Separados pela realidade socioeconômica, a base e o topo da pirâmide apresentam mais semelhanças que diferenças quando se trata do despertar para a sustentabilidade
“Responsabilidades comuns, porém diferenciadas”, diz a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática, firmada em 1997, ao reconhecer que as nações devem ter papéis diferentes perante a crise climática, de acordo com a influência de cada grau de desenvolvimento para o fenômeno do aquecimento global. Apesar de consagrado o princípio, o desafio do aquecimento global demanda compromissos contundentes de todas as nações do mundo, sejam elas desenvolvidas ou não.
Um pequeno esforço de abstração pode levantar questões interessantes também sobre o papel individual. A parcela mais abastada da sociedade tem maior responsabilidade que os demais? Ou maiores condições de reformular seus comportamentos? Existiriam diferenças de compreensão ou de vivência dos problemas socioambientais conforme o grupo socioeconômico em que as pessoas se inserem?
Assim como as negociações em torno da questão climática não podem prescindir do Terceiro Mundo, a agenda mais ampla de sustentabilidade, como a superação da cultura do desperdício e do consumismo, só pode se tornar realidade com a adesão da chamada base da pirâmide social.
No ambiente cosmopolita da Avenida Paulista, em São Paulo, onde circulam diariamente milhares de pessoas de todas as origens, Antônio José da Silva está empenhado em demonstrar que consciência ambiental não é questão de carteira. Piauí, como é conhecido, mora no bairro periférico Jardim Vista Alegre, na Zona Norte da cidade. Onde quer que vá, leva embaixo do braço uma pasta preta recheada de recortes de jornal e revista com notícias sobre meio ambiente. “Tem até coisa da Groenlândia. To muito preocupado com a Groenlândia”, diz.
Piauí não apenas está preocupado, como também decidiu lançar a sua própria agenda socioambiental. Na calçada em frente ao prédio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), instalou uma escultura formada por dezenas de bitucas de cigarro para protestar contra a displicência daqueles que chama de “engravatados”.
“Todo mundo só fala da sacola plástica, da garrafa PET… mas e as bitucas? Ninguém fala! Tem um canteiro ali que já não nasce mais nada, de tanto o povo apagar cigarro”, diz o convicto Piauí. Apesar dos múltiplos talentos como artista plástico, músico, poeta e jardineiro, ele não tem emprego fixo. Vive de doações de pessoas que passam pela rua e simpatizam com o protesto. Seu sonho é conseguir apoio para fazer uma armação de madeira de 3 metros de altura repleta de bitucas, o que lhe proporcionaria, acredita, a atenção desejada.
Em resposta à provocação da reportagem, sobre “responsabilidades diferenciadas”, Piauí não perde a oportunidade de criticar: “Quem tem mais grana tem mais poder e também consome mais. Acho que a responsabilidade deles é maior por causa disso. Mas quem é pobre tem que fazer como eu. Informação não falta. Não é só com dinheiro que se resolvem as coisas”.
Essa também é a convicção da empregada doméstica Maria da Glória Ferreira. Em sua casa, desperdiçar comida, energia e água é pecado capital. Há três anos, ela aprendeu a fazer sabão utilizando óleo de cozinha usado, o que lhe rende mais de 20 barras por menos de R$ 5, gastos com aditivos de detergente, soda cáustica e sabão em pó.
Se a expectativa é de que suas motivações sejam puramente econômicas – a renda da família de cinco pessoas gira em torno dos R$ 4 mil – Maria da Glória surpreende: “Eu faço em primeiro lugar por causa do meio ambiente, pra não poluir mais os rios. Já não basta esse Tietê poluído que a gente tem aí? É uma pena…”. Moradora do Jardim Maracá, na Zona Sul de São Paulo, ela se considera uma exceção à regra entre vizinhos e amigos menos preocupados com as questões ambientais. E o motivo, segundo ela, transcende o status socioeconômico e passa a ser uma questão de disposição: “A gente fica sabendo [da crise ambiental] pela TV, pelo rádio. Mas problema do povo é a preguiça. Ninguém quer separar latinha, vidro”.
Raio X
Apesar da percepção de Maria da Glória, separar o lixo para reciclagem e reduzir o consumo de água e energia elétrica são as ações em prol do meio ambiente que têm maior adesão em todos os grupos sociais. Ao menos é o que revelaram os entrevistados da série histórica O Que o Brasileiro Pensa do Meio Ambiente e do Consumo Sustentável, pesquisa coordenada pelo Instituto de Estudos da Religião (Iser), desde 1992.
Um levantamento fornecido pelo Iser com exclusividade para Página 22, referente a dados de 2006, revela a postura dos entrevistados conforme a variável socioeconômica, suas semelhanças, discrepâncias e algumas curiosidades. Ironicamente, a impopular opção de pagar um imposto específico para despoluir rios é mais aceita entre os entrevistados de renda inferior a um salário mínimo (9,8%) que para os de renda superior a 10 salários mínimos (6,7%). Outros dados, possivelmente mais coerentes, revelam posturas diferentes entre a população de baixa renda.
