A gestão das águas no Brasil assume contornos mais sociopolíticos e menos tecnocráticos, mas a sociedade civil ainda precisa ampliar sua força e cobrar uma nova cultura de direitos
Por Pedro Roberto Jacobi*
Com quantos atores se faz uma boa governança A gestão das águas no Brasil assume contornos mais sociopolíticos e menos tecnocráticos, mas a sociedade civil ainda precisa ampliar sua força e cobrar uma nova cultura de direitos
Oimpacto das práticas participativas na gestão, apesar de controversas, aponta para uma nova qualidade de cidadania, que abre espaços de expressão sociopolítica e influencia qualitativamente na transformação da governança da água no Brasil. A gestão de bacias hidrográficas assume crescente importância no Brasil, à medida que aumentam os efeitos da degradação ambiental sobre os recursos hídricos.
Observam-se importantes avanços na governança da água nos últimos 20 anos, mas ainda há muitos obstáculos a superar.
O País passou de uma gestão institucionalmente fragmentada para uma legislação integrada, que resgata o poder das instituições descentralizadas de bacia. Incluem-se nesse processo, além de investimentos, ações voltadas para o fortalecimento do sistema de gestão de recursos hídricos da bacia e a implantação dos sistemas de informações, de redes de monitoramento e de instituições de gerenciamento.
A fórmula proposta é de uma gestão pública colegiada dos recursos hídricos, com negociação sociotécnica, através dos comitês de bacias. s usuários da água terão de se organizar e participar ativamente dos comitês, defender seus interesses quanto aos preços a serem cobrados pelo uso, assim como sobre a aplicação dos recursos arrecadados e a concessão justa das outorgas dos direitos de uso. Obviamente, esses acertos e soluções serão conseguidos depois de complexos processos de negociação e resolução de conflitos entre os diversos agentes públicos, os usuários e a sociedade civilorganizada.
A legislação estabelece como fundamento que a água é dotada de valor econômico, e isto está relacionado à cobrança pelo uso para a geração de fundos que permitam investimentos na preservação dos próprios rios e bacias. Também provoca maior rigor no controle sobre os efluentes despejados nos rios.
Entretanto, o alcance das experiências tem sido desigual.
Em 2008 já se contam mais de 120 comitês de bacias estaduais, e seis federais, mas a maioria carece de regulamentação de suas ferramentas básicas, como as agências e a cobrança pelo uso da água, para que possam cumprir suas responsabilidades legais. Até agora, mais de uma década após a aprovação da primeira lei de águas no País, nenhum sistema foi operacionalizado por completo.
A lógica do colegiado permite que os atores envolvidos atuem no intuito de neutralizar práticas predatórias orientadas pelo interesse econômico ou político. Isso facilita uma interação mais transparente e permeável no relacionamento entre os diferentes atores envolvidos – governamentais, empresariais e usuários.
Limita as chances de abuso do poder, mas não necessariamente da manipulação de interesses pelo Executivo, o que dependerá, principalmente, da capacidade de organização dos segmentos da sociedade civil.
Mas o que se observa em muitos comitês é uma crise na representação do segmento associativo e das ONGs. As mais representativas têm se afastado do processo e seu lugar é ocupado por instituições com atuação muito localizada e que em muitos casos concentram esforços na disputa pelos recursos dos fundos estaduais, como é o caso do Fundo Estadual de Recursos Hídricos (Fehidro), em São Paulo. É crescente a dificuldade das ONGs em contar com quadros dedicados de forma sistemática e articulada com as atividades que a gestão tripartite demanda.
As plenárias são utilizadas, em alguns casos, para polarizações com o segmento estadual e veladas disputas entre atores da sociedade civil, que – articulados com atores públicos locais – se utilizam do espaço para marcar posições políticas não explícitas que têm por trás disputas partidárias. Em diversos casos se verifica pouca renovação e, portanto, pouca mudança nas práticas. Observa-se também uma perda de qualidade da participação, na medida em que a representação desses segmentos frequentemente faz do conflito sua forma de manifestar suas posições.
Os complexos e desiguais avanços mostram o desafio de superar assimetrias de informação e afirmar uma nova cultura de direitos. A gestão colegiada tende a definir uma dinâmica que permite aos atores integrar e ajustar práticas com base em uma lógica de negociação sociotécnica, que substitui a concepção tecnocrática, visando ajustar interesses e propostas nem sempre convergentes e articulados em torno de um objetivo comum.
O maior problema com o qual se defrontam muitos comitês é o fato de os diversos atores envolvidos na dinâmica territorial terem visões divergentes do processo e de seus objetivos.
Dada a complexidade do processo, e das dificuldades de se consolidar um parâmetro de cidadania ambiental, os limites estão dados pela prevalência de lógicas de gestão que ainda centram, na maioria dos casos, uma forte prevalência do componente técnico como referencial de controle.
*Professor titular do Procam, representa a USP no Comitê do Alto Tietê e coordena o Projeto Alfa da Comunidade Europeia sobre Governança da Água na América Latina.