Se a solução para a crise desatar apenas o “nó” financeiro e ignorar a situação socioambiental, sofrerão todo o sistema global e suas perspectivas de futuro
“Falência é simplesmente a oportunidade de começar de novo, desta vez de forma mais inteligente.” Vinda de um bem-sucedido homem de negócios, o americano Henry Ford, a frase vem a calhar depois do sobe-e-desce dos mercados financeiros no que pareceram longas semanas de outubro. Que o modo de operar dos mercados faliu, parece claro. Que isso abre uma oportunidade sem precedentes para repensar o modelo, fala-se aos quatro ventos. Resta saber se seremos inteligentes o suficiente para perceber que não há como manter separadas as crises financeira e ecológica. Depende disso o futuro do sistema extremamente complexo e interdependente que criamos.
Por enquanto, o mainstream da mídia continua tratando as duas crises isoladamente. De um lado, gastam-se milhares de páginas e horas de transmissão para relatar as ansiedades dos mercados, os esforços dos líderes políticos em aplacar os ânimos e resgatar a confiança, os efeitos do colapso do sistema de crédito na chamada economia real, os impactos nas vidas das pessoas. De outro lado, soam os alertas de que estão em perigo os investimentos nas energias renováveis, de que as negociações internacionais de um acordo sobre as mudanças climáticas (mais na reportagem sobre o plano nacional “O Rei Isolado”) estão fadadas ao fracasso, de que a hora não é de pensar no meio ambiente. Tudo por causa da crise financeira. O fato de que ela é sintoma de uma crise maior ainda passa incólume.
A dívida é com o futuro
Aqui e acolá aparecem evidências da crise ecológica expressas em termos que o mundo financeiro entende. Caso da estimativa de que a economia global perde entre US$ 2 trilhões e US$ 5 trilhões por ano com o desaparecimento de florestas e os serviços que elas prestam, como a absorção de CO2 e a manutenção do ciclo hidrológico.
O que isso quer dizer, não é demais repetir, é que estamos erodindo a capacidade de a biosfera manter-se como o único lugar conhecido com condições para a vida. Da mesma forma que estamos perdendo o acesso fácil à água limpa e ao petróleo barato, para citar apenas dois recursos cruciais.
Desse ponto de vista, como escreveu o economista ecológico Herman Daly, a atual débâcle financeira não é uma crise de “liquidez”, como se repete à exaustão, mas o seu oposto. A “riqueza real”, lembra ele, representa a fiança para dívidas futuras e, estas sim, cresceram com a tal exuberância irracional: hoje, as operações que negociam apenas papéis superam em 20 vezes as que trocam papel por commodities. No atual modelo, a saída é aumentar a taxa de crescimento econômico para produzir mais commodities e, assim, sustentar o mercado de crédito e o consumo.
“Hoje os custos marginais provavelmente excedem os benefícios marginais do crescimento, de forma que o crescimento real físico nos torna mais pobres, não mais ricos”, defende Daly. “Para manter a ilusão de que o crescimento está nos tornando mais ricos, diferimos os custos ao emitir ativos financeiros quase sem limite, convenientemente esquecendo que eles são, para a sociedade como um todo, dívidas a serem pagas com nosso crescimento real futuro. Como este é muito duvidoso, demandas sobre ele são desvalorizadas, independente da liquidez.”
A receita de Herman Daly para lidar com o problema é a adoção de uma série de políticas que levem a uma economia em steady-state, que tome como dadas as dimensões biofísicas – população e estoque de capital – e adapte a elas as preferências e a tecnologia. Ou seja, o contrário do atual modelo, que parte da noção de que os desejos são ilimitados e a tecnologia tudo pode, e ajusta o crescimento, que depende das dimensões biofísicas. Trocando em miúdos, significa almejar o crescimento zero.
Dificilmente essa e outras propostas de como fazer para que a economia mundial viva dentro de suas possibilidades – noção que apenas recentemente se acendeu em relação ao sistema financeiro – constarão da pauta da reunião de lideranças mundiais que se prevê para novembro para engendrar o que já se chama de Breton Woods II. É pouco provável que as nações desenvolvidas abandonem o mantra do crescimento, como prega Daly, mas é a chance de, pelo menos, repensá-lo.