O nível de concordância com a frase “o crescimento econômico deve ter prioridade sobre o meio ambiente” aumenta gradativamente quanto menor a renda familiar. Apenas 8,2% dos entrevistados com renda superior a 10 salários mínimos concordam, contra 15,5% dos demais. O mesmo se passa com as afirmações “estaria disposto a conviver com mais poluição se isso trouxesse mais emprego” e “a preocupação com meio ambiente no Brasil é exagerada”.
Quanto menor a renda, maior a adesão. Entretanto, é oportuno destacar que em todos os grupos sociais a concordância com essas idéias é minoritária. Atinge no máximo 18,7%. Poderia parecer razoável admitir que houvesse um abismo de informação e conhecimento entre a as populações de alta e baixa renda. De fato, a incidência de pessoas que se consideram “muito bem informadas” é maior entre os entrevistados com renda acima de 10 salários mínimos, mas esse percentual atinge apenas 11,8%. A maioria dos entrevistados (55% do total) se considera “mais ou menos informado” e esse percentual varia de 51,8% na faixa acima de 10 salários mínimos a 46,1% na faixa até 1 salário mínimo.
Nem só de televisão Situado no extremo da Zona Leste da cidade, o bairro de Itaquera é exemplo típico do crescimento acelerado e desordenado das periferias, o que ocasionou problemas como poluição de córregos, lixo em terrenos baldios e enchentes. Segundo dados do Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS), Itaquera tinha, no ano 2000, cerca de 500 mil habitantes.
É ali que o padre Paulo Sérgio, há mais de 20 anos à frente da paróquia local, decidiu fazer da novena anual um evento de conscientização. “Se eu chamar para um debate, não vem ninguém. Então eu tento aproveitar o culto”, diz. Durante as nove noites de celebração, em 2007, o padre convidou políticos e ambientalistas para discursarem sobre o tema.
Como resultado, um grupo de paroquianos formou uma força-tarefa para ajudar a divulgar, por meio de encontros e cartilhas, as pequenas ações cotidianas que podem fazer diferença. “A minha decepção é que de 300 pessoas que compareceram em média, a cada noite, sobraram apenas 10 dispostas a participar do grupo”, lamenta o padre. Para José Paulo Cupertino, um dos integrantes do grupo ambiental da paróquia, o problema é menos a falta de informação e mais o desinteresse: “Talvez as pessoas não achem que esse seja um assunto tão sério”. Mas ele, que mora no bairro há mais de 30 anos, testemunhou o processo de crescimento e degradação, o que o tornou mais sensível ao tema. “A transformação foi drástica. Do lado da minha casa tinha um bosque enorme, onde eu brincava quando era criança. Hoje sobrou só um eucalipto”, diz.
José Paulo economiza energia e água, separa o lixo reciclável para os catadores e é usuário do transporte público. Mas, diante das dificuldades de mobilidade do bairro para o centro da cidade, ele traça seu próprio limite para práticas sustentáveis: “Se pudesse, eu compraria um carro novo”.
O consumo é de todos
Com 20 anos de experiência em educação ambiental na periferia da São Paulo e em pequenas cidades, Miriam Duailibi, presidente do Instituto Ecoar, identifica características semelhantes entre os grupos sociais, especialmente no que diz respeito ao consumo. “As pessoas de baixa renda até podem comprar menos, ou produtos mais baratos, mas consomem na mesma linha: descartáveis, com muita embalagem. Conforme eles vão melhorando de renda, a tendência é entrar no mesmo padrão de consumo dos mais abastados. Mesmo nas casas mais humildes, há essa tendência de deixar os aparelhos ligados na tomada e comprar tudo com sacola plástica”.
O aumento do poder de compra é uma realidade. A pesquisa “O Observador Brasil 2008”, feita pela financeira francesa Cetelem com o instituto de pesquisas Ipsos Public Affairs, revela que a Classe C já é a maioria da população brasileira, com 86 milhões de pessoas. A renda familiar desse grupo varia de R$ 1. 064 a R$ 4.591, já que a classificação não se dá apenas com base na renda, mas por um sistema de pontos que considera os bens de consumo e o nível educacional do chefe da família.
Para Miriam, o problema aparece já nos indicadores de classe social, em que pesa o poder de consumo, quando deveria ser considerados indicadores de “dignidade”, como acesso a cultura e saúde. Os dados, entretanto, são animadores para o mercado cada vez mais atento a esse consumidor. É o caso da Gol, empresa que anunciou em setembro uma nova estratégia para atender à demanda reprimida do público de classe média baixa. Cerca de mil vendedores serão recrutados para vender, de porta em porta, as passagens aéreas que antes eram privilégio dos ricos, em condições facilitadas de até 36 prestações.
