A socióloga e urbanista Nereide Mazzucchelli ganha a vida apagando incêndios. Quando um conflito entre empresa e comunidade atingida se anuncia, nos canteiros das grandes obras do País, é ela quem corre para tentar o entendimento e interpretar as origens do atrito.
Depois de 20 anos trabalhando com grandes companhias, à frente da consultoria Territoria Desenvolvimento Global, Nereide constatou um padrão: o planejamento socioambiental estratégico é artigo raro na cultura empresarial brasileira. A questão aparece quando há um incidente, diz a consultora, que costuma ser encarado de maneira pontual. Tivessem as empresas o hábito de fundar um relacionamento já na etapa de concepção de projetos, muitos conflitos – e prejuízos – poderiam ser evitados.
Para a especialista, as questões sociais costumam ser ainda mais subestimadas que as ambientais, estas amparadas por parâmetros mais maduros e obrigatórios previstos no licenciamento. À Página22, ela falou sobre estratégias para a difícil missão de conciliar o cronograma de um empreendimento com o tempo que a sociedade tem para se adaptar a mudanças, muitas vezes, radicais.
A senhora acaba de voltar de uma reunião com um potencial cliente e ficou desapontada. Como foi?
Não chega a ser uma surpresa. A questão socioambiental sempre vem como incidente ou como uma coisa que as empresas têm de lidar no meio do caminho. Então, você vai para discutir uma determinada situação e não há orçamento, não há planejamento. É preciso uma interface dentro da empresa. Eu não vou chegar lá com uma varinha mágica e fazer as coisas acontecerem se não tem o espelho de diálogo. E aí te mandam para uma pessoa de comunicação, que passa a entender isso como uma peça de divulgação, e não é isso. Desde lá atrás, no estudo de viabilidade do empreendimento, deveria haver o planejamento socioambiental, assim como há o marketing do empreendimento. Ou seja, dentro da concepção. A gente não vê isso acontecer.
O problema é que essas questões aparecem na última etapa?
Claro. Se no momento de pré-viabilidade já se começasse a lidar com essas questões, evidente que se poderia construir gradativamente uma intensidade de relacionamento que não levaria a esse impacto que ocorre quando você já chega lá para remover uma comunidade do seu local.
Como são as demandas dos seus clientes do dia a dia?
Eles só chamam quando o estopim está para estourar. São chamadas absolutamente pontuais, geradas por incidentes. E, quando a gente tenta mostrar que a questão está dentro de um plano maior, e é preciso olhar esse plano maior, a empresa diz: “Não, eu quero resolver isso aqui. Eu quero resolver a reunião da semana que vem”. Mas e depois? Como é que você vai continuar dialogando com eles, porque a duração desse relacionamento pode ter décadas.
A senhora nota diferenças entre o tratamento das questões ambientais e o das sociais?
No ambiental, por haver uma peça de licenciamento, eu acho que as empresas seguem por conta do rigor da lei. Se você não tiver uma licença, evidente que você não vai poder fazer uma série de coisas. Há na questão ambiental toda uma sistemática. Há um órgão regulador, que emana uma série de diretrizes e parâmetros de atuação. E a área social eu ainda a vejo muito solta. Se você pegar o que é o social dentro de um EIA (Estudo de Impacto Ambiental), nada mais é do que uma série de coletas de dados, estatísticos e demográficos, que muitas vezes estão defasados. Eu nunca vi nenhum EIA em que a sociedade tivesse sido escutada, para saber quais são as preocupações a respeito de um possível empreendimento.
A rigor isso acontece nas audiências públicas, após os estudos de impacto.
Porque está no regulamento. Eu acho pouca inteligência das empresas não fazerem isso por conta própria. Se você usa esse momento em que há pessoas no campo, para estudos e pesquisas, e coloca uma pesquisa também na área social, com profundidade, não só de levantamento de estatísticas, com certeza você não teria tantas surpresas lá na audiência publica. E a empresa já estabeleceria um diálogo com a sociedade. Acho que ainda não tem a visão estratégica do que é o social.
E por que essa é uma questão estratégica?
