Um grupo de jovens da Brasilândia, área de ocupação na periferia de São Paulo, trama contra o aperto financeiro, dribla a falta de oportunidades e de equipamentos públicos e filtra a informação que vem da cidade dita oficial para inventar a sua sustentabilidade
O Projeto Sala 5 fica na sala de número 5 do prédio colado na padaria, basta subir a escada. Para se chegar lá, quem está cá na cidade dita oficial, que não foi resultado de ocupação, deve tomar o lotação 978 T Jardim Guarani e descer no ponto final. A viagem leva uma hora, mas é tranqüila, e o encontro com os jovens que participam do movimento vale a pena. É um instantâneo fiel da vontade que eles têm de mudar e, ao mesmo tempo, das dificuldades do dia-a-dia. Não é toda hora que se vê a moçada da periferia paulistana se mobilizar para tocar, de forma sustentável e autogerida, ações culturais, sociais e ambientais.
Surgido em 2001, a partir de uma oficina de mangá – os quadrinhos japoneses -, o Projeto Sala 5 atua numa região da cidade em que as oportunidades são poucas. O subdistrito da Brasilândia, Zona Norte de São Paulo, está entre os 19 com maior vulnerabilidade juvenil da capital, e onde faltam equipamentos públicos de saúde, saneamento básico e cultura. A pouca informação e o parco vislumbre de mudança são outras faltas tão importantes quanto as anteriores.
E é contra estas e, conseqüentemente, contra as outras ausências que os jovens do Sala 5 trabalham. Fundado pelos próprios jovens, com apoio de ONGs já consolidadas como o Instituto Sou Da Paz, o movimento se alimenta das informações da cidade formal, mas mantém concentração sempre na melhoria da condição de vida na região da Brasilândia.
Num lugar onde falar de sustentabilidade, espaço urbano, continuidade e meio ambiente pode soar supérfluo, eles tentam contagiar os outros com ações simples, mas poderosas. E quebram a cabeça, sim, muitas vezes, como conta Luiz Flávio Lima, um dos diretores do Sala 5. “Fizemos uma oficina de mosaico em 2002 com alguns jovens. O entusiasmo foi grande e partimos para a ação, revitalizando uma praça do bairro com o que foi aprendido aqui. Muito pouco tempo depois as pessoas tinham arrancado as pastilhas e foi muito frustrante”, confessa. Se a consciência não chegou a todos, a de Luiz, tão nascido na Brasilândia e vivente do embate com a escassez como os outros 270 mil moradores, é bem lúcida. “Vimos que era uma questão de criar hábitos de convivência nos espaços públicos, as pessoas simplesmente não estavam preparadas para usufruir da praça, e a ação não cuidou disso, do envolvimento de todos.”
Nem por isso eles desistiram. Mais uma vez, em 2003, a meninada se reuniu para fazer os mosaicos, cortar e colar os azulejos, produzir as peças e, claro, todo mundo querendo ver o trabalho exposto. Desta vez a escolhida foi uma praça no Jardim Penteado e a ação foi mais consistente. Muita conversa com os moradores, usuários da praça, vizinhos, mães, pais, parentes, conhecidos. O resultado foi bem mais compensador. Segundo Luiz, o trabalho não terminou e vai seguindo, de acordo com a disposição dos jovens, novas oficinas, quase uma caravana que marca encontro no ponto de ônibus para fazer arte na rua a cada semana.
Fachadas e auto-estima
No ano seguinte, o interesse e a movimentação gerados com a mudança da cara da praça levaram os jovens a uma viela do bairro Jardim Guarani, próxima à sede do projeto. Batendo papo com os moradores que vivem uns colados nos outros, com portas e paredes externas muito parecidas, surgiu a idéia de levar o mosaico para lá também. “Nesse caso é como se o trabalho desse uma identidade para cada morador”, reflete Luiz. Restauraram fachadas e a auto-estima das pessoas.
Mas houve outras tentativas fracassadas que eles contam sem medo. “Aqui o primeiro objetivo de todo mundo é ganhar dinheiro, o que é muito legítimo. Como vou falar para darem preferência a produtos certificados que muitas vezes são mais caros?”, pergunta Aldrey Riechel, uma jovem de 20 anos que dirige o projeto e também trabalha numa ONG ambiental. Eles já sabem, contudo, que, quando a ação envolve mais gente e as pessoas se sentem contempladas e participantes, a coisa anda. “Porque, aqui, a indiferença é maior que a rejeição, então as pessoas podem de fato mudar”, afirma Aldrey.
