Se existe outro lado da força, ele nasceu ou faz uso da internet & companhia ilimitada
O alcance pode ser discutido, mas é inegável que o espectro cultural contemporâneo é diverso, complexo, potente e bambeou os pilares da indústria cultural de voz e distribuição únicos.
Internet e novas tecnologias têm papel fundamental nessa reorganização da sociedade do conhecimento, permitindo ampliação da escolha cultural – da inserção à distribuição -, a despeito de grandes grupos ainda terem muito dinheiro e poder na definição do que chega até nós.
Ainda é pertinente falar de indústria cultural e contracultura? Onde está o lado B nestes dias? É certeiro dizer que, se não está, nasceu ou faz uso da web ou de ferramentas tecnológicas, em suas múltiplas possibilidades.
A indústria cultural, termo cunhado pela Escola de Frankfurt no século passado para caracterizar a organização de verdadeiros impérios que controlavam a produção cultural repassada aos veículos de comunicação de massa, ainda existe. Haja vista a audiência de programas como o Big Brother Brasilou as telenovelas da Rede Globo. O grupo produz e distribui em escala equivalente a uma indústria siderúrgica. Mas a Rainha Platinada hoje coexiste com outras redes, canais a cabo e a produção audiovisual que encontra abrigo e público na internet.
Ampliação da mente
Na sua própria origem, a internet encontrou-se com a contracultura. O termo e movimento, que se popularizam a partir dos 60 como uma negação da produção mainstream da indústria cultural, fomentaram a arquitetura da rede mundial.
Um dos livros que tratam disso é What the Dormouse Said: How the Sixties Counterculture Shaped the Personal Computer Industry (ou Como a Contracultura dos Anos 60 moldou a Indústria do Computador Pessoal), de John Markoff, mostrando a influência que a contracultura, o movimento hippie, as drogas e a Guerra do Vietnã tiveram no desenvolvimento da tecnologia.
Ao longo das páginas do livro, ainda sem tradução brasileira, são reapresentadas a nós inúmeras personalidades do início da internet e até o conflito de consciência dos pesquisadores envolvidos com os centros de pesquisa financiados pelo Exército dos EUA e a filosofia pacifista e subversiva do período.
O embrião do movimento do software livre também surge nessa época, influenciado pela cultura de compartilhamento e troca de ideias do ambiente acadêmico e do movimento hippie. Interessante é notar o paralelo que os pioneiros faziam entre drogas e os primeiros computadores. Eles realmente acreditavam que, assim como as drogas, os computadores ampliariam a mente e seu uso culminaria em uma sociedade melhor.
“A internet nasceu com esse princípio livre de que qualquer um pode falar, se manifestar, produzir e distribuir conteúdo. O difícil hoje é ser ouvido, mas não sou impedido de falar”, afirma Sérgio Amadeu da Silveira, sociólogo e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo.
E, ao contrário do que ocorria há bem pouco tempo, a rede muda padrões e estéticas, fazendo com que a indústria da cultura “corra atrás”. Essa inversão ficou muito clara no meio musical, dominado por gravadoras e rádios que abocanhavam tanto uma parcela assombrosa das vendas de discos como definiam os rumos do conteúdo a ser veiculado.
O produtor e crítico musical Israel do Vale nota que houve uma desmaterialização da música em favor do trânsito irrestrito e da multiplicação de janelas e plataformas. “A música não é mais o disco como objeto e a facilidade crescente para gravar, distribuir e promover traz uma cultura de comunidade”, afirma. O desafio, próprio dos tempos de internet, é como sobressair-se.
Amadeu acrescenta ainda que hoje não há mais aquele número gigantesco de fãs de apenas uma banda de rock, “porque hoje posso ter acesso a uma banda romena, cada um pode ter a sua janela e eu posso buscar aquilo com que tenho afinidade, e não o que me é imposto”.
