Uma rápida olhada em nossa volta e podemos descobri-lo em toda sua clareza e complexidade
Por Aron Belinky*
Desafiado por este artigo, parto em busca do território. De minha janela em São Paulo, vejo as ruas arborizadas do Jardim Europa. Uma empregada doméstica passeia com o cachorrinho de raça, que demarca território fazendo xixi em um muro coberto de pichações. Ouço um sabiá, e lembro que também o canto dos pássaros é uma forma de territorialidade, de alertarem que dominam certa área. No céu, passa um avião. Vem de outro país, das terras de outras gentes e governos. À minha frente, a tela do notebook é a janela para um mundo quase infinito. O ícone do Google Earth me leva à imagem do planeta, com seus mares, nuvens e continentes. Mais um clique, e recorta-se sobre a Terra um mosaico inconfundível: as linhas – imaginárias ou não – das fronteiras nacionais.
Pronto: um rápido olhar em volta nos revela o território, em toda sua clareza e complexidade. Em toda sua inteireza e fracionamento, sua singularidade mesclada de superposições. A cena da janela mostra que, antes de mais nada, território é uma forma de poder: é uma porção do espaço sobre a qual alguém exerce (ou tenta exercer) controle. O sabiá e o cãozinho indicam sua presença por sinais físicos e inequívocos. Cachorros não voam nem sobem em árvores: o céu e as copas são territórios naturais das aves. Fatores da natureza também contam ao se moldar territórios.
Ao erguer os muros em torno de suas casas e ao postar os vigilantes em suas guaritas, os donos dos imóveis também delimitam e tentam defender seus territórios. Assim dão dimensão física a um poder que adquiriram por força da lei: quem compra é dono, e pode defender o que é seu. Ou seja, o território também se cria a partir de convenções sociais, e não apenas pela natureza ou força física. Mas – pelo menos no Brasil de hoje – o poder do dono em sua propriedade é relativo, sujeitando-se a normas das mais diversas origens: o contrato de loteamento, a convivência com vizinhos, ONGs e associações de moradores, além das leis municipais, estaduais e federais. Nem sempre foi assim: há duas décadas não havia, por exemplo, lei que preservasse os bairrosjardim de São Paulo. Voltando aos tempos do Brasil Colônia, o dono da fazenda que aqui existia tinha direito de vida e morte sobre os escravos que nela viviam. Antes ainda, nem Brasil havia, nessas terras ainda dos Tupis e outros indígenas. O território, assim, revela-se algo dinâmico e historicamente determinado: que muda no tempo e conforme mudam as sociedades.
Vejo o muro pichado, e lembro que os garranchos são signos de tribos urbanas, de jovens que exibem sua ousadia e demonstram Inconformismo com o espaço a eles destinado pelas regras do jogo em vigor. Pensando também na empregada doméstica e nos vigilantes, eu me pergunto se seriam tão bem-vindos a este bairro onde trabalham se viessem no final de semana caminhar pelas calmas ruas arborizadas e fazer um piquenique na praça, com uma turma de amigos ou parentes. O território – que também pode ter regras e fronteiras invisíveis – reflete aqui uma realidade de disputa social, de classificação, apropriação e exclusão. Imagino que o estranhamento seria menor, se a turma do piquenique fosse composta de jovens “bem nascidos”, com seus colegas intercambistas vindos de vários países do mundo, mas de semelhante educação e classe socioeconômica. Tenho a sensação de que muitos brasileiros ricos se identificam mais com os ricos de outros países do que com seus compatriotas, os brasileiros pobres. E vice-versa, tanto para os ricos quanto para os pobres. Território também tem muito a ver com nacionalidade e identidade.
Somos ensinados que a pátria – o Estado- Nação definido como a entidade com poder soberano sobre um certo território – é o grande componente de nossa identidade: somos brasileiros, italianos, israelenses ou de qualquer nacionalidade, conforme o lugar em que nascemos ou o país a cujas leis nos sujeitamos. Mas, curiosamente – como mostram os três exemplos que mencionei -, a nacionalidade pode ser definida não só pelo local de nascimento, mas pela pátria dos antepassados, ou mesmo por laços religiosos e culturais. E até a noção de soberania é cada vez mais relativa: leis nacionais dialogam com direitos internacionais e governos de países sujeitam-se a mercados globais, enquanto empresas transnacionais, capitais imateriais e redes virtuais circulam e agem na velocidade da luz, aparentemente acima e além das fronteiras físicas. O território se expande para além do mundo físico, e incorpora novas dimensões: refere-se mesmo a qualquer espaço, seja ele terreno, virtual, cultural, seja imaginário.
Tudo isso é verdade, mas há uma realidade simples e direta: o território é portador dos recursos essenciais à nossa vida, em todas as suas dimensões. E vivemos todos em um só planeta, dependendo dos mesmos recursos. Da capacidade de compartilharmos esse território comum depende nosso futuro.
*Consultor em responsabilidade social e sustentabilidade, tem formação em Geografia pela FFLCH/USP e Administração Pública pela EAESP/FGV. Aron@ecopress.org.br