A doutora em História pela Universidade de São Paulo Anita Novinsky conta nesta entrevista como surgiu a ideia de criar o Laboratório de Estudos sobre a Intolerância (LEI), após o 11 de Setembro. “Vi que os intelectuais não poderiam ficar só na universidade, escrevendo seus livros sobre a Antiguidade, mas deveriam agir.” O LEI deverá evoluir para um Museu da Tolerância, aberto ao público, que poderá consultar e conhecer histórias que levaram a guerras, preconceito, antissemitismo, escravidão. É a proposta de Anita para combater o estado de debilidade da memória e um ensino que privilegia a competição em lugar da compreensão. Em sua longa carreira na USP, Anita Novinsky dedicou-se a estudar os judeus no Brasil e a Inquisição – e sobre este último tema coube a ela introduzir os primeiros estudos na universidade, a respeito do qual publicou mais de uma dezena de títulos e artigos.
Para dar continuidade ao debate iniciado pela publicação de entrevista com a também professora da USP Arlene Clemesha, na edição 27, sobre a questão territorial na Faixa de Gaza, Página22 abre espaço para uma visão diferente a respeito de tema tão polêmico. Nesta conversa, Anita reconta, à sua maneira, a história do conflito entre palestinos e israelenses e mostra como a tolerância está longe de ser alcançada, por parte dos dois lados.
Por Ana Cristina D’Angelo
A senhora disse que a USP tem hoje uma visão pró-palestina. Como a identifica e quais as razões?
A USP foi a primeira universidade no mundo que introduziu estudos inquisitoriais. Como a Igreja assume a Inquisição, era muito difícil estudar esse fenômeno. Então a USP tem esse mérito. Além disso, a Universidade de São Paulo tem uma tradição humanística, recebeu professores judeus, refugiados da guerra e que foram os primeiros cientistas, filósofos, pensadores. Hoje a universidade está contagiada pela mídia tendenciosa, que constantemente fica apontando os crimes do Estado de Israel. E a mídia é tendenciosa em todo o mundo.
O antissemitismo é um movimento que persiste desde a Antiguidade. Sempre há relevância aos crimes de Israel e as vítimas são sempre os palestinos. Judeu é o invasor, judeu é o carrasco, e o palestino é a vítima. Isso é uma mentira das mais grotescas da história de hoje. Porque na fundação de Israel havia judeus e árabes, portanto, os judeus são tão palestinos quanto os que se chamam palestinos. Quando Israel perdeu a independência e foiconquistada pelos romanos, passou a se chamar Palestina, até 1948. Neste ano, a ONU fez a partilha entre árabes e judeus.
Como a senhora avalia a definição ocupados (Palestinos) e ocupantes (Israel) dada pela professora Arlene Clemesha em entrevista para a edição de fevereiro de Página22? Hoje Gaza é um território plenamente ocupado por Israel.
Mas Israel devolveu Gaza. Havia um pacto de paz, de não-agressão. Quem invadiu? Quem rompeu? Foi o Hamas quem rompeu o acordo de paz. Israel é acusado de tudo, mas Israel tem o direito de defender-se. Se 40 mil mísseis e não sei quantos mil foguetes são jogados em Israel, o país não vai fazer nada? Então, nós não podemos falar assim: “Ocupados e ocupantes”. Israel foi dividido pelas Nações Unidas, Israel aceitou a posição. Os lugares mais sagrados dos judeus ficaram do lado dos árabes.
Mas os acordos com a ONU preveem a criação do Estado de Israel e a criação do Estado Palestino. E isso até hoje não se conformou. Por quê?
Porque os palestinos não querem. Foram oferecidos 92% de tudo o que estava ocupado pelos judeus para os palestinos e eles não aceitaram. Os árabes não querem os judeus no Oriente Médio. O judeu é a modernidade, o judeu é a cultura da vida, eles são a cultura da morte, são dois mundos irreconciliáveis.
Não haverá reconciliação?
Enquanto esse ódio for enxertado, é irreconciliável. Porque o povo árabe não respeita a vida. Você sabe que tem mais de 50 mil crianças prontas para morrer? Prontas para dar a vida. Que amor é esse pela criança? Eles perguntaram também para Israel, um jornalista perguntou: “Como é que as crianças judias não estavam morrendo tanto?” E falaram: “Porque nós defendemos as nossas crianças”. Você sabe que em Israel tem bunker construído em todo lugar. Qualquer notícia de um ataque, todas as crianças vão para um bunker. E os árabes põem as crianças na frente dos soldados.
Que caminhos a senhora vê para um acordo? Ou não vê?
