Sustentabilidade é a nova seara explorada pelos publicitários, que precisam lidar com um consumidor mais alerta à maquiagem verde e clientes nem sempre preparados para adequar discurso à prática
No dia 17 de abril deste ano, o Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária, o Conar, tomou uma decisão que balançou o mercado da propaganda brasileira. Por 14 votos a 4, determinou que a Petrobras retirasse de circulação duas campanhas que reiteravam o compromisso da empresa com o meio ambiente. A denúncia, encaminhada por seis entidades não governamentais e pelas secretarias do Meio Ambiente da prefeitura de São Paulo e dos governos estaduais paulista e mineiro, apontava uma contradição entre o discurso e a prática da empresa.
Diante do júri, os ambientalistas afirmaram que a Petrobras não se tem esforçado para cumprir uma determinação do Conselho Nacional do Meio Ambiente, o Conama, para reduzir os níveis de enxofre no óleo diesel brasileiro. A portaria do órgão ambiental visa diminuir os riscos de problemas respiratórios para a população, ao estabelecer que a quantidade de enxofre no diesel caia de 2.000 para 50 partículas por milhão (ppm). A reação foi imediata: a Petrobras recorreu da sentença – e até o fechamento desta edição um novo julgamento não havia ocorrido – e divulgou nota informando que a empresa “se comprometeu a fornecer o diesel 50 ppm a partir de janeiro de 2009”, dentro do prazo estabelecido pelo Conama.
Ainda que possa ser revertido, o caso é emblemático. Trata-se da primeira condenação em terras brasileiras daquilo que, em países onde a pressão dos consumidores é mais forte, convencionou- se chamar de green washing, ou a “maquiagem verde” praticada por algumas empresas. “É uma decisão histórica”, comemora Fabio Feldmann, presidente do Fórum Paulista de Mudanças Climáticas Globais e de Biodiversidade, que coordenou o processo. “Abriu-se a possibilidade de questionamento em um momento que existe uma onda de sustentabilidade na propaganda brasileira”, diz.
De fato, nos últimos anos, o consumidor viu uma enxurrada de mensagens sobre o compromisso de empresas com melhorias na sociedade e no meio ambiente. De mineradoras ao setor bancário, passando pela indústria têxtil e a de bebidas, a bandeira do momento na propaganda é uma só: “Sustentabilidade”. O apelo do aquecimento global lidera o bloco das mensagens politicamente corretas. Mas a reação, em muitos casos, tem sido contrária ao que se pretende: em vez de ser cativado, o consumidor age com desconfiança. Na Inglaterra, o órgão que regulamenta o passetor publicitário viu as queixas por maquiagem verde quadruplicarem no ano passado, em comparação com 2006. Em 2007, nada menos que 410 anúncios foram considerados enganosos.
No Brasil, o número de reclamações desse tipo ainda é insignificante, mas outros indicadores refletem essa mesma tendência. A última pesquisa de comportamento do consumidor realizada pelo Akatu, instituto voltado para o consumo responsável, mostra que o número de pessoas dispostas a premiar as empresas que mantêm boas práticas de responsabilidade social caiu de 39% em 2000 para 24% em 2007. O mesmo aconteceu com os propensos a puni-las, que passaram de 35% para 27%.
Hélio Mattar, presidente do Akatu, vê na mudança de atitude do consumidor que ele está mais desconfiado em relação à mensagem das empresas, em boa parte devido à forma como elas comunicam as ações de responsabilidade socioambiental. “O mercado publicitário ainda pensa a sustentabilidade da mesma forma que pensa um produto: de maneira fragmentada”, diz. Outro dado que aponta para a mesma direção é o aumento no número de entrevistados, segundo os quais o governo deve criar leis para obrigar as grandes companhias a ir além do seu papel. O número passou de 57% em 2004 para 64% em 2006.
Na prática, isso significa que a sustentabilidade hoje é vista como uma boa embalagem para os mesmos velhos produtos que fazem parte da vida das pessoas. “São poucas as empresas e agências que entenderam que, na comunicação da sustentabilidade, o conteúdo é mais importante do que a forma. Quem faz uma campanha de R$ 500 mil para divulgar uma ação social na qual foram gastos R$ 50 mil está comunicando errado”, diz Rogério Ruschel, publicitário e consultor de sustentabilidade para empresas. É uma espécie de síndrome de Pompéia às avessas. Ao contrário da mulher de César, as empresas não podem apenas parecer honestas. Quando se trata de sustentabilidade, elas precisam ser honestas.
