Esta é a quarta reportagem da série especial sobre mudanças climáticas a ser publicada até a edição de novembro, em preparação à COP 15, em dezembro
Projeto no Senado americano institui corte compulsório nas emissões de carbono, mas é enfraquecido para evitar a derrota
Passaram-se 16 anos para que a reforma no sistema de saúde dos Estados Unidos voltasse este ano à pauta do Congresso após a amarga derrota sofrida pelo ex-presidente Bill Clinton ao tentar aprovar a proposta no início da década de 1990. O fantasma desse revés ainda assombra os democratas, que retornaram à Casa Branca com a eleição de Barack Obama. É o que motiva as principais organizações ambientalistas do país – à exceção do Greenpeace – a manterem apoio ao projeto Waxman-Markey [Para consultar o projeto, digite seu código, HR 2454, no campo de busca do site da Biblioteca do Congresso], que prevê inédita redução compulsória nas emissões de carbono, mesmo depois de ter sido enfraquecido por um caminhão de concessões, a fim de conseguir aprovação na Câmara dos Representantes no final de junho. Acreditam que é melhor ter a lei aprovada, ainda que piorada em relação à versão original, do que esperar mais alguns anos para o país que representa um quarto das emissões globais iniciar um programa mandatório de cortes nos gases-estufa.
Uma das mais caras concessões para conseguir apoio na Câmara foi a transferência da Agência de Proteção Ambiental (EPA ) para o Departamento de Agricultura (USDA ) da autoridade que definirá quais atividades agrícolas serão elegíveis para gerar offsets – créditos de carbono comprados por indústrias e empresas de energia para compensar parte de suas emissões. A alteração teve como objetivo atrair votos de deputados democratas ligados ao lobby agrícola.
“Embora o USDA desempenhe papel importante no apoio ao sequestro de carbono, o órgão tem menos conhecimento na regulação de poluentes, que é território da EPA ”, observa John Larsen, associado sênior de clima e energia do Instituto de Recursos Mundiais (WRI ), de Washington. Sob a autoridade do USDA , teme-se que os produtores possam se beneficiar da geração de offsets em atividades já reguladas pela EPA . Não seriam, portanto, adicionais ao que já deve ser feito segundo a legislação vigente.
O problema é que o projeto corre risco de ser ainda mais desfigurado no Senado. Como cada Estado possui dois representantes nessa casa legislativa, o peso dos Estados de base agrícola é muito maior no Senado que na Câmara. Isso se reflete inclusive na posição indecisa ou contrária de 17 senadores do Partido Democrata, no que significa um complicador para uma decisão que necessita de 60 votos favoráveis entre os 100 membros do Senado. Até o momento, a proposta conta com apoio seguro de apenas 31 senadores (29 democratas e dois independentes), segundo a publicação Environment & Energy Daily, que acompanha de perto o posicionamento dos congressistas.
No caso do setor rural, os fazendeiros avaliam que seu lucro cairá substancialmente em virtude do encarecimento dos custos dos combustíveis, da energia elétrica e dos fertilizantes. Estudos da EPA e do USDA , porém, mostram que o aumento nos gastos será expressivo apenas após 2020. Além disso, os custos dos fertilizantes provavelmente não subirão significativamente até 2024, uma vez que a indústria de adubo não será punida até lá por lançar gases-estufa acima de sua cota de carbono. Há, também, pressões de setores econômicos por alívio financeiro nas regras.
Mas também é crescente o número de empresas que respaldam a regulação das emissões. “Um programa federal que estabeleça limites sobre as emissões, conjuntamente com um preço sobre o carbono, é o caminho mais efetivo para fazer esse controle”, defende Tad Segal, porta-voz da Parceria Americana pela Ação Climática (USCAP ), grupo fundado no início de 2007 que tem como membros grandes empresas, como Alcoa e General Electric, e ONG s da área ambiental.
Inspiração na chuva ácida
Denominado Ato de Segurança e Energia Limpa, o projeto de lei Waxman-Markey (sobrenomes dos deputados democratas que o patrocinam) cria um sistema de cotas de carbono para diminuir as emissões do país em 17% até 2020 e 83% até 2050 na comparação com os níveis de 2005, quando somaram 7,1 bilhões de toneladas. Baseia-se no bem-sucedido modelo de cap and trade instaurado em 1990 nos próprios EUA para combater a chuva ácida. Ele também serviu como modelo para o comércio europeu de emissões. Se o sistema for implementado, a meta de 2020 representaria uma redução de apenas 4% sobre 1990, quando as emissões dos EUA totalizaram 6,1 bilhões de toneladas em CO 2 equivalente. Ficariam, portanto, muito abaixo do que o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC ) recomendou aos países desenvolvidos em seu relatório de 2007 (corte de 25% a 40% até 2020 em relação a 1990).
