Com a convergência dos dramas social e ambiental, o Brasil precisa olhar para o “andar de baixo” e generalizar a inclusão produtiva ao atacar a informalidade, os pedágios financeiros, o monopólio do conhecimento e a má gestão
Por Ladislau Dowbor*
Não há como negar a amplitude dos desafios que enfrentamos. O IV Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, de 2007, afirma que “o aquecimento do sistema climático é inequívoco”, enquanto o estudo The Inequality Predicament: Report on the world social situation 2005, das Nações Unidas, comprova que, a despeito dos avanços técnicos, a desigualdade de renda e de consumo entre os países se manteve nos últimos 50 anos. O Brasil aparece com distinção: a renda per capita dos 10% mais ricos equivale a 32 vezes a dos 40% mais pobres.
Os 4 bilhões de pessoas com renda per capita anual inferior a US$ 3 mil não são vistos como tragédia social. A International Finance Corporation (IFC), do Banco Mundial, por exemplo, enxerga aí um mercado de US$ 5 trilhões. Em documento de 2007, afirma que “há reconhecimento crescente da importância de se remover barreiras às pequenas e médias empresas e criar uma gama mais ampla de ferramentas para leválas à economia formal e gerar mercados mais eficientes”. A abordagem evidencia que o modelo corrente gera a tendência inversa: o plantio de soja utiliza um trabalhador a cada 200 hectares, a pesca industrialoceânica reduz à miséria mais de 300 milhões de pessoas nas regiões costeiras, a especulação financeira descapitaliza as comunidades, o abuso no registro de patentes – 97% pertencem a países ricos – trava as iniciativas locais de criação de valor.
A prosperidade artificial e o consumo predatório que a concentração de renda e de riqueza permite nas porções ricas do planeta fazem convergir as grandes ameaças estruturais. O cientista político canadense Thomas Homer-Dixon lembra, no livro The Upside of Down (2006), que a população de 6,7 bilhões de pessoas não só aumenta em 75 milhões por ano, como exibe perfil de consumo surrealista nas duas pontas, na escassez e nos excessos, na desnutrição e na obesidade. Cerca de dois terços do crescimento populacional dão-se na área da miséria, mas findou-se a era das populações pobres e isoladas. O planeta é um só, os pobres sabem que são pobres, e o modelo de consumo é o dos ricos.
Dados sobre esgotamento da vida nos mares, erosão dos solos, redução das reservas de água doce, destruição da biodiversidade e desmatamento são acompanhados em detalhe, em uma demonstração impressionante de capacidade técnica e impotência política. A análise dos desperdícios e da subutilização de fatores, como sugere Ignacy Sachs, aponta os reequilíbrios necessários para alcançarmos as inovações que darão conta dos dramas social e ambiental.
Capacidade de trabalho
Tomando 2006 como referência, o Brasil tem 190 milhões de habitantes. Destes, 125 milhões estão em idade ativa (15 a 64 anos) e 98 milhões integram a População Economicamente Ativa (PEA). Apenas 31 milhões são empregados pelo setor privado com carteira assinada. Sete milhões são funcionários públicos. O que fazem os outros? Há empresários e “autônomos”, cerca de 15 milhões de desempregados, e uma ampla massa classificada como “informais” – 51% da PEA, segundo o estudo Brasil, o Estado de Uma Nação 2006 – Mercado de trabalho, emprego e informalidade, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
O modelo subutiliza mais da metade das capacidades produtivas do País. Não é realista imaginar que o crescimento centrado em empresas transnacionais, grandes extensões de soja ou em uma hipotética expansão do emprego público permitirá absorver essa mão-de-obra. Formas alternativas de organização tornam-se necessárias.
O drama da desigualdade não se resolve só com a distribuição mais justa da renda e da riqueza, envolve necessariamente a inclusão produtiva decente da maioria da população desempregada, subempregada ou encurralada em atividades informais.
Recursos financeiros
Diz-se que não há recursos para empregar a todos. Mas a Organização Mundial da Saúde estima que R$ 1 investido em saneamento básico permite reduzir de R$ 4 a R$ 5 em gastos. Ou seja, há atividades que, em vez de absorver, liberam e multiplicam recursos. A ponte se faz pelo crédito, mobilizando de forma produtiva as poupanças dos que possuem excedente em proveito de quem tem iniciativas a financiar.
