Um dos lugares afetados mais cedo pela mudança climática no mundo, o estado de Western Australia lança mão de dessalinização, reciclagem e redução no consumo para se adaptar à menor disponibilidade de água
Por Flavia Pardini
No começo, não havia nada: pessoas, árvores ou pássaros. O espírito ancestral que vivia no céu veio à terra e criou lugares sagrados, mas ainda assim não havia nada, pois não havia água. A serpente da água estava presa em uma montanha e, por mais que o espírito chamasse, ela não podia ouvir. Ele então soltou um trovão que rachou a montanha e liberou a magnífica serpente. Por onde andou, deixou rios, piscinas intermitentes, e permitiu que a vida florescesse. De volta às profundezas da terra, ela ainda hoje se revela, na forma de um arco-íris que se move na água e durante as chuvas, moldando paisagens, às vezes engolindo e afogando pessoas, outras dando força aos que têm poderes de fazer chover. Controla o bem mais precioso para a vida – a água.
Contos como o da serpente arco-íris fazem parte do Sonho, histórias sobre a criação usadas nas culturas aborígines para transmitir conhecimento, valores culturais e crenças que garantiram a sobrevivência de diversos povos por mais de 40 mil anos no seco continente australiano. Duzentos e vinte e um anos depois que os europeus se instalaram na Austrália, as mudanças climáticas, e principalmente seus impactos na disponibilidade de água, reforçam a necessidade de se adaptar.
Esses impactos são especialmente visíveis no estado de Western Australia (WA), que ocupa o terço ocidental do continente australiano, onde a redução da precipitação e o aumento das temperaturas nas últimas décadas anunciam um futuro desafiador. Ainda mais diante do crescimento da população – 2,9% em 12 meses até setembro de 2008 -, graças ao boom econômico alimentado pelo setor mineral e suas exportações para a Ásia.
“O sudoeste de WA foi um dos lugares afetados mais cedo pela mudança climática no mundo”, diz Don McFarlane, coordenador do programa Água para um País Saudável, da CSIRO, agência científica nacional da Austrália. Em queda desde os anos 70, a precipitação na região de Perth, capital do estado, diminuiu 12% nos últimos sete anos em comparação à média de 1980 a 1990 e tirou do radar a principal fonte de água da cidade, as represas alimentadas por rios e pela chuva. Além de mais seco, o estado ficou mais quente – as temperaturas médias subiram 0,8 grau desde 1910.
Sem mitos nem histórias para moldar o comportamento de uma população crescente, as autoridades optaram por investir na diversidade. A ideia, segundo um plano estratégico para os próximos 50 anos da Water Corporation, empresa que serve a capital, é agir para garantir novas fontes, a reciclagem de água e a redução do consumo de forma a não depender de apenas uma das opções e, assim, reduzir a vulnerabilidade da região.
Perth tem alguma folga para se adaptar, graças ao fato de que repousa sobre grandes reservatórios subterrâneos. Para evitar a superexploração desses aquíferos, a cidade optou pela dessalinização – não sem antes embarcar em polêmicas públicas sobre projetos para trazer água da região de Kimberley, a cerca de 2 mil quilômetros ao norte, e do aquífero Yarragadee, ao sul da capital. Ambos acabaram engavetados. E, em novembro de 2006, foi inaugurada em Kwinana, distrito industrial da capital, a maior planta de dessalinização do Hemisfério Sul, que produz pelo método de osmose revertida 17% da água potável consumida em Perth. Outros 20% virão de uma segunda usina, com início de operação previsto para 2011.
O apelo do processo de tornar a água do mar potável é o fato de que ele independe do clima: chova ou faça sol é sempre possível “produzir” água. As fontes de superfície e subterrâneas, ao contrário, dependem da chuva para manter seus níveis. De outro lado, o consumo de energia pela dessalinização é alto e os rejeitos são despejados de volta no oceano, com efeitos sobre a vida marinha. A planta de Kwinana, dizem as autoridades, usa energia eólica e possui avançado sistema de efluentes. Os ambientalistas contestam os argumentos, mas as previsões de que o início das operações causaria um desastre marinho não se concretizaram.
“Chegamos ao limite com a água subterrânea, por isso fomos para a dessalinização”, diz Jim Gill, que foicEO da Water Corporation por 12 anos até se aposentar, em 2008. “Não há limite com a dessalinização, apenas que a água vaicustar mais.” Segundo ele, a empresa hoje retira 165 gigalitros de água do subsolo, quando a extração sustentável seria de 120 a 135 gigalitros. O custo da água produzida em Kwinana é de 1,17 dólar australiano (cerca de R$ 1,86) por quilolitro – ou mil litros -, cerca de um terço a mais do que o da água de represas e do subsolo.
