Faz três anos que deixei de morar no Brasil, mas parece que só agora me mudei para a Austrália. É que desta vez não tive escapatória: quando estive na terrinha no fim de ano, fui obrigada a decidir, finalmente, quais objetos de tantos acumulados ficariam comigo e quais seguiriam outro caminho. Geladeira, fogão, mobília, nem pensar. Já quadros e livros não tem jeito, quem consegue se separar deles? Para roupas tem brechó, mas aquele vestido que já foi da mãe sempre encontra um lugarzinho na mala.
Depois de todo o sofrimento de decidir o que vai e o que fica – no fim das contas, na sua vida – vem a hora de encaixotar, embalar e pagar para que a tralha toda atravesse alfândegas e oceanos e chegue inteira do lado de lá. Dá vontade mesmo de se teleportar para a tal economia do flowing que, dizem, vai substituir a do owning.
Fluxo em vez de propriedade, Kindle em vez de tomos de livros, Twitter em vez de pilhas de jornal amarelando, foto digital em vez de pastas e mais pastas de slides, cada um com sua moldurinha. Imagine o espaço a ser liberado!
“Nossa sociedade do consumo construiu uma ideologia de acumulação. Isso é detonado pelo sistema monetário baseado na escassez. Em vez de compartilhar as coisas que precisamos, nós as acumulamos em porões, garagens, quintais”, escreve Jean François Noubel, fundador da rede The Transitioner, dedicada à inteligência coletiva e à criação de “moedas livres”. Que o digam os americanos, que inventaram o “conceito” de self-storage – não se trata de armazenar o seu pequeno ser, como pode dar a entender o nome, mas do aluguel de espaço para que você guarde tudo aquilo que já não cabe no porão, na garagem, no quintal.
Uma reportagem no The New York Times informa que os EUA contavam, em fins de 2009, com quase 214 mil quilômetros quadrados de espaço para self-storage – mais do que o bioma dos Pampas ocupa em território brasileiro (176,5 mil quilômetros quadrados). Uma de cada dez famílias americanas aluga uma unidade de self-storage, diz o jornal, e um casal de amigos me informa que é possível pagar extra para manter as tralhas aclimatizadas. O “conceito” chegou ao Brasil há alguns anos e agora é possível encontrar self-storage nas principais capitais, assim como em vários outros países.
Um ET que caísse na Terra talvez achasse estranho o movimento de humanos indo a enormes lojas de magazines adquirir mercadorias que, em seguida, cuidadosamente depositam em contêineres individuais.
Pensando em tudo isso, deu um certo alívio se livrar de coisas que se empilharam por anos sem serventia. De outro lado, o processo de revistar tudo o que se possui acabou sendo revelador. Alguns itens carregam memórias afetivas e simplesmente não foi possível colocar na pilha dos que se vão. Pequenas lembranças que atravessaram décadas, passaram pelas mãos de avós, pais, e, espero, um dia serão dos meus filhos.
Claro que há projetos para digitalizar e arquivar memórias e acontecimentos minuto-a-minuto. É o caso do MyLifeBits, iniciado dentro dos laboratórios da Microsoft para desenvolver o que seus criadores, Gordon Bell e Jim Gennel, chamam de e-memory. Acho que seria algo assim como um self-storage digital que você carrega para qualquer lugar.
A promessa do flowing é animadora não só para gente que muda de casa e de país – e os que combatem a economia do consumo, a exaustão dos recursos naturais, a insustentabilidade do modo de vida baseado nos combustíveis fósseis. Mas principalmente porque ela não se limita às coisas materiais e muda a forma como lidamos com o conhecimento e a informação, estimulando o compartilhamento. Ainda assim, temo que ainda esteja distante o dia em que vou conseguir me livrar de todos os mementos e mergulhar no fluxo puro.