Estudo da Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac) mostra que, apesar da queda da taxa básica de juro de setembro de 2005 a fevereiro de 2007, as variações para os tomadores finais foram insignificantes e as taxas comerciais voltam a subir em 2008. Mesmo a custos indecentes, o volume de crédito se expande. A generalização do pedágio financeiro reduz drasticamente a capacidade de os agentes dinamizarem as atividades econômicas.
A desigualdade aqui não é apenas herança, mas um processo em curso que permite a descapitalização de empresas, comunidades e famílias ao mesmo tempo que gera lucros no restrito clube de intermediários financeiros e grandes aplicadores.
Conhecimento tecnológico
Em uma era caracterizada pela centralidade do conhecimento nos processos econômicos, o sistema de patentes imobiliza áreas inteiras por 20 anos, os copyrights duram mais de 70 anos, constituindo autênticos monopólios.
A avaliação é de Joseph Stiglitz, ex-economista- chefe da Casa Branca e do Banco Mundial, e Nobel de Economia. “A inovação está no coração do sucesso de uma economia moderna (…) O mundo desenvolvido arquitetou cuidadosamente leis que dão aos inovadores o direito exclusivo às suas inovações e aos lucros que delas fluem. Mas a que preço? Existe um sentimento crescente de que há algo de errado com o sistema que governa a propriedade intelectual. O receio é que o foco nos lucros para as corporações ricas represente uma sentença de morte para os muito pobres no mundo em desenvolvimento”, escreveu.
Segundo o autor, “os países em desenvolvimento são mais pobres não só porque dispõem de menos recursos, mas porque há um hiato em conhecimento”. É uma tomada de posição importante nesta época em que respeitar o sistema de propriedade intelectual, na prática, significa aceitar sua monopolização.
Este é mais um fator de concentração da renda e da riqueza, e de reprodução de dinâmicas ligadas à problemática ambiental. Precisamos de regras mais flexíveis e inteligentes, pois a curto prazo os pedágios sobre o conhecimento geram lucros para as empresas, mas a médio prazo estaremos todos em dificuldades.
Má-gestão
O artigo Getting Realon Health Financing, publicado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), em 2007, lembra que as mortes provocadas pela Aids passam de 25 milhões. Não aparecem nas manchetes, mas as perdas de capacidade de trabalho e os custos com tratamento e hospitalização são imensos. O desequilíbrio entre os avanços da produção comercial e os atrasos das políticas sociais gera altos custos para toda a sociedade. Os países em desenvolvimento arcam com 90% da carga global das doenças, mas contam com apenas 12% do gasto global com saúde: o gasto per capita é de US$ 22 em países de baixa renda e supera US$ 3 mil nos de alta renda.
Os cerca de US$ 6 mil de bens e serviços produzidos por pessoa no mundo seriam suficientes para uma vida digna para todos. Alguns claramente são mais dignos que outros: quanto mais ricos os países, maior a participação do setor público nos gastos com saúde. O FMI recomenda: “Os países devem incrementar sua capacidade de levantar dinheiro por meio de impostos”.
Embora não seja todo dia que o FMI defenda governos maiores, a visão é correta: é preciso desenvolver o setor público e lutar por maior eficiência nos gastos, modernizando e democratizando a gestão. Fazer dinheiro com saúde não é eficiente em lugar nenhum, a não ser para minorias de alta renda. Fazer dinheiro com educação, na linha da indústria do diploma, tampouco resolve. É preciso recuperar a capacidade de desenvolver políticas públicas competentes – como as políticas sociais com fins lucrativos só funcionam para quem tem poder de compra, o resultado é o imenso desperdício de recursos e o aprofundamento das desigualdades.
Felizmente, enraíza-se a compreensão de que o avanço de uns em detrimento dos outros não resolve: a maré tem de levantar todos os barcos. O bem-estar econômico e social de todos deixa todos melhor, não só os pobres. Dos ricos, o que se exige não é bondade, mas inteligência para mobilizar os recursos subutilizados em função dos dois objetivos principais: o ambiental e o social. A seguir, algumas alternativas.
Medir os resultados reais
A mortalidade infantil no mundo em desenvolvimento caiu nos últimos 50 anos, graças à melhor nutrição, a intervenções ligadas à água e ao saneamento e a avanços no uso de vacinas e antibióticos, diz o FMI. Ou seja, ações preventivas de baixo custo, mas que exigem densidade organizacional na base da sociedade.