É fácil entender como o sistema funcionará. Anualmente, serão distribuídas permissões de emissão gratuitamente e por meio de leilões a empresas de setores que cobrem perto de 87% das emissões dos EUA . O total de permissões será reduzido pelo governo a cada ano, o que pressionará para cima o preço do carbono, forçando as empresas a substituírem por tecnologias limpas seus processos dependentes de energia de origem fóssil. Cada permissão equivalerá a 1 tonelada de CO 2 equivalente. Se, por exemplo, uma termelétrica a carvão lançar na atmosfera emissões acima de sua cota de permissões, ela terá de cobrir essa diferença comprando permissões de empresas que foram mais eficientes e ficaram com excedentes de carbono.
O débito também poderá ser coberto com offsets, ou seja, créditos de carbono gerados por atividades não reguladas pela lei (sem obrigação de diminuir emissões), como a agricultura e o setor florestal. A cada ano, as empresas poderão comprar um total de até 2 bilhões de toneladas em offsets, divididos igualmente entre créditos domésticos e gerados em países em desenvolvimento, como em programas de combate ao desmatamento nas florestas tropicais.
Caso não haja offsets domésticos em quantidade suficiente, a participação dos externos poderá aumentar para até 75% da carteira total dessas compensações. Seria um mercado gigantesco, equivalente, em apenas um ano, a quase dois terços dos 2,9 bilhões de toneladas em créditos de carbono estimados para todo o primeiro período de compromissos do Protocolo de Kyoto no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL ), que vai de 2008 a 2012. Nas contas da EPA , a receita líquida anual dos agricultores americanos com a venda de offsets alcançaria US$ 1 bilhão a US$ 2 bilhões entre 2012 e 2018, até cravar US$ 20 bilhões em 2050. Para gerar créditos de carbono, os agricultores utilizariam técnicas conservacionistas que fixam carbono no solo, tais como o plantio direto, que é realizado sobre a palha da lavoura colhida, sem revolver a terra, o plantio de florestas e atividades que diminuam a produção de metano em lavouras e criações animais e de óxido nitroso na aplicação de fertilizantes.
Indústrias expostas à concorrência externa, refinarias de petróleo e geradoras elétricas também receberão compensações para atenuar o impacto da lei em seus custos. As compensações serão concedidas por meio de permissões adicionais gratuitas para cobrir por alguns anos emissões excedentes à cota de carbono definida para a empresa.
Companhias de energia também ganharão permissões adicionais às suas cotas para diminuir os efeitos nos preços da eletricidade. Para os defensores do projeto, a medida é essencial para que indústria e consumidores possam se ajustar à transição para uma economia de baixo carbono.
Praticamente isolado entre as grandes ONG s ambientalistas na oposição ao projeto, o Greenpeace critica os offsets e a meta de redução nas emissões por estar muito distante da recomendação do IPCC . “Os offsets são um presente gigante para os poluidores. Não garantirão reduções nas emissões nos lugares onde serão utilizados e levarão a uma nova geração de usinas nucleares e a carvão”, afirma Daniel Kessler, oficial de mídia do Greenpeace dos Estados Unidos.
Embora o coração da proposição seja o comércio de permissões de emissão, ela também centra fogo em dezenas de incentivos e programas para melhorar a eficiência energética dos edifícios, ampliar a fatia das fontes renováveis na matriz elétrica para 20% até 2020, impulsionar o desenvolvimento do carro elétrico, criar centros de inovação em energia limpa e estimular a utilização da tecnologia de captura e armazenamento de carbono no subsolo.