Porque se você se não estiver em harmonia com a sociedade, não vai poder implantar ou operar de forma tranqüila, assim como não poderia sem a licença ambiental. Eu vivi surpresas no Norte do Brasil, com instalação de uma linha de transmissão. Quando entrei, já na situação de implantação, comecei a ouvir que a comunidade estava insatisfeita, insatisfeita, insatisfeita. E a empresa: “Não, mas a gente passou, teve licença”. Bom, na véspera de Natal, eles (a comunidade) derrubaram a linha de transmissão. Foram lá, desparafusaram as cinco torres e as torres caíram. Olha o prejuízo disso. Acho que as empresas ainda não raciocinam assim: “Quanto é que me custaria dialogar com essa sociedade e quanto me custa não dialogar?” Isso para mim é uma visão estratégica.
O que seria uma pesquisa social aprofundada?
Você tem de levantar aspectos sobre como aquela sociedade se organiza, como é o meio social e como é a relação desse meio social com o meio espacial. Como se dão as relações de troca nesse meio? De troca e de poder, porque existem as diversas hierarquias de liderança, tudo isso você precisa observar. Como é que essa sociedade lida com as questões ambientais do seu entorno? Como é que se apropria, como faz uso disso? Se acontecem acidentes naturais, como é que eles costumam encaminhar essas questões entre eles? É como se eu estivesse observando, como socióloga ou antropóloga, como é a relação dessa sociedade com o meio dela, desde a sobrevivência até a riqueza e a exploração. E aí eu começo a observar qual é o tamanho do empreendimento e o que ele vai provocar ali. Provavelmente vai provocar alterações nas relações entre as pessoas, na relação com o meio e em todo o modo de vida como está posto. E só então você começa a organizar como é que a empresa vai dialogar com a comunidade.
De posse de toda essa informação, é difícil convencer o empreendedor de alguns valores? Por exemplo, a relação histórica e afetiva que a comunidade estabelece com o seu território?
É muito difícil. Principalmente quando você está falando de patrimônios que não são materiais. Tem patrimônio, como a memória ou a cultura, que foram construídos e adquiridos no decorrer do tempo e na relação das pessoas com o espaço. Você pode até atribuir um valor monetário, mas é mera referência. Porque, na hora em que você desloca as pessoas, isso não vai junto. Num outro espaço, as coisas vão acontecer de outra forma. Então você pode atribuir uma compensação, mas isso não tem preço. Mostrar isso para a iniciativa privada é muito difícil.
Então há uma dificuldade conceitual sobre o que são os impactos sociais?
Se eu vou tirar a casa, a igreja, a roça, ou a oficina, ou a vendinha, isso é mais fácil de mensurar e dar um valor financeiro. Mas o patrimônio memória, cultura, relações, é muito difícil. Não só difícil, como tem outro tempo de acontecer. Muitas vezes – e este também é um tema muito difícil de lidar com a empresa – a pessoa consegue rapidamente responder assim: “A minha roça custa tanto, a minha venda custa tanto e eu vou fazer de novo em outro lugar”. No momento seguinte, quando ela começa a ficar insegura, porque ela vai romper com todas as relações ali e vai para outro lugar, isso pode ter outro valor e outro tempo, que às vezes é mais lento. Cada ser humano tem um tempo de lidar com as suas dificuldades e facilidades emocionais. Traduzir isso para o cronograma de um empreendimento é um desafio imenso.
Existe solução para compensar esses valores intangíveis ou em alguns casos a comunidade precisa introjetar as suas perdas?
Eu trabalhei numa cidadezinha, no entorno de uma hidrelétrica, em Minas, que foi inundada. O empreendedor construiu uma cidade nova, com casas arrumadinhas, mais arrumadinhas até do que eram na cidade original. Mas você acredita que em toda seca, quando a água da represa baixa, toda a cidadezinha se reúne para ver a cidade antiga? Eles ficam esperando água baixar para ver se vai aparecer a torre da igreja, enfim, isso tudo que ainda está lá na memória. E essa represa já tem uns 15 anos de inundação. Tem mitigação? Não tem. Mas eu partiria do princípio de que o melhor é nunca negar que essa perda existe. Eu tentaria reunir o máximo de memória de tudo o que tem ali e faria uma espécie de memorial na cidade nova. Não precisaria esperar a seca só para ver a cidade. Eu faria, sei lá, um filme da cidade, das ruas, do seu fulano que morava ali. Eu teria o cemitério reproduzido, porque os mortos ficaram lá embaixo. Eu reforçaria essa memória. Se você tem um passado que não tem mais nenhuma referência, fica muito mais difícil lidar com ele.
Da última vez que falou com Página22, a senhora levantou a proposta de haver uma “licença social” para completar o correlato ambiental. Como seria isso?
