Ao contrário do viajante que desembarca no Brasil, quem chega à Austrália não precisa se preocupar com quaisquer equipamentos eletrônicos que trouxer na bagagem. Aquela barrinha de chocolate esquecida na mala, porém, pode deixá-lo em situação constrangedora.
Toda vez que aterrisso em solo australiano, como há poucos dias, fico impressionada com o esquema para apreender não computadores, iPods, iPhones ou qual seja o gadget do momento, mas um resquício de terra presa no sapato, aquele colarzinho de semente para dar de lembrança a alguém ou a guloseima que o expatriado carrega na esperança de degustar quando a saudade de casa aperta. Mas em seu caminho há um beagle. Isso mesmo, aquele simpático cãozinho que inspirou o Snoopy e que, segundo o governo australiano, tem olfato pelo menos 100 vezes melhor que o nosso. Nos aeroportos, os snoopys passeiam entre as bagagens e, ao pegar um cheirinho de comida ou outra substância proibida, sentam para dar o alerta ao agente da alfândega. Se o cidadão não tiver declarado o que seja que o beagle tenha detectado, dá-lhe multa. Bem-vindo à Austrália.
A razão de tanta atenção para com os souvenires dos viajantes é que, sendo uma ilha com um ambiente único no mundo, a Austrália é altamente vulnerável a espécies exóticas que acabam se tornando pestes. A preocupação não é nova: desde pelo menos a Idade Média existe quarentena. Originalmente, a tentativa era de evitar, ao manter as embarcações afastadas dos cais por 40 dias, que se alastrasse ainda mais a peste bubônica que dizimou mais de 30% dos habitantes da Europa.
Alguns séculos depois, por volta de 1790, a segunda frota de navios ingleses que trazia cerca de mil deportados para a Austrália contabilizou a morte de um quarto deles durante a viagem, e o restante serviu de veículo para toda sorte de doenças. Naqueles tempos, a viagem para a colônia antípoda durava em média 250 dias. Hoje, voar da Inglaterra para a Austrália leva menos de 24 horas.
A história australiana é repleta de casos de pestes introduzidas, dos coelhos transplantados por europeus afeitos à caça no estilo do velho continente, ao sapo-boi, importado das Américas para tentar controlar pestes nas plantações de cana-de-açúcar, tanto que o danado é chamado de cane toad. É uma das criaturas mais odiadas por aqui – venenoso, quando ingerido por outros animais, causa matança generalizada –, e estados que ainda livres dela, como o de Western Australia, tentam se proteger como podem.
Hoje os australianos se gabam de possuir regras de quarentena das mais rígidas do mundo, que mantêm o país imune a doenças como a febre aftosa. Mas as mesmas são alvo de críticas por funcionar como barreira técnica – ou seja, não tarifária – ao comércio, tanto que a União Européia fez queixa à Organização Mundial do Comércio. Dizem os críticos que os padrões sobre o que entra ou não no país são decididos com base apenas nos custos econômicos para os produtores em caso de peste ou doença introduzida, deixando de lado os benefícios não realizados devido a restrições no comércio. Mais ou menos assim: mesmo que, ao importar maçãs da Nova Zelândia, os australianos acabem trazendo também o fireblight, peste com potencial para destruir os pomares locais, o impacto líquido na economia seria positivo devido aos preços mais baixos para o consumidor de maçãs.
A julgar pela popularidade do programa Border Security: Australia’s Front Line, hit da TV que desde 2004 sacia a curiosidade dos australianos sobre o dia-a-dia dos departamentos de imigração, alfândega e quarentena, há mais benefícios em tentar proteger o meio ambiente do que sonha nossa vã economia. De minha parte, prefiro me refestelar com as maçãs locais, achar que de alguma forma contribuo para preservar o meio ambiente dessa ilha-continente, e continuar me divertindo com os snoopys nas filas da quarentena no aeroporto.