“O green washing é a fase wannabe. Como o jovem que ainda não amadureceu, mas quer parecer adulto. Ele imita o adulto, veste-se como adulto, fala como adulto, mas acaba virando uma caricatura do adulto. Todo mundo percebe, menos ele”, diz o publicitário Ricardo Guimarães, da Thymus, agência de construção de marcas com foco em sustentabilidade.
Um dos setores que se viu diante do dever de casa foi o financeiro. Os maiores e mais lucrativos bancos brasileiros divulgaram a revisão de seus processos e a mudança de postura – obviamente como forma de construção de suas marcas. Seria injusto dizer que a intenção não é legítima. Houve avanços – como a avaliação de riscos socioambientais na concessão de crédito, adotada pelos principais atores do mercado –, mas ainda existe um longo caminho a percorrer.
Estudo realizado no final de 2007 pela Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável com os dez maiores bancos do País revela algumas contradições: apenas uma instituição comercializa títulos de créditos de carbono, somente duas adotaram metas de redução de emissão de CO2 e há um único fornecedor de seguros ambientais. Nada disso, porém, impediu que os diretores de filmes publicitários voltassem suas lentes para crianças correndo, golfinhos nadando e, claro, para a Amazônia ameaçada, ao som de uma trilha sonora emocionante, com fotografia impecável.
Pode ser condenável diante dos olhos do consumidor esclarecido, mas na ótica do mercado publicitário essas contradições são encaradas como parte de um processo transitório, tais como outros com que as agências de publicidade já tiveram de lidar no passado. “Na década de 70, o apelo era pela qualidade.
Na de 80, o respeito ao consumidor. Nos anos 90, a tecnologia de ponta. Tudo isso rapidamente foi incorporado à cultura das empresas. Chegará a hora em que a sustentabilidade será apenas uma obrigação”, diz Percival Caropreso, ex-presidente da McCann que hoje se dedica a fazer a interlocução entre a iniciativa privada e o terceiro setor: “Muitas empresas entram por modismo, mas, se isso furar a onda e for motivo para elas se reavaliarem, já valeu o esforço”.
Ricardo Guimarães vai além: “Não acho que as empresas prefiram parecer sustentáveis. Elas simplesmente não sabem fazer diferente. São imaturas, mal informadas, ingênuas. Mas vaichegar uma hora em que terão de fazer para valer. Ou porque aprenderam, ou porque serão multadas, ou porque irão para a cadeia. É questão de tempo. Nós estamos passando do estágio da convicção para o da conveniência e as primeiras pitadas de coerção já começam a aparecer”, afirma.
Mudanças em agências
Se as empresas em geral ainda não estão prontas, algumas agências de publicidade têm se capacitado para servir como interlocutores do discurso sustentável e começam a propor ações que mudam a cultura corporativa. A Lew’LaraTBWA, que detém as contas de Natura e ABN Amro Real – dois exemplos citados pelas pessoas ouvidas por Página22 como propaganda bem aplicada à sustentabilidade –, tem investido no treinamento das equipes para que elas digam aos clientes que, primeiro, é preciso fazer, para depois divulgar. “Não basta comunicar, é preciso agir. Hoje, não criamos mais campanhas, criamos movimentos”, diz Márcio Oliveira, vice-presidente da agência. Até agora a Lew’Lara não se recusou a fechar negócio com nenhum cliente por ele não apresentar atitudes sustentáveis, mas afirma que sempre propõe trabalhar ações em conjunto com o plano de comunicação.
A inserção do tema no dia-dia da empresa também mudou a agência internamente. Desde a fusão com a agência TBWA, a Lew’Lara adotou o programa Green, que inclui reciclagem do lixo, diminuição no consumo de energia e apresentação de trabalhos somente em plataformas digitais, para reduzir o volume de papel. “A agência muda porque o cliente só trabalha com quem pensa igual a ele”, diz Oliveira.