“As pessoas têm direito ao conforto, a melhorar de vida, ninguém pode dizer o contrário. Mas educar esse público para a sustentabilidade é estratégico, porque eles estão entrando na era do consumo. É mais difícil mudar a cabeça daqueles que já estão acostumados a um determinado padrão”, considera Miriam.
Sentir na pele
A grande aposta da educadora é um diferencial de consciência da população mais carente: “Claro que o conceito de sustentabilidade é mais compreendido formalmente pelos meios acadêmicos. Mas acho que as comunidades têm uma noção muito grande pelo contraditório. Eles sabem que o modelo que eles vivem é excludente, predatório, com injustiças sociais e ambientais”.
Segundo Miriam, a proximidade com problemas ambientais do cotidiano, como esgoto a céu aberto, enchentes e desmoronamentos, tornam os moradores de comunidades carentes mais sensíveis ao tema ambiental.
“Eles assumem com mais entusiasmo as mudanças e se engajam com muito mais facilidade. A resistência às mudanças é muito maior na classe média.” Compartilha dessa teoria o também educador ambiental Fabio Deboni. Em 2006, ele coordenou uma pesquisa que ouviu 241 jovens engajados no movimento socioambiental, cujos resultados aparecem no livro Juventude, Cidadania e Meio Ambiente – Subsídios para a elaboração de políticas públicas. A pesquisa apontou que 80% desses jovens concluíram o Ensino Médio em escola pública e 51% pertencem a famílias com renda mensal de até cinco salários mínimos.
“Eu acho que tem vários motivos para isso, mas talvez o primeiro deles seja que esse público vive nas piores áreas possíveis para habitação, com altos níveis de poluição e carência de serviços básicos. Aliado a isso o fato de que os jovens, mesmo os de periferia, buscam mais informação e têm mais contato com isso pela internet”, diz Deboni.
É justamente com essa mentalidade, e especialmente focada no público jovem, que o Instituto Terrazul vem desenvolvendo o programa de educação ambiental no entorno do Parque Nacional da Tijuca, no Rio de Janeiro. A característica das comunidades que circundam o parque é de favelização, mas a coordenadora técnica de projetos, Illona Sá, faz questão de frisar: “Não são apenas as comunidades que crescem para cima do parque. Também temos problemas com condomínios de classe média alta”.
A estratégia do Terrazul foi estabelecer seis núcleos ambientais ao redor da unidade de conservação e convidar a população, de alta e baixa renda, a fazer diagnósticos participativos. A menina-dos-olhos do projeto são as oficinas de comunicação e vídeo ambiental para a juventude, que permitem que estudantes das comunidades carentes convivam com estudantes de classe média alta, como alunos do Colégio Syon, um dos mais prestigiados do Rio de Janeiro.
“Eles ficaram amigos”, diz Illona, “é assim que a gente vê que os anseios e os desafios são, na verdade, muito parecidos”. A coordenadora acredita, no entanto, que as dificuldades são sempre maiores para o lado mais fraco. “A questão do meio ambiente, por estar na mídia, já não é mais tão alheia às comunidades. O problema é que a falta de infra-estrutura é fator de desânimo. A limpeza urbana não chega a alguns locais. E as pessoas não moram no alto do morro porque gostam, mas porque lá eles têm acesso à água (diretamente dos córregos que cortam o parque)”.
Em 2008, a ONG ajudou a formar o Conselho Consultivo Jovem do Parque Nacional da Tijuca, um episódio inédito na história das unidades de conservação do País. Eloína Moscoso, de 17 anos, é a secretária de visitação do conselho. Até conhecer o projeto, em 2006, nem sequer havia freqüentado o parque, embora seja moradora da comunidade vizinha, no Morro da Covanca. “Algumas pessoas acham estranho eu me envolver com meio ambiente, acham que não leva a nada, e outras apóiam muito. Eu procuro sempre mostrar que esse é um conhecimento que você vai levar pra vida toda”, diz Eloína. “Não adianta nada ter um emprego e depois ficar doente por causa da poluição.”
Se lhe perguntam qual é o nível de consciência ambiental da sua comunidade, Eloína responde: “É meio a meio”. Alguns se preocupam mais, outros menos, exatamente como em outras faixas sociais. Seu testemunho leva a crer que a compreensão e prática da sustentabilidade encontram terreno mesmo em meio a abismos sociais. Podem emergir do acesso à informação e à cultura, mas também da sensibilidade individual, despertada, como dizem os educadores, pelo que se passa na porta de casa. Talvez seja próprio do pensamento crítico essa capacidade libertária de brotar em qualquer campo, desde que – lembremos do Piauí – não haja bitucas para atrapalhar.