“Os próximos anos apresentam uma grande oportunidade de construir as bases para uma nova forma de crescimento que pode transformar nossas economias e sociedades”, defendeu Sir Nicholas Stern em artigo na imprensa britânica. “Vamos sair dessa recessão de uma forma que reduza os riscos para o nosso planeta e inicie uma nova onda de investimentos que pode criar uma economia mais segura, limpa e atrativa para todos.
Ao fazer isso, demonstraremos a todos, particularmente ao mundo em desenvolvimento, que o crescimento de baixo carbono não apenas é possível, mas também pode ser uma rota produtiva e eficiente para superar a pobreza mundial.” “Uma verdadeira cúpula de Bretton Woods II estabeleceria uma base para alcançar objetivos urgentes quanto à estabilidade macroeconômica, o desenvolvimento econômico, a sustentabilidade ambiental e o comércio para o desenvolvimento”, ecoou o economista Jeffrey Sachs, que dirige o Earth Institute, da Universidade Columbia. “Os líderes deveriam ir à cúpula com o talão de cheques e compromissos internacionais em mãos.” Sachs admite, entretanto, que as discussões vão começar por um esforço de regulação do sistema financeiro internacional. Pouco inteligente seria encerrá-las aí.
O nó da questão
Para quem estuda redes e sistemas complexos – caso do sistema econômico internacional -, o resultado de apenas regular o sistema financeiro equivaleria a acrescentar pressão sem adicionar capacidade ao conjunto. Mais regulação e prestação de contas, no caso financeiro, é suficiente para evitar pequenos desastres, mas não para impedir o colapso sistêmico. No “nó” do sistema financeiro, a sobrecarga ocorreu porque o mercado criou uma série de “veículos de investimento” para Compartilhar, entre seus participantes, o risco de hipotecas concedidas a pessoas com pouca capacidade de pagamento.
Quem aderiu ignorou a necessidade de aumentar as garantias para lidar com casos de não-pagamento. Com o risco compartilhado, os participantes do mercado se tornaram interdependentes e, iniciados os defaults, as falências espalharam-se pelo sistema.
Por mais que se contenha o desastre localizado, é inegável que o “nó” financeiro é parte de um sistema maior. Não há hipoteca se não houver a construção de casas; não há a construção de casas se não houver a produção de materiais como toras de madeira, cimento, tijolos, entre tantos outros. Não há a transformação de recursos naturais em materiais de construção se não houver energia em forma aproveitável.
Decorre daí que os sistemas financeiro e ecológico são interdependentes e que, sem a possibilidade de aumentar a capacidade de um deles – o ecológico -, a sobrecarga aumenta a fragilidade do conjunto. No caso da energia, a dependência de fontes nãorenováveis (mais na reportagem “Hora de trocar o óleo”) deixa os limites ainda mais evidentes.
Fundamento e expectativas
O desastre recente das hipotecas não foi o primeiro na seara financeira e, provavelmente, não será o último. Nos casos anteriores como no atual, defende o financeur George Soros, a raiz está em um profundo equívoco de compreensão do funcionamento do sistema por parte de seus arquitetos.
Em seu mais recente livro, The New Paradigm for Financial Markets, Soros baseiase no fato de que nosso entendimento do mundo é inerentemente imperfeito, porque somos parte dele. De um lado tentamos compreender o mundo e, de outro, alterá-lo, de modo a nos beneficiar. Se ambas as funções – compreensão e manipulação – fossem isoladas, seria possível ter total conhecimento sobre o mundo e, com ações, alcançar os efeitos desejados. Assim se passam as coisas na teoria econômica dominante, argumenta Soros, mas não na vida real.
“O passado pode ser unicamente determinado, mas o futuro depende das decisões dos participantes”, escreve. “Conseqüentemente, os participantes não podem basear suas decisões no conhecimento, porque eles têm de lidar não só com fatos presentes e passados, mas também com contingências a respeito do futuro.” A conexão de mão dupla entre o pensamento dos participantes e a situação na qual estão envolvidos, que Soros chama de reflexividade, é sentida particularmente nos mercados financeiros: “As pessoas compram e vendem ações em antecipação a seus preços futuros, mas estes dependem das expectativas dos investidores”.
Como as expectativas não equivalem a conhecimento real, os participantes do mercado inevitavelmente tomam decisões a partir de julgamentos.
Soros admite que o papel das expectativas é conhecido, mas destaca que a idéia de reflexividade permanece pouco difundida, em parte porque impede que os economistas produzam teorias que expliquem e prevejam o comportamento dos mercados financeiros da mesma forma que os cientistas fazem com os fenômenos naturais.