Steven McKiernan, representante para assuntos hídricos da ONG ambiental Conservation Council, compara as usinas de dessalinização a peças de lego, que podem ser colocadas aqui ou acolá, conforme a necessidade. “O limite é a consciência de que não se vive dentro dos limites do meio ambiente”, diz.
Apesar do milagre de acomodar população e economia crescentes em um ambiente cada vez mais árido, a dessalinização não dá conta do recado sozinha, admite a Water Corporation. Sem outras medidas, seriam necessárias pelo menos dez outras plantas até 2060, com aumento de seis vezes no consumo de energia. Os investimentos para operar tal parque fariam a conta de água dos habitantes de Perth dobrar em termos reais.
Além da dessalinização e da água subterrânea, a Water Corporation considera a reciclagem como uma nova fonte. Mas para isso precisa ajudar a população a superar o fator “yuk” – a rejeição a consumir água que, sabe-se, já foi esgoto. Segundo a empresa, só um lugar no mundo retorna a água de esgoto tratada diretamente às torneiras para ser bebida: Windhoek, capital da Namíbia.
Para dar um empurrãozinho, a Water Corporation planeja tratar o esgoto e reinjetar a água no subsolo, beneficiando-se da percepção do cidadão comum de que, assim, o líquido passa por um processo “natural” de filtragem. Estudo feito pela CSIRO em 2005 mostrou que tal noção torna a comunidade mais receptiva: apenas 13% de 400 pessoas entrevistadas disseram que beberiam, sem restrições, a água reciclada e bombeada diretamente para suas torneiras, mas 31% afirmaram que topariam consumir se a água passar pela reinjeção no aquífero [2]. Um teste do projeto de reinjeção está previsto para este ano.
Dos 280 gigalitros de água potável fornecidos pela Water Corporation atualmente em Perth, apenas 1% é ingerido, diz Don McFarlane. “O resto usamos para dar descarga”, afirma. A empresa recupera mais de 100 gigalitros, trata e despeja no oceano. Se o teste de reinjeção der certo, a Water Corporation acredita que a reciclagem pode representar mais de 20% da demanda em sua rede até 2060.
Oásis acarpetado
Enquanto a reciclagem não vem, continuam os esforços para consumir menos água. Graças a restrições impostas ao uso da água em áreas externas, o consumo per capita em Perth caiu 20% desde 2001. Ainda assim, dos 650 gigalitros captados de diversas fontes em 2008, 57% foram retirados de reservatórios subterrâneos por particulares e pelo departamento estadual de águas por meio de poços artesianos. Por não ser tratada, é usada para irrigar parques, áreas públicas e jardins, e permite que Perth – ao contrário de outras cidades australianas – pareça um oásis acarpetado. Para a Water Corporation, o uso de poços particulares é interessante, pois evita que água tratada acabe nos gramados e calçadas.
Mas os poços não são fiscalizados e para perfurar basta pagar uma taxa simbólica – a água é de graça, inclusive nas áreas agrícolas, onde é empregada na irrigação. Mesmo na cidade, o custo é mantido baixo para garantir acesso universal,
o que acaba desencorajando a eficiência e a redução no consumo. Para Jörg Imberger, diretor do Centre for Water Research da Universidade de Western Australia, é preciso cobrar de forma a estabelecer uma relação do consumidor com a água. “Faria sentido fixar o preço de acordo com o que custa para fornecer água e estabelecer um esquema social para subsidiar as pessoas mais pobres”, diz.
“Construímos um estilo de vida sobre o fato de que a água é barata”, admite Jim Gill. O resultado é que cada habitante de Perth usa, em média, 147 mil litros de água em um ano – a maior taxa entre as cidades australianas. Para Gill, é possível ter uma vida boa com menos água. “Mas teríamos que redesenhar a maneira como vivemos”, adverte. Sem tamanha ambição, o plano da Water Corporation prevê mudanças na precificação e incentivos para quem usa menos como forma de atingir as metas de reduzir o consumo total de água em 15% até 2030, em relação aos níveis de 2008, e em 30% até 2060.