Nas últimas semanas, países em desenvolvimento com posições refratárias a cortes em suas emissões surpreenderam com o anúncio de que apresentarão na COP 15 metas para diminuir a curva de crescimento em suas emissões – caso do Brasil e da China. O novo governo do Japão também mudou a posição do país, que agora se compromete a diminuir em 25% suas emissões em 2020, na comparação com 1990, bem acima da meta de 8% da administração derrotada. A bola agora está com os Estados Unidos. O resultado da votação da lei de clima e energia no Senado influenciará decisivamente o desfecho da conferência de Copenhague.[:en]Esta é a quarta reportagem da série especial sobre mudanças climáticas a ser publicada até a edição de novembro, em preparação à COP 15, em dezembro
Projeto no Senado americano institui corte compulsório nas emissões de carbono, mas é enfraquecido para evitar a derrota
Passaram-se 16 anos para que a reforma no sistema de saúde dos Estados Unidos voltasse este ano à pauta do Congresso após a amarga derrota sofrida pelo ex-presidente Bill Clinton ao tentar aprovar a proposta no início da década de 1990. O fantasma desse revés ainda assombra os democratas, que retornaram à Casa Branca com a eleição de Barack Obama. É o que motiva as principais organizações ambientalistas do país – à exceção do Greenpeace – a manterem apoio ao projeto Waxman-Markey [Para consultar o projeto, digite seu código, HR 2454, no campo de busca do site da Biblioteca do Congresso], que prevê inédita redução compulsória nas emissões de carbono, mesmo depois de ter sido enfraquecido por um caminhão de concessões, a fim de conseguir aprovação na Câmara dos Representantes no final de junho. Acreditam que é melhor ter a lei aprovada, ainda que piorada em relação à versão original, do que esperar mais alguns anos para o país que representa um quarto das emissões globais iniciar um programa mandatório de cortes nos gases-estufa.
Uma das mais caras concessões para conseguir apoio na Câmara foi a transferência da Agência de Proteção Ambiental (EPA ) para o Departamento de Agricultura (USDA ) da autoridade que definirá quais atividades agrícolas serão elegíveis para gerar offsets – créditos de carbono comprados por indústrias e empresas de energia para compensar parte de suas emissões. A alteração teve como objetivo atrair votos de deputados democratas ligados ao lobby agrícola.
“Embora o USDA desempenhe papel importante no apoio ao sequestro de carbono, o órgão tem menos conhecimento na regulação de poluentes, que é território da EPA ”, observa John Larsen, associado sênior de clima e energia do Instituto de Recursos Mundiais (WRI ), de Washington. Sob a autoridade do USDA , teme-se que os produtores possam se beneficiar da geração de offsets em atividades já reguladas pela EPA . Não seriam, portanto, adicionais ao que já deve ser feito segundo a legislação vigente.
O problema é que o projeto corre risco de ser ainda mais desfigurado no Senado. Como cada Estado possui dois representantes nessa casa legislativa, o peso dos Estados de base agrícola é muito maior no Senado que na Câmara. Isso se reflete inclusive na posição indecisa ou contrária de 17 senadores do Partido Democrata, no que significa um complicador para uma decisão que necessita de 60 votos favoráveis entre os 100 membros do Senado. Até o momento, a proposta conta com apoio seguro de apenas 31 senadores (29 democratas e dois independentes), segundo a publicação Environment & Energy Daily, que acompanha de perto o posicionamento dos congressistas.
No caso do setor rural, os fazendeiros avaliam que seu lucro cairá substancialmente em virtude do encarecimento dos custos dos combustíveis, da energia elétrica e dos fertilizantes. Estudos da EPA e do USDA , porém, mostram que o aumento nos gastos será expressivo apenas após 2020. Além disso, os custos dos fertilizantes provavelmente não subirão significativamente até 2024, uma vez que a indústria de adubo não será punida até lá por lançar gases-estufa acima de sua cota de carbono. Há, também, pressões de setores econômicos por alívio financeiro nas regras.
Mas também é crescente o número de empresas que respaldam a regulação das emissões. “Um programa federal que estabeleça limites sobre as emissões, conjuntamente com um preço sobre o carbono, é o caminho mais efetivo para fazer esse controle”, defende Tad Segal, porta-voz da Parceria Americana pela Ação Climática (USCAP ), grupo fundado no início de 2007 que tem como membros grandes empresas, como Alcoa e General Electric, e ONG s da área ambiental.
Inspiração na chuva ácida
Denominado Ato de Segurança e Energia Limpa, o projeto de lei Waxman-Markey (sobrenomes dos deputados democratas que o patrocinam) cria um sistema de cotas de carbono para diminuir as emissões do país em 17% até 2020 e 83% até 2050 na comparação com os níveis de 2005, quando somaram 7,1 bilhões de toneladas. Baseia-se no bem-sucedido modelo de cap and trade instaurado em 1990 nos próprios EUA para combater a chuva ácida. Ele também serviu como modelo para o comércio europeu de emissões. Se o sistema for implementado, a meta de 2020 representaria uma redução de apenas 4% sobre 1990, quando as emissões dos EUA totalizaram 6,1 bilhões de toneladas em CO 2 equivalente. Ficariam, portanto, muito abaixo do que o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC ) recomendou aos países desenvolvidos em seu relatório de 2007 (corte de 25% a 40% até 2020 em relação a 1990).