A primeira coisa para você fazer par com o outro é que o outro precisa dar a você o direito de viver. E os árabes não reconhecem o Estado de Israel, não dão o direito aos judeus de estarem lá. Então não podemos fazer par.
Com o Hamas na política não há acordo?
Eu o considero um grupo terrorista, como a Comunidade Europeia e os Estados Unidos também consideram. Porque é a cultura da morte, eles não têm o menor respeito pela vida. Você sabe que, quando um soldado de Israel morre, para a cidade inteira, fecham todas as lojas, porque um morreu.
Mas o número de mortes do lado palestino é muito maior do que o número de mortes entre os israelenses… Falo isso pela desproporcionalidade entre os ataques e não exatamente pelos números.
Um homem é igual a mil. Se eles têm mais mortos, é porque eles jogam as crianças e as mulheres. Você sabe que eles matam primeiro as meninas? Eles põem primeiro as meninas porque, para eles, a mulher não vale nada, a mulher é a escrava. Eu conheço os judeus e conheço os árabes, eu vou a Israel há 30 anos, todos os anos. Eu tenho muitos amigos árabes. E tem árabes maravilhosos, esclarecidos. Tem um milhão e meio de árabes vivendo em Israel, cidadãos de Israel, estudando nas universidades, ministros e parlamentares. Você conhece um país que tenha um inimigo no Parlamento? O único país que faz isso é Israel, porque dá direito aos árabes.
Apesar de que nós sabemos que, nesse conflito, muitos árabe-israelenses que moram em Israel e que nasceram em Israel estão inclinados aos palestinos. Não são todos, a grande maioria não, mas tem muitos que estão. Tem a tradição da língua, tem a tradição dos costumes, então eles se inclinam a defender mais os árabes. Agora, por que os árabes não fazem nada por esses pobres palestinos? Você sabe que os grandes magnatas do petróleo podiam ter resolvido essa questão brincando? Mas não interessa. Todos os judeus do mundo mandam dinheiro para Israel. Meu pai enviava dinheiro para cada criança que nascia. Então são duas culturas diferentes. Como é que você consegue reconciliar duas culturas tão opostamente diferentes?
Vamos falar agora desses novos governos. Com Benjamin Netanyahu fazendo alianças com ultradireitistas e uma possibilidade de coalizão do Hamas com outros grupos, o encontro desses dois universos fica cada vez mais difícil?
Eu venho de uma tradição marxista, eu venho da Universidade de São Paulo, onde estou desde os 18 anos. Tenho uma interpretação materialista da história. E eu não sou religiosa, eu sou laica e sigo algumas tradições religiosas em memória da minha mãe e do meu pai. As Nações Unidas deram a partilha, os judeus ficaram com um pedaço e eles ficaram com um pedaço. Tudo que é sagrado para os judeus ficou do lado deles.
Mas Jerusalém não ficou.
Claro, Jerusalém foi partida no meio. Mas por quê? Por que Jerusalém hoje está na mão de judeus? A ONU dividiu. Tudo o que era sagrado, como o Muro das Lamentações, onde os judeus durante 2 mil anos iam chorar a perda da liberdade, a perda da pátria. Em todos os lugares do mundo os judeus foram massacrados. Não tem um poder ou país que pode se eximir e dizer: “Não, aqui nós não matamos ninguém”. Todos os países mataram.
O Brasil matou?
A Inquisição matou por 300 anos, mas não se morria aqui, levava-se para Portugal. A metade da população brasileira era judia, durante a época colonial. Quando se dividiu a Palestina em duas partes, uma ficou chamando Israel, a outra ficou do lado dos árabes e aí criou-se o povo palestino. Não havia povo palestino, criou-se o povo palestino. Os judeus ficaram do seu lado, o Muro das Lamentações ficou do lado deles. O túmulo de Raquel, dos patriarcas de Abraão e Jacó, tudo ficou do lado deles. Cidade Velha, sagrada, de Jerusalém, ficou do lado deles. Os judeus são o único povo no mundo que tinha uma universidade antes de ter um país. Em 1925 foi a criada a Universidade Hebraica de Jerusalém. Israel não existia. Ela ficou do lado dos árabes também.
Bom, e o que aconteceu? Os árabes não aceitaram. Quem invadiu? Quem rompeu? Não foi o judeu. A Guerra dos Seis Dias o que foi? Os árabes invadiram Israel. Não aceitaram a partilha da ONU. E, na Guerra do Yom Kippur, estavam todos os soldados jovens rezando e eles justamente atacaram naquele dia. Porque não aceitaram. Aí, sim, na Guerra dos Seis Dias, os judeus tomaram o território, mas quem invadiu foram eles. Os judeus lutaram e conquistaram tudo outra vez. Você sabe que eles fugiram pelo deserto, fugiram todos, não estavam preparados e fugiram. E os judeus ocuparam Jerusalém.
