Em um contexto de conflitos, imposição de tarifas e crise do clima, o sistema internacional de comércio deve favorecer a difusão de tecnologias, bens e serviços e servir como plataforma para a inclusão e cooperação entre países
Por: Redação de Página22*
Fotos: Fiesp/ Divulgação
A América Latina e o Caribe, com destaque para o Brasil, centro de rica biodiversidade e realidades econômicas diversas, têm alto potencial de crescimento na transição circular como região fornecedora de recursos naturais e materiais ao mercado global. Há oportunidades para novos modelos de negócios sustentáveis, baseados na estratégia de redesenhar produção e consumo, mas o ritmo da mudança depende do engajamento dos sistemas de comércio.
“O mundo está em atualização e o País pode operar como provedor de soluções, em um cenário que vai além da discussão ambiental, envolvendo questões geopolíticas e de competitividade”, diz Izabella Teixeira, ex-ministra do Meio Ambiente e copresidente do Painel Internacional de Recursos, durante o Fórum Mundial de Economia Circular 2025 (WCEF, na sigla em inglês).
A questão da mudança climática se entrelaça à dinâmica geopolítica de um mundo marcado por conflitos e guerras entre países. “Estamos em processo disruptivo de reconstrução da ordem internacional, reescrevendo as regras do jogo, pelas quais os países reorganizam seus interesses econômicos de poder”, afirmou Teixeira, na abertura do segundo dia do evento (14/5), realizado pelo Fundo de Inovação da Finlândia (Sitra), Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Senai-SP, Confederação Nacional da Indústria (CNI) e Senai Nacional, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. O público presencial chegou a 1.200 pessoas.
Novas visões de desenvolvimento
Segundo a ex-ministra, este momento de redefinição global ocorre não só pela escassez de recursos naturais, mas pela demanda de novas visões de desenvolvimento, incluindo padrões de consumo, com substituição de combustíveis fósseis. “Neste tema, a principal pergunta hoje não é quem produz, mas quem consome e quem compra petróleo no mundo”, diz Teixeira. Ela prevê impactos relevantes nas cadeias produtivas e no comércio internacional: “Os mercados estão sendo reinventados”.
Tal debate, na análise da ex-ministra, é global e inovador. “Estamos falando de risco climático e custo do dinheiro no mundo, porque as soluções são caras”, aponta Teixeira, para quem a decisão estratégica de descarbonizar a economia se refletirá no comércio nacional, regional e internacional. “Exigirá também uma visão de convergência entre as eras da mudança climática, da natureza e da tecnologia digital”.
Ela reforça que a sinergia entre as questões de apropriação de recursos naturais, circularidade e impacto no comércio é um dos assuntos mais catalisadores de transformação – ou de perpetuação de realidades. “Devemos jogar de uma forma estruturada para que todos ganhem. No mundo fragmentado, as peças vão se conectar de maneira inovadora em torno de interesses convergentes comuns, e não propriamente consensos”, completa Teixeira.
Na COP 30 do clima deste ano no Brasil, ela sugere ao País marcar posição no debate sobre land transition (ou transição no uso da terra), não só sobre desmatamento. “Devemos achar novos caminhos de segurança alimentar, mineral e energética, com eficiência do uso de recursos e matérias-primas tendo a natureza como uma grande aliada”.
No debate sobre quem paga a conta climática do uso intensivo em energia e de recursos naturais, diz Teixeira, o Brasil busca uma nova visão de modelo de desenvolvimento sem repetir o padrão do Norte Global, que tem bons indicadores sociais, mas consome 10 vezes mais recursos naturais que países de baixa renda.
Contribuição do comércio internacional
Na análise de Tatiana Prazeres, secretária de comércio exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC), alinhar o comércio global ao compromisso com o desenvolvimento sustentável é um grande desafio. De acordo com ela, o sistema de comércio internacional pode servir para apoiar e acelerar a transição para modelos de negócios mais sustentáveis, mas precisa considerar dois pilares. O primeiro é favorecer a difusão de tecnologias, bens e serviços que contribuam para esse objetivo. O segundo é servir como plataforma para a inclusão e cooperação entre países, de forma que a transição seja justa.
Ela lembra, porém, que a Organização Mundial do Comércio (OMC), criada em 1995, após a Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92), tem acordos em diversos segmentos, mas não relacionados a comércio e meio ambiente.