É fácil entender como o sistema funcionará. Anualmente, serão distribuídas permissões de emissão gratuitamente e por meio de leilões a empresas de setores que cobrem perto de 87% das emissões dos EUA . O total de permissões será reduzido pelo governo a cada ano, o que pressionará para cima o preço do carbono, forçando as empresas a substituírem por tecnologias limpas seus processos dependentes de energia de origem fóssil. Cada permissão equivalerá a 1 tonelada de CO 2 equivalente. Se, por exemplo, uma termelétrica a carvão lançar na atmosfera emissões acima de sua cota de permissões, ela terá de cobrir essa diferença comprando permissões de empresas que foram mais eficientes e ficaram com excedentes de carbono.
O débito também poderá ser coberto com offsets, ou seja, créditos de carbono gerados por atividades não reguladas pela lei (sem obrigação de diminuir emissões), como a agricultura e o setor florestal. A cada ano, as empresas poderão comprar um total de até 2 bilhões de toneladas em offsets, divididos igualmente entre créditos domésticos e gerados em países em desenvolvimento, como em programas de combate ao desmatamento nas florestas tropicais.
Caso não haja offsets domésticos em quantidade suficiente, a participação dos externos poderá aumentar para até 75% da carteira total dessas compensações. Seria um mercado gigantesco, equivalente, em apenas um ano, a quase dois terços dos 2,9 bilhões de toneladas em créditos de carbono estimados para todo o primeiro período de compromissos do Protocolo de Kyoto no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL ), que vai de 2008 a 2012. Nas contas da EPA , a receita líquida anual dos agricultores americanos com a venda de offsets alcançaria US$ 1 bilhão a US$ 2 bilhões entre 2012 e 2018, até cravar US$ 20 bilhões em 2050. Para gerar créditos de carbono, os agricultores utilizariam técnicas conservacionistas que fixam carbono no solo, tais como o plantio direto, que é realizado sobre a palha da lavoura colhida, sem revolver a terra, o plantio de florestas e atividades que diminuam a produção de metano em lavouras e criações animais e de óxido nitroso na aplicação de fertilizantes.
Indústrias expostas à concorrência externa, refinarias de petróleo e geradoras elétricas também receberão compensações para atenuar o impacto da lei em seus custos. As compensações serão concedidas por meio de permissões adicionais gratuitas para cobrir por alguns anos emissões excedentes à cota de carbono definida para a empresa.
Companhias de energia também ganharão permissões adicionais às suas cotas para diminuir os efeitos nos preços da eletricidade. Para os defensores do projeto, a medida é essencial para que indústria e consumidores possam se ajustar à transição para uma economia de baixo carbono.
Praticamente isolado entre as grandes ONG s ambientalistas na oposição ao projeto, o Greenpeace critica os offsets e a meta de redução nas emissões por estar muito distante da recomendação do IPCC . “Os offsets são um presente gigante para os poluidores. Não garantirão reduções nas emissões nos lugares onde serão utilizados e levarão a uma nova geração de usinas nucleares e a carvão”, afirma Daniel Kessler, oficial de mídia do Greenpeace dos Estados Unidos.
Embora o coração da proposição seja o comércio de permissões de emissão, ela também centra fogo em dezenas de incentivos e programas para melhorar a eficiência energética dos edifícios, ampliar a fatia das fontes renováveis na matriz elétrica para 20% até 2020, impulsionar o desenvolvimento do carro elétrico, criar centros de inovação em energia limpa e estimular a utilização da tecnologia de captura e armazenamento de carbono no subsolo.
Nas últimas semanas, países em desenvolvimento com posições refratárias a cortes em suas emissões surpreenderam com o anúncio de que apresentarão na COP 15 metas para diminuir a curva de crescimento em suas emissões – caso do Brasil e da China. O novo governo do Japão também mudou a posição do país, que agora se compromete a diminuir em 25% suas emissões em 2020, na comparação com 1990, bem acima da meta de 8% da administração derrotada. A bola agora está com os Estados Unidos. O resultado da votação da lei de clima e energia no Senado influenciará decisivamente o desfecho da conferência de Copenhague.