Mais que reduzir emissões, locomover-se a pé ou de bicicleta é uma forma de conhecer o território, interagir e lançar um olhar diferenciado sobre o espaço
Por Regina Scharf*
Linda Koulakjian, moradora de um subúrbio de Washington, decidiu dar caminhadas para emagrecer. Seus vizinhos não lhe deram trégua: paravam o carro para ver se ela tinha algum problema. Linda desistiu de andar. “Francamente, eu morria de vergonha”, admitiu ela, numa reportagem publicada pelo Washington Post tempos atrás. Sua história é emblemática do profundo desprezo que os americanos têm por quem dispensa o automóvel.
Brasileiros andam a pé ou de bicicleta por falta de opção. Os europeus o fazem por força da cultura e porque suas cidades são compactas e generosas com ciclistas e pedestres. Nos Estados Unidos, nem pensar: andar é atestado de fracasso. Apenas 9% dos americanos costumam andar a pé. De bicicleta, só 1%. Em comparação, os holandeses usam a bicicleta em um terço dos seus deslocamentos urbanos.
Nos EUA, o carro é usado mesmo quando a distância a cobrir é de poucos quarteirões. De cada quatro vezes que um sujeito pega no volante, uma é para percorrer menos de 1,5 quilômetro. Até aí, nenhuma novidade. É notório que americanos não desgrudam de seus carros nem sob reza brava. A surpresa é que os Estados Unidos começam a dar sinais de que cederão aos encantos dos chamados “meios de transporte ativos”. A elevação do preço dos combustíveis, a crise climática e a obesidade epidêmica são argumentos eloquentes nesse sentido.
Vamos às evidências. No ano passado, o número de bicicletas vendidas nos EUA bateu o de veículos motorizados, algo que não acontecia desde o início dos anos 70, no auge da crise do petróleo. As lojas especializadas também registraram procura sem precedentes de gente interessada em recuperar bicicletas esquecidas no quintal.
Outro indicador nesse sentido: o setor de serviços está mais atento a pedestres e ciclistas. O popular website Google Maps, que até recentemente só sugeria itinerários para deslocamentos feitos de carro, passou a indicar o melhor caminho para quem se movimenta a pé. Além disso, algumas imobiliárias começam a informar se os imóveis que oferecem estão em bairros favoráveis às caminhadas.
Elas utilizam o Walk Score, índice desenvolvido por um grupo de programadores de software que leva em conta a presença de comércio, restaurantes e postos de trabalho. Se o seu bairro tem um índice superior a 90, você não precisa de carro para quase nada. Se for Inferior a 25, o carro é essencial até para comprar pão. “Com o preço dos combustíveis chegando às nuvens, nossos compradores querem casas próximas ao seu trabalho, aos serviços e ao transporte público”, comenta Patrick Lashinsky, presidente da ZipRealty, uma das maiores imobiliárias virtuais dos Estados Unidos, das primeiras a adotar o Walk Score em seu website.
O crescente interesse dos americanos pelas bicicletas e caminhadas é tímido, quase irrisório, se comparado com o boom dessas práticas em outras partes do mundo. Por uma taxa módica, você pode alugar uma bicicleta em centenas de pontos de Paris e Copenhague, usá-la por horas e devolver do outro lado da cidade. Além disso, as prefeituras das duas cidades investiram em ciclovias, alargamento de calçadas e outras medidas que tornaram a vida dos ciclistas mais tranquila.
Resultado: tanto a capital francesa quanto a dinamarquesa dobraram a circulação de magrelas em poucos anos. Em consequência, as emissões parisienses de carbono foram reduzidas em 9%. Sucesso ainda maior teve Bogotá, que registrou um aumento de 900% na circulação de bicicletas. Isso graças à abertura da maior rede de ciclovias urbanas do planeta – nada menos que 300 quilômetros -, integrada a um sistema de ônibus similar ao de Curitiba, e à proibição da circulação de carros em parte da cidade aos domingos e feriados. Além disso, parcela dos recursos que seriam destinados a obras viárias tem sido transferida para a construção de parques e escolas. Um dos efeitos colaterais dessa política foi uma dramática redução no número de acidentes fatais de trânsito.
Os dirigentes dessas cidades perceberam que os benefícios dos transportes ativos não se limitam à redução de emissões ou à manutenção da saúde da população. São práticas com um componente cultural importante. Quem caminha interage com seus vizinhos, privilegia o comércio local, lança um olhar diferenciado sobre o espaço urbano. Flanar, para o poeta francês Charles Baudelaire, era uma aventura, uma experiência comunitária mais rica do que a literatura, mais dramática que o teatro. Era, “sair de casa, mas sentir-se em casa por toda a parte”. Coisa que o carro jamais vai oferecer.
*Jornalista especializada em meio ambiente