Para a contabilidade tradicional, a medicina preventiva é péssima: evitar doenças não aumenta o PIB. Se há muitos doentes, intervenções cirúrgicas, compra de medicamentos, isto, sim, aumenta o PIB. Porém, o que interessa não é gastar com medicamentos e hospitais, e sim não ficar doente. Calculamos o valor comercial de bens e serviços (output) e não os resultados em qualidade de vida (outcome). O absurdo estende-se a outras áreas: a liquidação da vida nos mares, o corte das florestas, a destruição da camada orgânica do solo, o esgotamento dos lençóis freáticos. Nada disso é contabilizado, a não ser como valor positivo no produto vendido, sem desconto dos custos ambientais.
Nos anos 80, com Ronald Reagan nos EUA e Margaret Thatcher na Inglaterra, o social saiu do mapa e tudo se concentrou nos resultados econômicos e financeiros. Na década de 90, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) trouxe de volta a visão de que a economia deve servir ao bem-estar dos homens, não o contrário. Desenvolveram-se metodologias que avaliam o trabalho voluntário, o trabalho não-remunerado doméstico, a destruição ou a proteção do meio ambiente, a insegurança resultante dos processos produtivos, a dilapidação dos recursos não-renováveis.
Instrumentos que permitem avaliar o “progresso genuíno” e a qualidade de vida reequilibram os critérios de decisão na sociedade, pois definem os objetivos. Uma população desinformada, ou mal informada, tende a ficar angustiada. Uma população informada pode se tornar cidadã.
Democratizar o governo
O Relatório Mundial sobre o Setor Público, publicado em 2005 pelas Nações Unidas, mostra a evolução da administração pública baseada em obediência, controles rígidos e “autoridades”, passando pela gestão empresarial e desembocando na visão da “responsive governance”.
A “governança” indica que a boa gestão se obtém por meio da articulação inteligente e equilibrada dos atores interessados no desenvolvimento, os stakeholders. O adjetivo “responsive” implica responder aos interesses que diferentes grupos manifestam e supõe sistemas amplamente participativos.
É quando o prefeito, em vez de ditar seu programa, ajuda os cidadãos a desenvolver o que eles desejam. O modelo que emerge centra-se na participação direta dos atores, na transparência, na abertura às tecnologias da informação e da comunicação e em soluções organizacionais que assegurem interatividade entre governo e cidadãos. São pontos importantes no Brasil, pois ultrapassam as visões saudosistas autoritárias e a pseudomodernização que coloca um manager no lugar do político, e buscam construir capacidade real de solução de problemas.
Democratizar as corporações
As transformações não se limitam ao setor público. Enraíza-se a idéia de que nenhuma corporação pode se limitar a maximizar lucros e deve responder de certa forma aos interesses da sociedade.
Assim, as dimensões sociais e ambientais da atividade empresarial deixam de ser externalidades que a sociedade custeia, por meio dos impostos e do setor público, para se tornar um fator intrínseco: o core business, o “negócio”, deve ser desenvolvido de maneira responsável. E parece inevitável – dados os ganhos sistêmicos e o fato de que as políticas atuais não se sustentam – que as corporações contribuam para a construção de um arcabouço jurídico que facilite a gestão da sociedade como um todo, indo além do sistema de lobby.
Reforçar a sociedade civil
No Brasil há a sociedade civil de cima, que se organiza, apóia ONGs, chama o Procon, escreve cartas aos jornais. Mas há também o andar de baixo, os 51% que formam a economia informal, os perdidos nas imensas periferias urbanas, os acampados nas beiras das estradas, os sem-terra, semteto, sem-internet, os sem participação efetiva.
Para eles, houve avanços indiscutíveis com o Bolsa Família, a elevação do salário mínimo, o aumento do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, a disseminação do microcrédito.
Avançamos na organização do “andar de cima”, da política para as classes alta e média, da participação do mundo empresarial, da estabilização da macroeconomia e, pela primeira vez, houve um esforço em escala de inclusão do “andar de baixo”. Mas as distâncias continuam imensas – é preciso ir além das políticas distributivas e dinamizar as propostas para generalizar a inclusão produtiva. A mudança organizacional é o desafio do momento. Outro mundo é sem dúvida possível, pois o que aprontamos até agora não é recomendável.