Eu sempre acho que o ideal seria a sociedade sentir algumas coisas como necessidade. E agir em relação àquilo por compreender que aquilo é necessário. Eu não gosto muito das amarras dos termos burocráticos, mas acho que infelizmente é um caminho. A gente põe muito mais cinto de segurança porque leva uma multa do que por segurança. Nas questões ambientais, eu acho que a gente teve uma evolução muito mais pelo rigor da lei e porque você pode deixar de ter um empreendimento viável do que pela preocupação com o meio ambiente. A gente ainda não está num estágio de consciência em que obedeceria a algumas coisas para preservar para as gerações futuras. Então, da mesma forma, eu acho que se deveria pensar em alguns procedimentos e parâmetros para haver também uma “licença social”, que pudesse aprofundar essas questões de maneira mais adequada.
Comunicação e linguagem são uma barreira no relacionamento entre empresas e comunidades? Como fazer, por exemplo, uma boa audiência pública?
Primeiro a gente tem de entender a comunicação na sua concepção mais genuína, não como essa comunicação que vira marketing. O que eu quero comunicar sobre o meu empreendimento e o que eu quero saber da comunidade? Tem de ser bidirecional. Nesse sentido, eu acho que, quando você começa precocemente, a audiência pública seria só um ritual de finalização de uma etapa. Como você não tem esse diálogo verdadeiro com a sociedade, a oportunidade acaba acontecendo na audiência e vira isso que a gente conhece. Muitas vezes não ocorre em profundidade, é uma coisa superficial. Às vezes há consultas prévias ou reuniões técnicas antecedentes, mas elas não são obrigatórias. Eu percebo que, quando essas reuniões prévias com a sociedade acontecem, você vai para uma audiência pública com mais tranquilidade. E tem a cultura das pessoas de projetos, dos engenheiros e técnicos, que não abrem mão da linguagem. Então nós muitas vezes não entendemos aquilo tudo que está sendo exposto, imagina uma comunidade que não tem acesso a esse linguajar. “A linha de transmissão será erguida com cabos helicoidais”. Muito bem, mas o que são cabos helicoidais? A gente já faz esse trabalho de traduzir, por exemplo.
É possível apontar onde termina a responsabilidade das empresas e começa a dos governos?
O que entendo é uma concepção muito mais teórica. A rigor, governo representaria o conjunto da sociedade. Então, penso que a responsabilidade de governo é sempre muito maior que a da empresa. Quando um órgão ambiental está dando uma licença para um ente privado, na verdade é a sociedade que está fazendo isso. Por outro lado, quando você olha a dinâmica dos governos, como é que esse governo e sociedade se conversam? Por que tanta hidrelétrica, tantos portos agora, tanta usina siderúrgica? Por que isso está acontecendo no País? Será que é este o padrão de desenvolvimento que nós, sociedade, queremos? A gente também não faz essa reflexão de forma organizada e, aí, o governo e a iniciativa privada vão levando. O governo é o maior responsável. E aí, olha, eu não queria nunca estar na pele de ninguém do meio ambiente de governo. Eu acho que é muito difícil lidar com a pressão que existe dentro da própria estrutura de governo e da iniciativa privada.
Licenciamento ambiental é demorado ou acelerado?
Se a gente for pensar no rito, eu não acho demorado. Se você imaginar as hidrelétricas no Rio Madeira ou a de Belo Monte, e o tempo que isso leva, a gente não está falando do rito de licenciamento. A gente está falando de questões que têm de voltar e ser rediscutidas. Como é que vou readequar o meu projeto? Se você diz que o projeto precisa ser refeito, não é o licenciamento que demora, é a formulação de um bom projeto. Imagina o que significa você analisar os impactos de uma Belo Monte? É uma responsabilidade muito grande emitir uma licença.
Existe alguma memória de processos de licenciamento que possa oferecer os mesmos parâmetros de referência a empreendimentos da mesma natureza, ou na mesma região?
Eu gosto muito dessa questão de memória. E associado a isso eu gosto muito de uma reflexão que eu não vejo ainda acontecer, que são lições aprendidas. Como é que eu guardo documentos e sistematizo o que aprendi, para que possa melhorar e levar para o outro? Eu não vejo isso no órgão ambiental, e muitas vezes são empreendedores diferentes, alguns até têm (esse know-how), mas não compartilham uns com os outros. Então isso caberia ao órgão ambiental.