Talvez poucas mudanças nesse mercado tenham sido tão radicais quanto a de Christina Carvalho Pinto. Há pouco mais de uma década, a publicitária deixou a presidência da Young & Rubicam, uma das maiores multinacionais do setor, para lançar uma agência com foco em responsabilidade social, mercado ético e sustentabilidade. Hoje, a Full Jazz apresenta um portfólio de mais de 30 clientes, que tem crescido a cada ano. Somente nos primeiros quatro meses de 2008, foram anunciados 33 novos projetos. “Não me lembro de ter vivido antes uma colheita tão intensa de frutos, plantados ao longo destes 11 anos”, diz Christina.
Nem sempre foi assim. A empresa enfrentou dificuldades por adotar princípios poucos usuais na publicidade brasileira, tais como não atender clientes cujos produtos sejam potencialmente prejudiciais à saúde, não criar comunicação que estimule o consumo descontrolado, inconsciente, ou que expresse qualquer tipo de preconceito. Em alguns momentos, decisões difíceis foram tomadas.
“Tornou-se conhecido internamente o caso do telefonema de um diretor de uma empresa de bebidas, que ligou para minha casa ao anoitecer do dia 24 de dezembro de 2002, pedindo uma reunião urgente para o dia 26 de manhã. Eles iam lançar um cooler naquele verão e queriam fazer o lançamento de imediato com a Full Jazz. Era uma verba de R$ 28 milhões para três meses de mídia. Nós estávamos fechando um ano difícil e esse dinheiro seria maravilhoso para nossos números. Com muito respeito, dissemos ‘não’”, conta Christina. Um dos princípios da Full Jazz é não fazer propaganda de bebidas alcoólicas. “A indústria de bebidas claramente segue a trilha das empresas de tabaco, ou seja, utiliza a comunicação para atrair o público jovem e as crianças.”
Armadilhas do discurso
Mas até a que ponto vaio comprometimento das agências com a sustentabilidade? Afinal, o papel delas é incentivar o consumo, e, quanto maior ele for, mais lucrativo o negócio se torna. Quando se trata de mudar padrões de consumo, algo tão importante na construção de um mundo sustentável, o discurso pode cair em contradição. “O consumismo é inimigo da sustentabilidade. Dificilmente as agências de publicidade vão dizer isso, mas nós teremos de lidar com essas contradições. O desafio dessa geração que vive o processo de mudança será conviver com o problema e com a sua solução”, diz Mattar, do Akatu.
Um exemplo é o da indústria da cerveja. A AmBev, maior empresa do setor no Brasil, acaba de lançar um novo filme publicitário para a marca Brahma, ressaltando as qualidades do trabalhador brasileiro. O anúncio conta a trajetória do percussionista baiano Carlinhos Brown, da infância pobre à fama internacional. A AmBev também divulga ser “a pioneira do setor no desenvolvimento e na expansão de um Programa de Consumo Responsável no Brasil”.
No entanto, a companhia posicionou-se contrariamente à restrição da propaganda de cerveja na TV e no rádio entre 6 e 21 horas – horário que atinge o público infantil –, conforme propunha uma resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Anvisa, enviada ao Congresso Nacional. A AmBev – e outras empresas do setor, que chegaram a financiar a campanha de vários deputados, conforme revelou a Folha de S.Paulo em 10 de maio – triunfou: o texto da resolução foi alterado e as propagandas de cerveja continuarão a ser veiculadas sem restrição de horário. Procurada pela reportagem, a AmBev não quis comentar o assunto até o fechamento desta edição. Em resposta ao pedido de entrevista, sua assessoria de imprensa havia afirmado que a nova campanha, o consumo responsável e a restrição à propaganda na mídia eram assuntos separados.
É por histórias como esta que críticos mais severos consideram impossível a convivência harmoniosa entre sustentabilidade e propaganda. Em tempos de globalização, em que a comunicação se torna a mais poderosa de todas as ferramentas do mundo corporativo, a sustentabilidade corre o risco de ser apenas uma imagem num anúncio de refrigerante.
“A comunicação publicitária das grandes marcas se dá hoje com a construção da imagem do consumo responsável. Só que isso se esgota na própria imagem. É como se as empresas dissessem: ‘Compre de mim e tenha a consciência tranqüila’. A redenção virou mercadoria”, diz Isleide Fontenelle, professora e pesquisadora da Fundação Getulio Vargas de São Paulo. “Estamos todos no plano das boas intenções, mas quem vai pagar a conta?”, pergunta ela. Até agora, nenhum anunciante ousou responder a questão.