Gigantismo, aglomeração, ritmo veloz e estagnação. As marcas da metrópole reverberam na saúde no comportamento de seus moradores
Se a história humana fosse um grande romance, as cidades seriam o cenário de todos os turning points. Do Renascimento de Florença, passando pelo Iluminismo de Paris, até a pequena semente do movimento pelos direitos civis em Montgomery (EUA), as cidades provaram a capacidade de abrigar os maiores problemas e as maiores soluções. São, como disse Lévy-Strauss, “a coisa humana por excelência”.
Em nosso tempo, as megalópoles se tornaram reconhecidamente insustentáveis. Mas o que nem sempre se reconhece é que qualquer uma das questões socioambientais que se eleja traz consigo uma implicação de saúde, física ou psíquica. É algo que não se resume apenas às notórias conseqüências da poluição. Em artigo publicado Em 2008 no The Medical Journalof Australia, o diretor de Saúde Pública de Sydney, Anthony Capon, ousou conjugar medicina e urbanismo juntos.
“A vida urbana australiana é marcada por sedentarismo, excesso de ingestão de comida industrializada, abuso do carro como meio de transporte, alto nível de exposição a mensagens de marketing e cultura de consumismo. Essas características estão ligadas a obesidade, diabetes, doenças do coração, alguns tipos de câncer, doenças respiratórias crônicas, depressão e ansiedade (…) Cada estágio de evolução das cidades foi definitivo para transtornos de saúde.”
Em consultórios terapêuticos, diz o psicanalista Bernardo Tanis, as questões da subjetividade gradualmente perdem espaço para queixas do cotidiano. Este e outros sintomas levaram a Sociedade Brasileira de Psicanálise (SBP), em parceria com a Federação Psicanalítica de América Latina, a promover dois anos de ciclos de debates que culminaram com o simpósio “A Psicanálise nas Tramas da Cidade”, em São Paulo, no ano passado.
Todos os encontros foram multissetoriais, unindo sociólogos, urbanistas, cineastas, literatos, entre outros. “Há muitas convergências”, diz Magda Khouri, diretora de comunidade e cultura da SBP, “como a observação de que esse nosso espaço não tem mais aquele poder de reunião. A cidade é toda voltada para a passagem”. Mobilidade, para Magda, é um dos fatores que influenciam o bem-estar psíquico no meio urbano: “Há um desamparo muito grande na cidade. As relações afetivas acabam sendo intermediadas pelo distanciamento, pela dificuldade de chegar à outra pessoa”. Tanis, por sua vez, entende que a aglomeração humana marcou estratégias de sobrevivência pelo individualismo: “Se eu tiver que me preocupar com o que acontece com todos os outros ao meu redor, eu deixo de existir, porque é tanto outro! Ocorre uma dessensibilização. É um mecanismo de defesa, que já existia na patologia, mas que se exacerba nas grandes cidades”.
É senso comum dizer que moradores de grandes metrópoles são nervosos, ansiosos, estressados. No Brasil, paulistanos carregam essa pecha, assim como soteropolitanos levam a fama de ter a vida mansa. Todos somos capazes de intuir que essa generalização tem algo a ver com os estilos de vida de cada cidade. Mas, para superar o senso comum, é preciso compreender o que é estresse e como o nosso corpo reage aos estímulos ambientais. É preciso, enfim, começar do começo.
Estresse é um conjunto de respostas adaptativas do corpo a situações adversas. A natureza, em sua gloriosa sabedoria, dotou o cérebro humano de um radar indomável para captar ameaças. Diante da tal ameaça, o organismo libera hormônios de estresse, como adrenalina e cortisol. A pupila dilata, o coração bombeia mais sangue para os músculos e estes, por sua vez, retraem-se em antecipação para duas reações possíveis: lutar ou fugir.
Perfeito mecanismo para as savanas africanas que foram o berço da humanidade. Mas como poderia a Mãe Natureza supor que a civilização transformaria de tal forma o seu ambiente que as situações adversas de necessária adaptação seriam ininterruptas? Imagine-se caminhando por uma avenida movimentada de um típico centro urbano. É preciso enxergar através da multidão para se ter certeza do caminho, assim como placas de aviso e sinais de trânsito. É preciso cuidado para desviar de pessoas, carros, ônibus, motos e eventuais bicicletas, além de atenção redobrada para não ser vítima de uma das variantes da criminalidade urbana. Junte tudo e embrulhe em um véu amorfo de sons e ruídos, mais uma enormidade de estímulos visuais disputando sua atenção para ofertas imperdíveis de consumo.