Redesenhar estilos de vida é um desafio e tanto em qualquer parte, mas especialmente em WA, onde o aumento da população nos últimos anos veio acompanhado de mais afluência. “Mais gente tem TV de plasma, computador, carro e, em cima de casa, uma enorme caixa de ar condicionado”, afirma Steven McKiernan. A afluência e a persistência do que ele chama de “mentalidade de pedreira”, voltada para a exploração crescente de minerais para exportação, acabam prejudicando as chances de uma verdadeira transformação – e não apenas de medidas incrementais – na gestão dos recursos hídricos, diz McKiernan.[:en]
Um dos lugares afetados mais cedo pela mudança climática no mundo, o estado de Western Australia lança mão de dessalinização, reciclagem e redução no consumo para se adaptar à menor disponibilidade de água
Por Flavia Pardini
No começo, não havia nada: pessoas, árvores ou pássaros. O espírito ancestral que vivia no céu veio à terra e criou lugares sagrados, mas ainda assim não havia nada, pois não havia água. A serpente da água estava presa em uma montanha e, por mais que o espírito chamasse, ela não podia ouvir. Ele então soltou um trovão que rachou a montanha e liberou a magnífica serpente. Por onde andou, deixou rios, piscinas intermitentes, e permitiu que a vida florescesse. De volta às profundezas da terra, ela ainda hoje se revela, na forma de um arco-íris que se move na água e durante as chuvas, moldando paisagens, às vezes engolindo e afogando pessoas, outras dando força aos que têm poderes de fazer chover. Controla o bem mais precioso para a vida – a água.
Contos como o da serpente arco-íris fazem parte do Sonho, histórias sobre a criação usadas nas culturas aborígines para transmitir conhecimento, valores culturais e crenças que garantiram a sobrevivência de diversos povos por mais de 40 mil anos no seco continente australiano. Duzentos e vinte e um anos depois que os europeus se instalaram na Austrália, as mudanças climáticas, e principalmente seus impactos na disponibilidade de água, reforçam a necessidade de se adaptar.
Esses impactos são especialmente visíveis no estado de Western Australia (WA), que ocupa o terço ocidental do continente australiano, onde a redução da precipitação e o aumento das temperaturas nas últimas décadas anunciam um futuro desafiador. Ainda mais diante do crescimento da população – 2,9% em 12 meses até setembro de 2008 -, graças ao boom econômico alimentado pelo setor mineral e suas exportações para a Ásia.
“O sudoeste de WA foi um dos lugares afetados mais cedo pela mudança climática no mundo”, diz Don McFarlane, coordenador do programa Água para um País Saudável, da CSIRO, agência científica nacional da Austrália. Em queda desde os anos 70, a precipitação na região de Perth, capital do estado, diminuiu 12% nos últimos sete anos em comparação à média de 1980 a 1990 e tirou do radar a principal fonte de água da cidade, as represas alimentadas por rios e pela chuva. Além de mais seco, o estado ficou mais quente – as temperaturas médias subiram 0,8 grau desde 1910.
Sem mitos nem histórias para moldar o comportamento de uma população crescente, as autoridades optaram por investir na diversidade. A ideia, segundo um plano estratégico para os próximos 50 anos da Water Corporation, empresa que serve a capital, é agir para garantir novas fontes, a reciclagem de água e a redução do consumo de forma a não depender de apenas uma das opções e, assim, reduzir a vulnerabilidade da região.
Perth tem alguma folga para se adaptar, graças ao fato de que repousa sobre grandes reservatórios subterrâneos. Para evitar a superexploração desses aquíferos, a cidade optou pela dessalinização – não sem antes embarcar em polêmicas públicas sobre projetos para trazer água da região de Kimberley, a cerca de 2 mil quilômetros ao norte, e do aquífero Yarragadee, ao sul da capital. Ambos acabaram engavetados. E, em novembro de 2006, foi inaugurada em Kwinana, distrito industrial da capital, a maior planta de dessalinização do Hemisfério Sul, que produz pelo método de osmose revertida 17% da água potável consumida em Perth. Outros 20% virão de uma segunda usina, com início de operação previsto para 2011.
O apelo do processo de tornar a água do mar potável é o fato de que ele independe do clima: chova ou faça sol é sempre possível “produzir” água. As fontes de superfície e subterrâneas, ao contrário, dependem da chuva para manter seus níveis. De outro lado, o consumo de energia pela dessalinização é alto e os rejeitos são despejados de volta no oceano, com efeitos sobre a vida marinha. A planta de Kwinana, dizem as autoridades, usa energia eólica e possui avançado sistema de efluentes. Os ambientalistas contestam os argumentos, mas as previsões de que o início das operações causaria um desastre marinho não se concretizaram.
“Chegamos ao limite com a água subterrânea, por isso fomos para a dessalinização”, diz Jim Gill, que foicEO da Water Corporation por 12 anos até se aposentar, em 2008. “Não há limite com a dessalinização, apenas que a água vaicustar mais.” Segundo ele, a empresa hoje retira 165 gigalitros de água do subsolo, quando a extração sustentável seria de 120 a 135 gigalitros. O custo da água produzida em Kwinana é de 1,17 dólar australiano (cerca de R$ 1,86) por quilolitro – ou mil litros -, cerca de um terço a mais do que o da água de represas e do subsolo.