A feira cultural realizada em 2004 na Vila Terezinha teve vários impactos. Enquanto alguns moradores repudiaram a movimentação dos jovens limpando a praça para o evento, os comerciantes do entorno ofereceram lanche para a moçada. Comida, transporte, aliás, itens imprescindíveis para a sustentabilidade dos projetos na Brasilândia. Desde o início de uma ação, o grupo pensa as possibilidades de ida e volta – e de lanche – para quem vai participar ao longo do dia.
No Dia D, por exemplo, o desafio é fazer um fanzine inteiro, desde a pauta, fotos, quadrinhos, histórias e até diagramação e impressão num único dia. É um dos eventos mais concorridos do Sala 5 e para o qualo projeto busca patrocínio no comércio da região. E, na hora de buscar os pães para o lanche, nada de sacolinha plástica. Dá para colocar tudo numa caixa, por que não? Essas ações vão quebrando aos poucos a resistência dos moradores. “A mãe acaba sabendo, o filho leva para casa novas informações, e assim vai”, acrescenta Luiz.
O gogó não basta
Uma das novas empreitadas é implantar coleta seletiva. Mais um murro em ponta de faca. Se a disciplina e o pouco de boa vontade que a reciclagem exige já encontram obstáculos entre os abastados, para quem vive no aperto financeiro separar o lixo é uma conversa que quase não interessa. Unilson Mangini Júnior está levando a sério a proposta. Convenceu a síndica de quatro prédios, com 212 apartamentos, que a reciclagem é uma boa.
Mas, sabendo que precisava de mais que o discurso para chamar atenção, propôs a venda dos materiais recicláveis encontrados no lixo e mais: metas para usar o dinheiro na compra de objetos do interesse de todos. Assim, com a criatividade de Unilson, aumenta o lixo reciclado e vendido, o recurso vai para a compra de um escorregador para as crianças ou vai melhorar a portaria do prédio e assim por diante. Seu projeto, que conta com o apoio do Sala 5, inclui ainda oficinas para jovens moradores interessados em produzir peças com garrafas PET e cestas feitas do jornal recolhido.
O interessante, intui Aldrey, é que inconscientemente são os habitantes da Brasilândia e de outras tantas periferias das grandes metrópoles os que menos poluem, degradam, geram lixo. “É uma contrapartida de que eles não fazem idéia”, diz, fazendo referência a quem mora no centro e provavelmente desconhece o cotidiano e sua sustentabilidade nas periferias.
Atração e retenção
Na ordem do dia do Sala 5 agora está a revista Menisqüência. A publicação é feita integralmente por jovens participantes das oficinas do projeto e também vendida por eles nas ruas de São Paulo. Num esquema praticado por outras revistas dentro e fora do País, metade do dinheiro fica com o vendedor e a outra metade é aplicada no projeto. A idéia de manutenção e continuidade da revista é outro desafio. “Quem participa precisa ter a consciência que está vendendo o que produziu, do valor de independência disso”, afirma Luiz.
Muitos jovens pensam que fazer um curso é garantia de emprego automático ou que a venda bem-sucedida de um mês é suficiente para as urgências financeiras. A revista enfrenta ainda a cultura assistencialista que funciona mais rápido nas periferias e as empresas de telemarketing que grassam por lá atrás de gente jovem que decora frases prontas rapidamente e trabalha muito. “Queremos envolver as pessoas por elas mesmas, quem desenha, escreve ou sabe vender ou se interessa por tudo isso e quer aprender. Na Menisqüência as pessoas se autogerenciam, o que também é um conceito que muitos jovens ignoram ou têm resistência”, afirma Aldrey.
Joyce Santos assinou reportagens na última edição e saiu perambulando pela Praça Benedito Calixto, point badalado na Zona Oeste de São Paulo, com as revistas na mochila num final de semana. Em cinco horas de trabalho, diz que vendeu R$ 200.
Por via das dúvidas, Luiz já fez o cálculo que atrai vendedores para a revista. Com 32 horas de trabalho semanal é possível tirar R$ 1.440 por mês. “Isso sem contar o dinheiro que vai para o projeto, alimentar a revista, novas oficinas e novas ações”.