Tudo isso é absorvido e filtrado pelo cérebro, essa máquina de notar ameaças, num esforço constante de retomar a concentração para aquilo que realmente importa. Aliás, é possível que apenas essa imagem mental já tenha acionado em você uma quantidade minúscula – mas real – de hormônios do estresse.
Considerados outros aborrecimentos e frustrações cotidianas, fica fácil entender por que mesmo as pessoas mais calmas às vezes perdem a compostura e ficam agressivas, por exemplo, no trânsito. Quando há estresse desencadeado por engarrafamentos, as pessoas recebem doses contínuas de hormônios feitos para lutar ou fugir, mas a realidade manda que fiquem imóveis. O copo vai enchendo, até que transborde, enfim, uma reação corporal de explosão que pode ser agressiva, já que essa é uma das funções para as quais o estresse se presta originalmente.
A outra explicação tem a ver com o funcionamento do cérebro. Uma região chamada córtex pré-frontal é responsável pela concentração e pela tomada de decisões. Infelizmente, para os seres cosmopolitas, é a mesma área que rege o autocontrole.
No trânsito, um motorista toma entre 60 e 100 decisões por minuto. Com a sobrecarga de informações, o controle dos impulsos também pode ficar comprometido, apesar de que as reações variam conforme a personalidade dos indivíduos. “Os mecanismos de controle existem para adequar a vida em comunidade. O indivíduo que está cansado, estressado, muitas vezes não consegue controlar o comportamento agressivo”, diz Marcelo Feijó, psiquiatra coordenador do programa de atendimento e pesquisa em violência da Universidade Federal de São Paulo (Prove/Unifesp).
A boa notícia é que os humanos também contam com uma capacidade extraordinária de se adaptar. “Algumas pessoas estão tão habituadas à adrenalina da cidade que, quando transportadas para o campo, aí, sim, é que vão ficar ansiosas. De tédio”, diz a psiquiatra Ana Paula Carvalho.
Um dos fenômenos mais estudados pela psicologia ambiental (vertente que trata das relações recíprocas entre o homem e se meio) é o da ambientação. “Depois de estar exposto durante muito tempo a um estímulo ruim, você para de se incomodar com ele, e só volta a notar quando vai para um ambiente diferente”, explica Fabio Iglesias, doutor em psicologia ambiental. Isso significa que as pessoas não precisam viver aos sobressaltos e até na cidade mais frenética é possível andar distraído. Mas não significa também que as conseqüências para a saúde necessariamente cessem junto com a percepção, algo que Magda Khouri chama de “efeito silencioso”.
Há outras maneiras de se adaptar ao ritmo da cidade grande e essas são as verdadeiras bombas-relógio silenciosas. Se não há tempo para se alimentar bem ou cozinhar, vive-se de comida industrializada rápida. Com carros e mais carros, caminhar é quase uma excentricidade. E, se fica difícil relaxar ao longo do dia, uma cerveja, um whisky, um cigarro, um baseado e mais tantas drogas lícitas ou ilícitas dão conta do recado.
Segundo a Organização Mundial da Saúde, as doenças que mais matam no mundo são cardiovasculares e cerebrovasculares. Assim como diabetes e alguns tipos de câncer, também entre as dez mais, estão associadas a maus hábitos que se acentuam no ambiente urbano: sedentarismo, tabagismo, abuso de drogas, má alimentação. Não por acaso, são chamadas de “doenças da civilização”. A mesma civilização que, em 2008, tornou-se pela primeira vez na história primordialmente urbana.
“É comum as pessoas dizerem que o bisavô fumava e bebia e viveu até os 90 anos. Mas no tempo dos nossos bisavós não se usava tanto carro, elevador, escada rolante… E não se comia tanta coisa industrializada”, diz Ana Paula. Enquanto a expectativa de vida cresceu através das gerações, nunca se teve a possibilidade de reunir tantos hábitos ruins.