“Se a OMC quiser ter relevância nisso, é muito importante um esforço levando em conta os pilares da difusão de tecnologias e da transição justa e inclusiva”, reforça Prazeres.
Há um grupo de países, Brasil inclusive, que deseja avançar em regras de comércio nesta temática. Segundo ela, no âmbito do G20, no ano passado, a presidência brasileira influenciou a adoção de um documento por consenso – Princípios do G20 sobre Comércio e Desenvolvimento Sustentável – que constitui uma contribuição para uma nova governança global na questão.
“O comércio pode estimular metas de circularidade, com critérios de justiça, porque elas são mais caras do que as lineares”, afirma Emmanuel Chaponnière, chefe da divisão de economia circular e desenvolvimento sustentável do Banco Europeu de Investimento (EIB). A organização tem desenvolvido padrões de circularidade no continente, com reflexo em outras regiões do mundo. A maioria das cadeias de suprimentos é global e suscetível ao aumento de regras que acabam influenciando o desenvolvimento inclusivo e sustentável nos países de origem, conforme explica Chaponnière.
Leonardo Lahud, especialista em comércio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), adverte que “a produtividade na América Latina e Caribe está estagnada nos últimos anos, com desafios em relação a capital humano, dívidas e infraestrutura”. A integração entre os países latino americanos representa somente 15% do comércio total da região, enquanto na Ásia o índice é de 55% e, na Europa, 68%.
Na América Latina, 40% das exportações são de bens intermediários, ou seja, necessários para a produção de outros bens. “Em momento de guerra comercial, a tendência de reshoring (transferência de atividades produtivas de volta para o país de origem da empresa) pode ser uma força catalisadora, um ativo importante para a integração regional como meio de se alcançar resiliência e sustentabilidade”, analisa Lahud.
A África adotou recentemente a área de comércio livre continental, uma oportunidade para aumento da interação entre os países africanos, com possibilidade de criar um novo mercado de US$ 3,4 trilhões. “Hoje, as barreiras comerciais afetam significativamente o comércio do continente, com elevação de custos, e removê-las é o desafio mais urgente”, observa Al-Hamndou Dorsouma, diretor do African Development Bank.
O objetivo atual é aumentar o intercâmbio comercial entre os países de 15% para 45% do mercado externo total do continente até 2045. “Mas, na economia circular, precisamos harmonizar padrões, porque temos 54 países com diferentes regras no continente”, ressalta Dorsouma.
Fórum Mundial de Economia Circular 2025 foi realizado no Parque do Ibirapuera, em São Paulo
O poder do consumidor
Para Rafael Cervone, presidente do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (Ciesp) e vice-presidente da Fiesp, é preciso “ter mundialmente uma isonomia concorrencial, com regulamentação muito bem-feita”. Segundo ele, quando se fala em competitividade, deve-se ter em mente o conceito de economia circular e sua relação intrínseca com o desempenho ambiental do produto.
A forma como se busca a matéria-prima, a energia colocada no processo, os insumos da produção, a embalagem e a destinação de resíduos – tudo isso, diz Cervone, conta uma história, uma narrativa que precisa chegar aos novos consumidores.
“Ninguém melhor que o consumidor para impor a solução da circularidade, porque precisamos atingir escala e ter custo competitivo”, aponta. “Mas não adianta falar de ‘consumo consciente’ sem resolver questões como a compra de produtos piratas e de contrabando que não pagam impostos”, adverte.
Iniciativas circulares mais competitivas
A questão-chave é como redesenhar estruturas e caminhos econômicos para tornar competitivas as iniciativas circulares. “Precisamos remover barreiras não-tarifárias em produtos secundários não poluentes, como já faz a Índia, além de criar incentivos fiscais para a indústria de reciclagem, a exemplo da Colômbia”, enfatiza Pavan Sukhdev, CEO do GIST Impact.
Liisa Folkersma, conselheira finlandesa da OMC, lembra que o tema da economia circular chegou à organização em 2018, proposto por iniciativa da Finlândia. “É um tempo muito curto no contexto do comércio internacional”, afirma. O momento, segundo ela, é de construção de uma base de conhecimento reunindo 166 países por meio de diálogos voluntários que podem se tornar vinculantes no futuro.
*Por meio de parceria com a Fiesp, a Página22 cobriu o WCEF2025