Steven McKiernan, representante para assuntos hídricos da ONG ambiental Conservation Council, compara as usinas de dessalinização a peças de lego, que podem ser colocadas aqui ou acolá, conforme a necessidade. “O limite é a consciência de que não se vive dentro dos limites do meio ambiente”, diz.
Apesar do milagre de acomodar população e economia crescentes em um ambiente cada vez mais árido, a dessalinização não dá conta do recado sozinha, admite a Water Corporation. Sem outras medidas, seriam necessárias pelo menos dez outras plantas até 2060, com aumento de seis vezes no consumo de energia. Os investimentos para operar tal parque fariam a conta de água dos habitantes de Perth dobrar em termos reais.
Além da dessalinização e da água subterrânea, a Water Corporation considera a reciclagem como uma nova fonte. Mas para isso precisa ajudar a população a superar o fator “yuk” – a rejeição a consumir água que, sabe-se, já foi esgoto. Segundo a empresa, só um lugar no mundo retorna a água de esgoto tratada diretamente às torneiras para ser bebida: Windhoek, capital da Namíbia.
Para dar um empurrãozinho, a Water Corporation planeja tratar o esgoto e reinjetar a água no subsolo, beneficiando-se da percepção do cidadão comum de que, assim, o líquido passa por um processo “natural” de filtragem. Estudo feito pela CSIRO em 2005 mostrou que tal noção torna a comunidade mais receptiva: apenas 13% de 400 pessoas entrevistadas disseram que beberiam, sem restrições, a água reciclada e bombeada diretamente para suas torneiras, mas 31% afirmaram que topariam consumir se a água passar pela reinjeção no aquífero [2]. Um teste do projeto de reinjeção está previsto para este ano.
Dos 280 gigalitros de água potável fornecidos pela Water Corporation atualmente em Perth, apenas 1% é ingerido, diz Don McFarlane. “O resto usamos para dar descarga”, afirma. A empresa recupera mais de 100 gigalitros, trata e despeja no oceano. Se o teste de reinjeção der certo, a Water Corporation acredita que a reciclagem pode representar mais de 20% da demanda em sua rede até 2060.
Oásis acarpetado
Enquanto a reciclagem não vem, continuam os esforços para consumir menos água. Graças a restrições impostas ao uso da água em áreas externas, o consumo per capita em Perth caiu 20% desde 2001. Ainda assim, dos 650 gigalitros captados de diversas fontes em 2008, 57% foram retirados de reservatórios subterrâneos por particulares e pelo departamento estadual de águas por meio de poços artesianos. Por não ser tratada, é usada para irrigar parques, áreas públicas e jardins, e permite que Perth – ao contrário de outras cidades australianas – pareça um oásis acarpetado. Para a Water Corporation, o uso de poços particulares é interessante, pois evita que água tratada acabe nos gramados e calçadas.
Mas os poços não são fiscalizados e para perfurar basta pagar uma taxa simbólica – a água é de graça, inclusive nas áreas agrícolas, onde é empregada na irrigação. Mesmo na cidade, o custo é mantido baixo para garantir acesso universal,
o que acaba desencorajando a eficiência e a redução no consumo. Para Jörg Imberger, diretor do Centre for Water Research da Universidade de Western Australia, é preciso cobrar de forma a estabelecer uma relação do consumidor com a água. “Faria sentido fixar o preço de acordo com o que custa para fornecer água e estabelecer um esquema social para subsidiar as pessoas mais pobres”, diz.
“Construímos um estilo de vida sobre o fato de que a água é barata”, admite Jim Gill. O resultado é que cada habitante de Perth usa, em média, 147 mil litros de água em um ano – a maior taxa entre as cidades australianas. Para Gill, é possível ter uma vida boa com menos água. “Mas teríamos que redesenhar a maneira como vivemos”, adverte. Sem tamanha ambição, o plano da Water Corporation prevê mudanças na precificação e incentivos para quem usa menos como forma de atingir as metas de reduzir o consumo total de água em 15% até 2030, em relação aos níveis de 2008, e em 30% até 2060.
Redesenhar estilos de vida é um desafio e tanto em qualquer parte, mas especialmente em WA, onde o aumento da população nos últimos anos veio acompanhado de mais afluência. “Mais gente tem TV de plasma, computador, carro e, em cima de casa, uma enorme caixa de ar condicionado”, afirma Steven McKiernan. A afluência e a persistência do que ele chama de “mentalidade de pedreira”, voltada para a exploração crescente de minerais para exportação, acabam prejudicando as chances de uma verdadeira transformação – e não apenas de medidas incrementais – na gestão dos recursos hídricos, diz McKiernan.