se presta também a reproduzir experiências de cidadania que já parecem enfraquecidas nos meios tradicionais. O exemplo mais elementar é a ampla difusão dos fóruns, espaços de debate que ocupam hoje o papel que já foi das “ágoras” em espaços públicos. Mas a vivência da “cibercidadania” pode chegar a quadrantes quase inimagináveis, como as “cibernações”.
Palestinos e expatriados da antiga Iugoslávia, por exemplo, recriaram na internet um ambiente capaz de fortalecer os laços de fraternidade e nação, com base na metáfora da cidadania perdida. A Ciber Yugoslavia, fundada em 1999, tem Constituição, ministérios, passaportes e mais de 16 mil ciberiugoslavos inscritos. Dizem os fundadores: “Quando atingirmos 5 milhões de cidadãos, planejamos requerer o reconhecimento da ONU com status de membro. Quando isso acontecer, reivindicaremos 20 metros quadrados de terra em qualquer parte do planeta e nesse território manteremos o nosso servidor”.
A idéia pode soar um tanto amalucada, mas é bom saber que experiências como as nações virtuais estão superalinhadas com os valores que, lá nos primórdios, fizeram da internet o que ela é hoje. É o que explica Simone, da ABCiber: “A rede nasceu por uma necessidade da inteligência militar americana, no contexto da Guerra Fria. Mas a sua democratização, a partir dos anos 70, é obra da intelectualidade do Vale do Silício. Uma geração de cientistas ligados à contracultura, que contestavam modelos hegemônicos de civilização e que enxergavam na rede a possibilidade de articulação da informação para novos modelos”.
É claro que a internet, por si só, não garante nenhuma transformação social. Em A Sociedade em Rede, a mais célebre obra sobre a era da informação, Manuel Castells escreve: “A sociedade informacional, em sua manifestação global, é também o mundo de Aum Shinrikyo (seita Verdade Suprema), da milícia americana, das ambições teocráticas islâmicas/cristãs e do genocídio recíproco de hutus e tutsis”.
“Seria determinismo tecnológico imaginar a cibercultura como um mundo à parte, uma ferramenta capaz de mudar a sociedade sozinha, já que os discursos de ódio encontram as mesmas facilidades”, ensina Simone. “Mas o que se pode dizer é que a internet se consolidou como um ambiente propício para a prática e a disseminação do espírito colaborativo. E esse é o grande barato.”
Caindo na rede
Uma das características fundamentais das redes é que seus resultados são, em larga medida, imprevisíveis. A convicção de que o ambiente interativo é fértil para a criatividade, além de ser, por si só, uma inovação solidária, é o que move grande parte dos projetos. Apesar disso, as redes desenvolveram um know how em como otimizar os resultados e focar em objetivos, freqüentemente por obra de agentes conhecidos como facilitadores ou animadores. PÁGINA22 selecionou exemplos criativos de mobilização pela inernet:
TakingITGlobal (takingitglobal.org) – Sediada em Toronto, é uma rede mundial voltada para incentivar novos atores sociais, especialmente jovens, a desenvolverem movimentos e projetos em suas próprias localidades. Além de interconectar milhares de membros através do site, os organizadores disponibilizam manuais sobre formulação de projetos, oficinas e captação de recursos, e prestam consultoria especializada.
UnlimitedWorld (unltdworld.com) – Espécie de Orkut da sustentabilidade. Com base na plataforma clássica de site de relacionamentos, a UnLtd — the Foundation for Social Entrepreneurs, sediada em Londres, desenvolveu novas ferramentas para atender indivíduos e organizações com trabalhos socioambientais. Por meio de miniblogs, os usuários podem fazer o upload do conteúdo digital que desejam compartilhar. Um sistema de busca garante a pesquisa por áreas de interesse, campanhas, oportunidades profissionais, produtos e serviços. Para que a interação não fique só no virtual, a ferramenta Let’s meet up informa quando um usuário visitará uma nova cidade e quais são seus interesses.
Ecomom Alliance (ecomomalliance.org) – Só nos Estados Unidos há 82 milhões de mulheres com filhos, que controlam cerca de 85% dos gastos de uma casa. Foi esse cenário que motivou Kimberly Danek Pinkson a lançar uma rede mundial de mães preocupadas com o meio ambiente. O site permite o compartilhamento de noções e estratégias para o consumo responsável. Além disso, Kimberly já formou 76 “ecomães líderes comunitárias” responsáveis por disseminar o movimento além do mundo web.