Vírus digital
Fenômeno da rede e exemplo da reviravolta no mundo da música, o grupo Teatro Mágico diz ter lançado o movimento MPB (Música Para Baixar). O grupo começou a oferecer seus discos de graça para download no site e amealhou fãs em todo o Brasil, antes mesmo do Radiohead, banda inglesa que adotou estratégia parecida, deixando para os fãs a opção de quanto pagar pelas músicas disponíveis na internet.
O site do Teatro Mágico é desenvolvido inteiramente com software livre e permite baixar músicas de graça. A trupe comemora a marca de 1 milhão de downloads feitos e mais de 5 milhões de transmissões de músicas do primeiro e do segundo CD. O grupo primeiro ganhou consistência na internet, seus shows conquistaram públicos recordes (são a fonte principal de ganho) e a agenda está tomada até o final do ano. Mas tem gente que nunca ouviu falar.
Claro, o Teatro Mágico não se apresenta em programas de TV e aparece raramente nos jornais. A Folha de S. Paulo publicou matéria com o título “Longe da Crítica, Perto do Público”, para resumir a trajetória do grupo que é uma espécie de companhia musical e circense inspirada na Commedia Dell’Arte*.
*Surgida entre os séculos XV e XVI, na Itália, em oposição à Commedia Erudita, a Commedia Dell’Arte apresentava-se em ruas e praças públicas. As companhias eram itinerantes e possuíam uma estrutura familiar
O líder da trupe, Fernando Anitelli, está muito consciente dos caminhos que o grupo escolhe. “É dessa forma, a partir da grande participação do público em sites de relacionamento como Orkut, YouTube e outras mídias da rede, que se inicia o processo de ‘viralizar sem pagar jabá'”, diz, no site do grupo.
Outros nomes saíram diretamente da internet para uma certa absorção pela indústria cultural, como a cantora Mallu Magalhães, a adolescente que gravava e postava suas canções folk de forma caseira e ganhou fãs e acessos potentes no YouTube e MySpace. Mallu foi catapultada para revistas, programas de TV e logo entrou na mira das gravadoras. Entrou no mercado, mas não perdeu sua originalidade e a intimidade com as redes sociais cibernéticas.
Mais que contabilizar discos vendidos, o antigo troféu dos artistas da música nas décadas de 80 e 90, hoje os trunfos passam pelo número de acessos no MySpace e número de vezes em que as músicas são ouvidas neste espaço virtual.
Blogs e editoras
Em outras áreas, como a literatura, os blogs têm atendido à necessidade de se lerem novos nomes. Gratuitos e de fácil atualização e manutenção, estes sites pessoais revelaram nomes da nova geração que escreve. Um deles é Clarah Averbuck, que começou a escrever a primeira novela em seu blog Brazileira!Preta, que chegou a ter 1.800 acessos diários. A popularidade de seus escritos chamou a atenção de editoras e também de diretores de teatro e cinema. Publicou três livros e teve sua obra adaptada por Antonio Abujamra para o teatro e Murilo Salles a levou para as telas com o filme Nome Próprio, com Leandra Leal no papel principal.
Pequenas editoras se valeram das facilidades tecnológicas e da segmentação do mercado para levar adiante os sonhos de publicação independente. Como no cinema (leia sobre a saga dos independentes abaixo), os lucros são discretos no começo, mas a disposição em oferecer novas vozes é certa. Geralmente o surgimento de uma pequena editora coincide com a publicação de um título do próprio editor, caso da editora Livros do Mal, fruto da sociedade entre Daniel Galera e Daniel Pellizzari, que lançou o primeiro livro de Galera, Dentes Guardados, que também pode ser lido na internet.
Os patrocínios de empresas e o financiamento de órgãos públicos costumam ser fundamentais para garantir a sobrevivência desses pequenos negócios de autor. Como em todos os setores, o grande obstáculo do pequeno editor é a distribuição. Outra proposta original remando na web é a Mojo Books, uma editora 100% digital. A proposta é simples: se literatura fosse música, que história você contaria?