Como Israel poderá suspender o bloqueio ao território palestino?
Como suspender, se o outro não para? Você viu, o judeu entrou em acordo com o Hamas. Eu estava em Jerusalém, em agosto de 2005, quando se deu a desocupação de Gaza.
Mas restam colônias israelenses na região.
Ainda tem, mas a maioria toda saiu, as casas, as lojas, tudo. As meninas e rapazes que tinham nascido lá tiveram que sair da sua casa, da sua escola, entrar em um caminhão e ir embora. Não tinha nem para onde ir, o governo acomodou, porque o governo lá cuida de sua população.
Mas você não pode imaginar o que eram os choros, os gritos das crianças saindo de Gaza, porque eles nasceram lá e aquilo era a pátria deles. Eu nunca poderei favorecer as direitas, porque as direitas em geral são fascistas, são nazistas, são fundamentalistas. Agora, nós vivemos em um mundo em que já não se pode mais distinguir tão bem direita e esquerda, porque a esquerda hoje está tão fanatizada e tão racista quanto a extrema direita.
Todo o povo de Israel quer um Estado palestino. Mas não adianta, porque o Hamas não aceita a existência de Israel. Então, não adianta falar em paz, em acordos, em nada, enquanto o Hamas não admitir que Israel tem o direito de viver. Eles não acreditam nisso, eles não reconhecem.
Então essa troca do governo de Israel não muda nada?
O governo de Israel é um governo democrático, primeiro de tudo. Mesmo o governo de direita, porque é um governo que tem eleições não fraudulentas, normais e não tem nenhum ditador. Não é um totalitarismo, é uma democracia. É o único Estado democrata que existe no Oriente Médio. Os outros todos são fundamentalistas, totalitários. Como o Netanyahu, tem uma porcentagem do povo em Israel, uns 5%, 6%, mais ou menos, que são extremamente religiosos. Eu não tenho nada a ver com eles, nem o povo de Israel tem. A maioria do povo de Israel é laico, democrata e não religioso, mas tradicionalista.
Sua família migrou para o Brasil, fugindo do Holocausto?
O meu pai veio antes. Ele queria ir para os Estados Unidos, mas não davam visto. Quando ele veio para o Brasil, era para sair daqui para os Estados Unidos. Quando ele chegou aqui, ele gostou muito, resolveu ficar e mandou vir a minha mãe. O antissemitismo na Polônia, você não imagina. O polonês era mais antissemita do que o alemão. Tem um monumento enorme numa cidade polonesa em memória dos judeus que foram assassinados pelos poloneses, depois que saíram do campo de concentração.
Seu avô não quis vir?
O meu avô, coitado, ele não imaginava o que ia acontecer. Ele escreveu para a minha mãe, eu tenho a carta: “Olha, a situação está ruim, está em crise, eu não posso vender nada, não posso vender a minha casa. Deixa melhorar a situação, eu vou vender alguma coisa, eu vou”. Que ilusão. Quando eu estive na Polônia, fui visitar a casa em que nasci. Eu tinha 1 ano de idade quando vim (para o Brasil). Eu tinha um guia polonês e uma menina polonesa que falava inglês, que era a minha guia também. Vi uns homens passarem na rua e pedi que ele perguntasse se eles conheciam o meu avô. Responderam: “Ele morava aqui. Os alemães chegaram, jogaram ele na rua e bateram nele, ‘Jüdisches! Jüdisches! Jüdisches!'” “Jüdisches” quer dizer “judeus”. Bateram nele e levaram embora para o campo de concentração. Ele tinha mulher, tinha filhos, tinha netos, tinha irmã, tinha família. Morreu como um cão, sem ninguém.
São quantos os judeus hoje no Brasil, foco dos seus estudos na USP?
No Brasil tem 150 mil. Aqui em São Paulo tem 80 mil, e 50 mil no Rio de Janeiro. A maioria está em São Paulo e no Rio de Janeiro, porque judeu gosta de morar perto (um do outro). Todos os brasileiros de classe média têm origem judaica, porque ninguém vinha para o Brasil. Ou se morria de malária, ou se morria em naufrágio, ou se morria comido pelos índios. Só vinha quem não tinha onde ficar. A Inquisição ameaçava matá-los e queimá-los vivos. Então, claro, eles fugiam. E cada nau que saía do porto de Lisboa, do Tejo, vinha carregada de fugitivos. Os ricos tiveram engenhos. Depois vieram os pobres e os ricos deram um pedaço de terra para eles cultivarem.
