O planeta que tantos querem salvar tem sido usado pelas sociedades há milênios e, se há salvação, ela virá de administrar nossa presença na Terra
Por Flavia Pardini
“Pare de tentar salvar o planeta!”, foi o grito que se ouviu recentemente na blogosfera. Veio de Erle Ellis, ecólogo da Universidade de Maryland, Baltimore County. “A natureza não existe. Deixou de existir antes que você nascesse, que seus pais nascessem, antes que os primeiros colonizadores chegassem, antes que as pirâmides fossem construídas. Você vive em um planeta usado”, disparou em artigo na revista Wired.
Faz sentido para quem conhece um pouco do trabalho de Ellis, um dos autores do mapa que redesenha os biomas do mundo de acordo com a densidade populacional e o uso da terra (mais na edição 18 de Página22), e adepto da ideia de que vivemos no Antropoceno – época geológica marcada pelos impactos do homem sobre o planeta e os ecossistemas. As evidências, cita Ellis, incluem o desaparecimento de espécies animais importantes em todos os continentes há mais de 5 mil anos, a queima ou o corte pré-histórico de florestas hoje consideradas intocadas, como a Amazônia, e alterações provocadas no clima desde o início da agricultura, há mais de 7 mil anos.
“Para o Bem ou para o Mal, a natureza há tempos é aquilo que fizemos dela e o que vamos fazer”, escreve Ellis, frisando que é preciso engavetar o bordão sobre salvar o planeta. Salvá-lo de quem? “Ao contrário, é mais do que tempo de salvar a nós mesmos – mas não da natureza.” Ele defende o que chama de “pós-naturalismo”, um ambientalismo otimista, que se desacopla da ideia da natureza intocada e aceita não só a influência humana, mas a noção de que o Homo sapiens não vai desaparecer tão cedo do planeta. Se há algo a salvar, parece dizer Ellis, é a boa vida que levamos no planeta hoje – ou pelo menos alguns de nós.
As opiniões do ecólogo – ele recomenda que os leitores visitem o zoológico, “o lugar mais diverso que já existiu na Terra” – provocaram uma chuva de comentários nos sites da Wired e do grupo de pesquisa coordenado por ele. Talvez as tintas com que Ellis pintou seu pós-naturalismo sejam pós-modernamente exageradas – seguindo a linha de que o ambientalismo morreu -, mas seu grito reflete a compreensão em certos círculos acadêmicos de que a via a seguir é “administrar” as interferências humanas na natureza – tarefa não só para as ciências naturais, mas principalmente para as ciências humanas.
Nos últimos 50 anos, o ritmo de mudança- com o crescimento da população, diversos usos do solo e as alterações climáticas – acelerou-se a ponto de que hoje estamos em “território desconhecido”, diz o ecólogo australiano Richard Hobbs. No passado, a ecologia estudava como as coisas funcionavam na natureza e a conservação tentava mantê-las como eram. “É cada vez mais impossível manter as coisas como são”, afirma. Em 2006, Hobbs cunhou o termo “novos ecossistemas” para designar sistemas naturais em que novas combinações de espécies animais ou vegetais surgem como consequência da ação humana, da mudança ambiental e da introdução de espécies de outras regiões. Hoje ele e outros pesquisadores dedicam-se a estabelecer princípios para manejar os “novos ecossistemas”. “A primeira coisa é preservar os ecossistemas ‘selvagens’, da melhor maneira possível”, diz. “Mas há a questão de como preservar estas áreas com toda a mudança que ocorre em volta.”
Em algumas searas da vida humana, entretanto, parece haver imunidade à mudança. O exemplo mais gritante são os economistas, seu apego ao growth as usual e à falácia de usar o PIB para medir o bem-estar humano. Não é possível, aponta o economista Frank Ackerman, que as mudanças climáticas sejam ameaça fundamental às condições que sustentam a vida humana – como percebem os cientistas naturais – e, ao mesmo tempo, um pequeno enigma de política econômica a ser solucionado com um ajuste nos impostos – como defendem os economistas.
O físico Hans Joachim Schellnhuber, do Instituto para Pesquisa dos Impactos Climáticos em Potsdam, Alemanha, estimou recentemente que 90% da pesquisa necessária terá de vir das áreas sociais, pois, enquanto os cientistas naturais podem descrever as conseqüências das mudanças globais e apontar soluções tecnológicas, não são capazes de provocar a transformação social e econômica necessária em um curto espaço de tempo.
Além do econômico, há desafios a serem enfrentados em vários outros campos, da política à comunicação e à psicologia, além de quebrar as amarras que mantêm estanques as disciplinas “humanas” e “naturais”. Se o pós-naturalismo de Erle Ellis é mais um alerta de que é impossível manter a natureza separada do homem, o próximo passo talvez seja esquadrinhar o homem, sua mente, suas sociedades e as naturezas que cria.