Além de competências técnicas para lidar com novos processos, produtos e profissões, são apontados atributos essenciais como pensamento crítico, curiosidade, consciência global, empatia e compaixão. Também é preciso “treinar os treinadores”, a fim de desenvolver estratégias pedagógicas mais inovadoras na formação humana e profissional
Por: Redação de Página22*
A transição para um modelo de economia circular depende fundamentalmente de profissionais preparados, capazes de pensar de uma forma sistêmica, propondo soluções inovadoras e liderando transformações concretas. Mas essas habilidades estão sendo desenvolvidas no ritmo necessário? De que forma avançar na capacitação técnica, na formação de recursos humanos com uma visão integradora de sistemas e processos e, mais que isso, com soft skills como espírito colaborativo e empatia?
Estas foram algumas das questões debatidas na sessão “Desenvolvendo habilidades essenciais para a circularidade”, realizada em 14 de maio em São Paulo, durante o Fórum Mundial de Economia Circular 2025 (WCEF2025), uma iniciativa do Fundo de Inovação da Finlândia (Sitra), em conjunto com a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), a Confederação Nacional da Indústria (CNI), o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai Nacional) e o Senai-SP.
Vem de Emma Westerlund, designer de educação e sustentabilidade da Universidade de Ciências Aplicadas de Novia, na Finlândia, a provocação: “Há risco de que a economia circular ainda seja só um tipo de glitter sobre o sistema linear. Não estamos na direção correta no momento, então precisamos nos esforçar mais. Não é possível mudar o sistema econômico sem fundamentalmente mudar a mentalidade de muitos de nós”, avalia a educadora. A seu ver, é necessária uma reconexão com a natureza, que opera de forma circular, e por isso pode ser ela mesma a fonte de ensinamento para as pessoas.
Westerlund salienta que uma economia circular não se restringe à reciclagem, e sim diz respeito, essencialmente, a não usar mais recursos do que a Terra é capaz de regenerar, e a manter esses recursos dentro do ciclo produtivo, sem perdas nem geração de resíduos.
Isso implica também em evitar o consumo excessivo e desnecessário. “Precisamos ensinar aos nossos alunos e a nós mesmos a diferença entre desejo e necessidade. Precisamos mudar nossos valores e a forma como definimos sucesso”, diz.
Para tanto, é preciso desenvolver habilidades como pensamento crítico, curiosidade, consciência global, empatia e compaixão. Westerlund ainda destaca que a cooperação entre o Norte e o Sul Global é essencial. “A Finlândia é conhecida pela educação de alta qualidade, e nos orgulhamos disso. Mas também precisamos aprender com pessoas, alunos, colegas em todo o mundo, a partir de uma perspectiva diferente da nossa.”
Competências técnicas
Além das habilidades descritas por Westerlund, há competências técnicas que também precisam ser desenvolvidas no sistema industrial, segundo Flávio de Miranda Ribeiro, professor e especialista em economia circular e professor no Senai-SP. O Senai trabalha para aumentar a competitividade da indústria por meio da educação profissional, inovação e tecnologia, em mais de 1 mil unidades operacionais ao redor do Brasil, das quais 168 são dedicadas a treinamento profissional no estado de São Paulo.
Com base nos resultados de uma pesquisa sobre as competências para a economia circular realizada pelo Senai, com o apoio do GIZ, a mensagem principal é que a economia circular exige um novo tipo de profissional com uma nova visão mundial, mas também um novo conjunto de conhecimento e novas competências e habilidades.
Segundo ele, este desafio já está colocado, demandando uma revisão na formação curricular – por exemplo, incluindo competências e conhecimento em design para circularidade nas escolas de engenharia.
Ao mesmo tempo em que surgem novas carreiras, como operador de plantas de biogás e instalador de painéis solares, outras se tornam obsoletas. Para combater a obsolescência programada de eletrônicos, por exemplo, mais importante que saber desmontar peças para reciclar, é preciso criar aparelhos com maior durabilidade.
“A economia circular demanda profissionais não apenas para atenderem a objetivos industriais específicos, mas também para serem agentes ativos de transformação, capazes de lidarem com aspectos regulatórios, em frameworks de políticas públicas e também em comunicação efetiva e pensamento interdisciplinar.
Na avaliação de Ribeiro, há muito trabalho pela frente. “O treinamento em economia circular oferecido pelo mercado até agora não é suficiente”, diz. “As estratégias pedagógicas tradicionais não estão preparando nossos alunos para o futuro circular e, principalmente, para serem uma parte ativa dessa transformação. Conectando com as palavras de Emma, nós precisamos treinar os treinadores”, afirma Ribeiro.
Além de mudar valores e visões de vida, Ribeiro propõe adotar uma pedagogia colaborativa, ou seja, baseada em rede e resolução conjunta de problemas, de forma a trabalhar em parcerias e colaborações, que são necessárias para a adoção de sistemas circulares. Outra estratégia é enfatizar atividades práticas, como o uso de laboratórios, protótipos e outras estratégias para forçar o engajamento real dos alunos.
O Senai oferece cursos com conhecimentos básicos, que servem como base para os caminhos de treinamento, cursos ou módulos especializados para atender demandas setoriais, em parceria com empresas e associações de indústrias.
Transparência e confiança
Kai Lindow, diretor de engenharia digital Fraunhofer-Gesellschaf, organização alemã de pesquisa aplicada para a indústria, cita como um exemplo a indústria automotiva, em que os componentes do veículo não só são reciclados, mas também preparados para reutilização e remanufatura. Essa prática, que estende o ciclo de vida do produto e reduz a dependência de matérias-primas, requer transparência durante todo o seu ciclo de vida, o que por sua vez demanda comunicação de confiança em todos os níveis.
“Imagine um produto onde cada componente carrega informações ao longo de todo o ciclo de vida, de onde veio, de que é feito, como deve ser usado ou reciclado e assim por diante. Toda essa informação necessária em termos de dados pode nos levar às melhores conclusões no sentido da circularidade. Por isso, a economia circular não pode avançar sem ligar estes fluxos de materiais e dados”, exemplifica.
Segundo Lindow, a circularidade efetiva requer uma compreensão compartilhada entre departamentos, fornecedores, clientes e até mesmo competidores. “E isso não é apenas comunicação, é a chamada cocriação. A circularidade, portanto, não é apenas um desafio técnico, é um desafio humano”,, conclui.
Ao término da sessão, Ribeiro, do Senai-SP, mencionou o ex-presidente do Uruguai, José (Pepe) Mujica, falecido no dia anterior. “Uma vez, em entrevista à Deutsche Welle, ele disse que nós inventamos uma sociedade consumista, em que a economia tem que crescer, e então se criou uma montanha de consumo supérfluo. Com isso, o que estamos gastando é tempo de vida. Mas a única coisa que não se pode comprar é a vida.”
*Por meio de parceria com a Fiesp, a Página22 cobriu o WCEF2025