Hoje, todo povo de Israel quer a pátria e por isso quer fazer a paz. Mas os radicais e os religiosos não querem, tanto judeus como árabes. A única diferença é que para esses fanáticos judeus a vida é o supremo bem. E para os árabes fanáticos a vida não é o supremo bem.
Já que estamos falando de intolerância, queria que a senhora falasse do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância.
Bom, nós criamos o laboratório no ano de 2002 na Universidade de São Paulo. É um novo centro de pesquisa. Ele já é reconhecido internacionalmente e tem uma equipe de pesquisadores numerosa. Eu tive a ideia de criar o laboratório depois do 11 de Setembro. Estava na Europa e percebi que os intelectuais tinham que entrar na realidade. Os intelectuais não podem mais ficar na academia, escrevendo sobre a Antiguidade para meia dúzia de leitores. Esses intelectuais têm de ter um papel no mundo e se manifestar. Porque ou nós nos manifestamos ou os totalitaristas e os fundamentalistas ganham. Ou nós trabalhamos ou eles ganham. Então eu acho que o intelectual não pode mais ficar alheio ao que está acontecendo no mundo. Ele tem que ser ativo, tem que ser engajado.
E o que o laboratório comporta é a história brasileira?
Tem seis módulos, por enquanto. Vai ter mais, porque o laboratório está se expandindo muito. Cada módulo tem um coordenador e os seus pesquisadores. Vou dar um exemplo: eu sou a coordenadora do módulo sobre a Inquisição, intolerância, que é a minha especialidade. E então eu coordeno os meus pesquisadores. Eu tenho dez que estão fazendo o doutoramento, que são oficialmente inscritos para trabalhar na pesquisa. Depois, tem os módulos sobre a educação, o holocausto, a mulher, os índios e um módulo sobre os negros, a escravidão. São seis módulos. Cada módulo tem o seu coordenador e seus pesquisadores. Nós já publicamos doze livros. A ideia é que o laboratório evolua para um Museu da Tolerância, aberto ao público, para as crianças, as escolas freqüentarem. O museu pretende instalar, pela primeira vez na América Latina, uma escola aberta a todas as raças e credos, esclarecendo os danos causados pela intolerância, responsável pelo sofrimento e extermínio de milhões de seres humanos. Deverá ser um espaço vivo voltado para a aprendizagem e a educação, apontando por meio de exposições permanentes e itinerantes questões cruciais como racismo, escravidão, inquisição, antissemitismo, holocausto, terrorismo, discriminações contra a mulher e grupos étnicos, conflitos religiosos, trabalho infantil.
No projeto do museu constam duas biblioteca, uma cinemateca, um auditório para 400 pessoas, galerias para exposições, salas multimídia, salas de aula, lanchonetes e espaços de estar para encontros informais. Um espaço também será reservado para as atividades do laboratório.
O ensino precisa de uma disciplina que seja tolerância, algo nesse sentido?
Pois é, a ideia do museu é as escolas irem lá para ver o que a intolerância fez, os massacres que a intolerância causou: o nazismo, a Inquisição, a escravidão, isso é o que o Museu da Tolerância vai mostrar. Por exemplo, o Museu da Tolerância de Los Angeles é assim: você pode acessar um computador em que aparecem questões para responder. E depois aparece no telão a resposta certa. Então, por exemplo, um deles dizia assim: “A maior parte da mortalidade infantil é por causa de…” E dá dez razões: fome, espancamento, doença… Das dez você tem que responder no seu computador qual é a que acha a certa. E eu que achava que era muito bem informada, respondi que era por inanição, má alimentação, crianças mal alimentadas, não é isso? Doenças. Não é verdade. A maior causa da mortalidade infantil é o trabalho infantil. Eu descobri isso lá. Eu, que achava que sabia tudo, cheguei lá e vi aquilo.
É nesse tipo de museu que você vai entrar. Na sala de racismo vai aparecer o que é o racismo. E as pessoas do povo vão aprender. É uma escola, o nosso museu vai ser uma escola.
E a senhora é muito crítica também do ensino.
Nossa! É preciso haver uma renovação completa do sistema educacional brasileiro e mundial. Não pensa que é só aqui, é mundial também. Porque esse espírito de competição é um veneno para a criança, esse espírito de competição: “Você tem que ser o primeiro. Se não for o primeiro, você vai ficar inferior ao seu vizinho”. Isso é a pior coisa que pode existir para uma criança. Eles não têm psicologia, não conhecem. Aliás, no dia 22 de abril, agora, vai acontecer no Sesc Pinheiros o Congresso Mundial sobre Tolerância, que eu organizei. Virá gente do mundo inteiro.