Qualquer internauta interessado em escrever um livro, escolhe um disco de sua preferência e nele se inspira para sua empreitada literária. As propostas são avaliadas pelos editores da Mojo e, se aprovadas, você ganha o espaço no site da editora, com direito a capinha digital e o seu livro disponibilizado para download. O site acabou se tornando um portal de música, com os respectivos livros e notícias sobre as bandas, festivais e shows.
São espaços não controlados por gravadoras, rádios e editoras convencionais, como explica Sérgio Amadeu. “É uma rede distribuída, que não anula o mainstream, mas que convive com ele. Não se consegue mais controlar o canal de sucesso, o que deve ser sucesso agora. A disputa pelo público se dá com multiplicidade”, afirma, notando que a nova conformação elimina o intermediário. O artista tem hoje um canal mais direto com seu público.
O alcance das lan house
Mas e os limites impostos pela exclusão digital no Brasil? Pesquisa de 2007 do comitê gestor da internet no Brasil aponta que 69 milhões de brasileiros já usaram computador e 53 milhões a internet, mas 77 milhões nunca chegaram perto da rede. E o mapa mostra que a exclusão digital continua acompanhando a exclusão social no País. Mas um ingrediente interessante é que as lan houses se tornaram o local mais utilizado para o acesso à internet no país. Pessoas das classes C e D que não têm computador nem internet em casa devido ao alto custo vão para a lan house. O levantamento do Comitê mostra que 49% dos internautas brasileiros usam esses espaços.
Amadeu acredita ser este um paliativo para a falta de acesso digital das classes mais pobres e também o grande desafio para os próximos anos. A experiência dos Pontos de Cultura* tenta amenizar o disparate digital e, ao mesmo tempo, valorizar a diversidade cultural brasileira sem a “mão” do gabinete.
*Criados em 2003, os Pontos de Cultura são iniciativas da sociedade civil que formaram convênio com o Ministério da Cultura, com objetivo de articular e impulsionar ações culturais já existentes nas comunidades. Acesse o mapa dos Pontos: mapasdarede
São cerca de 2.500 pontos de cultura em todo o País, escolhidos através de licitação do Ministério da Cultura. O governo repassa recursos e equipamentos digitais para ampliar a atuação do ponto de cultura. O secretário da Cidadania Cultural, Célio Turino, ressalta que o repasse dos recursos é direcionado à ponta do projeto, evitando que o dinheiro se perca nos meandros da administração pública. São apoiados projetos de baixo valor unitário, cerca de R$ 60 mil ao ano, mas com grande alcance na comunidade em que estão.
Entradas e saídas do cinema – A dificuldade de distribuição e as alternativas encontradas pela produção independente
Se as leis de incentivo propiciaram maior acesso à produção cinematográfica, a outra ponta – distribuição e exibição dos filmes – constitui um conjunto de impossibilidades e dúvidas que não poupa novatos nem autores mais reconhecidos. A insistência quase heróica e a criatividade de muitos permitem que a saga continue e a diversidade exista – menos do que de fato poderia.
Filme pronto, os cineastas independentes percorrem uma maratona para garantir que sua obra chegue ao espectador. A despeito de precisar das leis de incentivo federais, estaduais e municipais, pensamos aqui que praticamente todo cinema feito no Brasil é independente, já que não existe uma indústria do cinema constituída. Filmes produzidos pela GloboFilmes levam alguma vantagem nas inserções pela TV e na distribuição pelas salas de cinema.
O mineiro Rafael Conde, autor de Samba-Canção (2002) – paródia da retomada do cinema brasileiro e as incongruências da busca de financiamento junto a homens do dinheiro – sabia, à época, que um hipotético Samba-Canção 2 poderia dar conta da fase seguinte e ainda sem desfecho, relativa à chegada do filme à tela grande. Samba-Canção, o filme feito, foi exibido em circuitos alternativos e festivais, mas só veio a ser comprado por um canal de TV após um entreato de quase seis anos.