Se incorporassem a reflexividade, eles provavelmente não teriam sido tão bem sucedidos em estabelecer a Economia como ciência e em convencer as pessoas de que os mercados se auto corrigem e tendem ao equilíbrio. A teoria vigente é a de que, sob condições específicas, a busca sem restrições dos interesses individuais leva à alocação ótima de recursos.
“A ilusão de que os mercados conseguem estar sempre certos é causada por sua habilidade de afetar os fundamentos que eles deveriam refletir”, escreve Soros.
“A mudança nos fundamentos pode reforçar as expectativas tendenciosas em um processo que inicialmente se auto-reforça, mas que eventualmente se autoderrota”. Mais comumente as tendências do mercado são corrigidas antes que afetem os fundamentos, mas, quando isso não ocorre, os processos de bolha-e-estouro podem adotar significância histórica. “Foi o que aconteceu na Grande Depressão e está acontecendo agora, embora desta vez esteja tomando uma forma muito diferente.”
A idéia da reflexividade pode ser útil para quem pensa o sistema maior, com seus diversos nós interconectados, inclusive o financeiro. Que efeito terão os trilhões de dólares que as autoridades de vários países injetaram no sistema financeiro global? A intenção é que eles aliviem a pressão sobre a “economia real”, diminuindo a dor em termos de recessão, perda de empregos e aumento da pobreza – a Organização Internacional do Trabalho prevê 200 milhões de desempregados e 140 milhões de miseráveis em 2009.
As medidas adotadas são as cabíveis à luz da bagagem que acumulamos nas últimas décadas, mas, sem uma visão global do sistema, correm o risco de apenas mudar a sobrecarga de um “nó” para outro.
Complexa sustentabilidade
O problema que se apresenta é bem mais complicado: como, em um sistema complexo e interconectado, espalhar qualidade de vida a quase 7 bilhões de pessoas e, ao mesmo tempo, cuidar para que nossa presença não esgote a capacidade do planeta de regenerar produtos e serviços que nos permitam, a longo prazo, estar aqui? Diante desse desafio, o futuro é, ele mesmo, um sistema complexo, sugerem o botânico T.F.H. Allen e o arqueólogo Joseph A. Tainter, este último autor do livro The Collapse of Complex Societies. A tarefa de encará-lo não é nada fácil, basta lembrar Que as sociedades complexas são recentes – na história de quase 4 milhões de anos dos hominídeos sobre a Terra, a organização dos Estados, por exemplo, nasceu há cerca de 5 mil anos, destaca Tainter – e, hoje, talvez pela primeira vez tenhamos uma sociedade verdadeiramente global.
Na visão de Tainter, a complexidade é um paradoxo de longo prazo na solução de problemas. Facilita a resolução de questões a curto prazo ao mesmo tempo que prejudica a habilidade de solucioná-los a longo prazo e, portanto, o próprio sistema de solução de problemas tem de ser sustentável.
O arqueólogo estudou casos de sociedades complexas e identificou três estratégias de longo prazo: o modelo romano de complexidade que vem acompanhado da diminuição dos benefícios para a sociedade; a opção por simplificar o sistema, adotada pelos bizantinos; e a experiência da Europa Ocidental, que foicapaz de aumentar a complexidade, ao descobrir subsídios físicos para tal – as fontes fósseis de energia e a tecnologia para usá-las.
“Nossas sociedades e instituições cresceram muito em complexidade ao longo dos últimos poucos séculos. Essa complexidade é sustentada pelos atuais subsídios de energia, principalmente os combustíveis fósseis. Não sabemos quanto tempo essa dependência pode continuar”, escreveu Tainter no artigo Problem Solving: Complexity, history and sustainability. “Podemos apostar que nossas instituições dedicadas à solução de problemas serão suficientes para encarar os desafios e aceitar as conseqüências caso elas não o sejam. Ou podemos aumentar nossas chances de ser sustentáveis ao entender o próprio processo de solucionar problemas, as tendências pelas quais ele se desenvolve e os fatores que o tornam bem-sucedido ou não.” Para começar a compreender o processo de solucionar problemas, ajudaria se optássemos por olhar o problema como um todo e não somente parte dele. Se a falência traz a oportunidade de fazer melhor, este é o momento de pôr mãos – e inteligência – à obra.