Para aqueles que se utilizam de algum tipo de estimulante ou relaxante artificial, é bom saber que há uma alternativa muito menos nociva e também eficiente: tome “verde”. Tantas vezes ao dia quanto for possível.
Um estudo da Universidade de Michigan, publicado em 2008, buscou comparar os efeitos do ambiente urbano e do ambiente natural sobre o cérebro. Alguns alunos da universidade foram chamados a caminhar por um parque arborizado e outros, por uma rua movimentada. Depois, foram submetidos a testes de concentração e memória, como repetir uma sequência de números de trás para a frente. Aqueles que caminharam pela ambiente urbano tiveram resultados significativamente piores.
A explicação está na sobrecarga de informações e estímulos que a cidade representa. “A mente é uma máquina limitada”, disse ao jornal Boston Globe o psicólogo, autor do estudo, Marc Berman, “estamos começando a compreender como a cidade excede esses limites.”
Com base nesses resultados, é possível dizer que o contato com a natureza cumpre um papel duplo, que nos acostumamos a entender como opostos: acalma e relaxa, ao mesmo tempo que aprimora o poder de concentração e, consequentemente, o rendimento intelectual.
O estudo em questão é um dos expoentes de uma linha histórica de investigação sobre os benefícios do ambiente natural, algo de que a civilização urbana desconfia desde tempos remotos. Na Londres de 1841, a região chamada East End era um verdadeiro formigueiro humano, com muitas fábricas, epidemias e poluição do ar e da água. Aconselhada pelo sanitarista William Far, a rainha Vitória decidiu construir ali um parque que até hoje leva o seu nome, como medida de saúde pública.
Já em 1984, foi realizado outro estudo em um hospital da Pensilvânia (EUA), onde uma parte dos quartos tinha vista para uma parede de tijolos e a outra, para um jardim. Os pacientes que olhavam para árvores através de suas janelas tinham períodos de hospitalização mais curtos e precisavam de menos analgésicos.
Para o psicanalista Bernardo Tanis, a despeito de toda a discussão científica, existe um benefício inquestionável do contato com o natural que está ligado à beleza: “A dimensão estética é uma vertente tão importante no ser humano e que a gente perdeu no cotidiano. Olhar o mar, o horizonte, ouvir uma música te conecta com outros níveis da existência. É a dimensão do sublime”.
É forçoso reconhecer que há muitos elementos na urbanidade que elevam a qualidade de vida, em lugar de suprimi-la. Além das inúmeras vertentes de trabalho e de vivências culturais, a possibilidade do anonimato e de viver a individualidade em toda a sua amplitude, lembra Iglesias. “Punks ou homossexuais, por exemplo, são considerados aberrações em cidades muito pequenas. Já na grande cidade, as pessoas não precisam se preocupar tanto com a reação dos outros. Você pode ser quem é e fazer o que gosta.”
Talvez a saída esteja em nunca perder a visão crítica sobre a própria vida. A pedido da reportagem, a psiquiatra Ana Paula Carvalho arrisca uma receita mínima universal: boa alimentação, atividade física, lazer uma vez por semana e, pelo menos uma vez ao dia, fazer algo que lhe dê prazer. E você estará pronto para enfrentar a selva de pedra.
Essa fila não anda
Pesquisador explica por que a constante espera pode gerar ansiedade
Nas grandes cidades, mesmo quem não é motorista ou não se expõe a longos deslocamentos precisa lidar constantemente com séries de obstáculos humanos entre si mesmo e seus objetivos.
O psicólogo ambiental Fabio Iglesias, que fez doutorado sobre filas de espera, realizou mais de 300 entrevistas e concluiu que o principal fator de irritação para os usuários é não saber quanto tempo a espera pode durar.
Em outro levantamento, Iglesias perguntou a cerca de 400 entrevistados em diferentes posições na fila quantas pessoas estavam na frente deles. Via de regra, os últimos colocados subestimaram o tamanho da fila e os que ocupavam melhores posições exageraram. “A pessoa precisa ser otimista para decidir enfrentar o incômodo. Já as que estão há mais tempo naquela situação começam a ficar pessimistas, até como uma maneira de justificar o incômodo”, analisa Iglesias. Em ambos os casos, a estimativa de tempo de espera feita pelos usuários foi sempre superior à realidade.