Premiado em Cannes e concorrente ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), de Marcelo Gomes, foi rejeitado por exibidores cariocas em razão de seu nome estranho, ritmo lento e cor estranha – é o que relata a produtora Sara Silveira. Depois que o filme bombou nos festivais, os distribuidores voltaram atrás para exibi-lo em circuito comercial.
Selecionado para o Festival de Veneza e vencedor de competições na América Latina e no Brasil, O Andarilho (2006), de Cao Guimarães conseguiu seis dias de exibição, uma vez ao dia, no CineSesc em São Paulo, a duras penas. Os trabalhos anteriores de Guimarães, também festejados fora do Brasil, ainda são dívida para o público que vai ao cinema.
Estes últimos dois casos mostram a desigual relação entre filmes autorais de reconhecida qualidade e premiados em festivais e os que encontram ampla repartição pelas salas nacionais, como os produzidos pela GloboFilmes. A disputa é extremamente desigual. Avatar ou qualquer outra grande produção de estúdios americanos não chega ao Brasil com menos de algumas centenas de salas reservadas para exibição e por alguns meses.
Diante da charada, os festivais se tornam peças fundamentais na engrenagem da distribuição do cinema independente. Foi assim com O Cheiro do Ralo (2006), sucesso de público e crítica em festival carioca no qual chamou a atenção de um exibidor.
O diretor Heitor Dhalia diz que, sem o festival, o filme, feito de maneira totalmente independente, poderia passar despercebido. As 20 cópias exibidas no Brasil chegaram aonde Dhalia não havia imaginado: 150 mil espectadores.
Um conhecido nome do cinema nacional não escapuliu das dificuldades. Com Leandra Leal no elenco de seu Nome Próprio, Murilo Salles telefonou para os exibidores pedindo espaço para seu novo filme. Usou a internet, corrente de e-mails e apostou no corpo a corpo no circuito cult. O resultado foram mais de oito semanas em cartaz, a 12ª melhor renda do ano para quem não tinha recursos para o lançamento.
O mundo na telinha – Na tecnologia digital, a possibilidade de ir muito além em interatividade, democratização e multiplicação de vozes
Baseada em concessões dadas pelo poder público e concentrada em grandes grupos, a TV no Brasil ainda engatinha quando o assunto é acesso à diversidade.
O coordenador do Núcleo de Conteúdo e Qualidade da TV Cultura, Gabriel Priolli, disse, durante um recente debate sobre o tema, que o Brasil precisa romper a verticalização da produção televisiva, mas que “o poder político das tevês privadas bloqueia todas as tentativas legislativas nesse sentido”.
Ou seja, as tevês abertas privadas produzem o próprio conteúdo audiovisual e definem como e quando vão exibi-lo, conformando um monopólio que completa 50 anos em 2010. Segundo o sociólogo Sérgio Amadeu, mesmo o padrão tecnológico escolhido no País para a digitalização da TV foi pensado de forma a atrasar a convergência da TV com outros meios. “Tínhamos conhecimento técnico e pesquisa suficiente para criar o padrão brasileiro, mas optaram por um padrão nipo-brasileiro que bloqueia, em muito, a interatividade.”
Em dezembro de 2007, começaram as transmissões digitais na Grande São Paulo, que depois se estenderam para Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Goiânia, Curitiba, Porto Alegre, Salvador, Campinas, Cuiabá, Florianópolis, Vitória, Uberlândia, Santos, Brasília, Campo Grande, Fortaleza e Recife. A digitalização depende de cronograma elaborado pelo governo.
E os telespectadores, de aparelho digital para receber as imagens e sons em alta definição. Para os radiodifusores, a TV digital atende ao objetivo principal de alcançar a altíssima definição. Para os pesquisadores e ativistas da democratização das telecomunicações, a TV digital poderia ir além e explorar a interatividade. “Tal como os celulares viraram pequenos computadores nas nossas mãos, a TV digital também tem esse potencial”, afirma Amadeu.