A singularidade cultural aponta caminhos para o desenvolvimento. A “ecologia criativa” das cidades inclui de agentes econômicos à atmosfera das ruas
Era o caminho mais improvável para o sucesso. Em pleno País do Carnaval, escolheram o período da folia para um festival de jazz e blues. Não nos centros manjados do Sudeste, com infraestrutura adequada para atender às necessidades de um evento internacional, mas o estado do Ceará. E não a capital Fortaleza, mas 100 quilômetros interior adentro, na pequenina Guaramiranga, com cerca de 5 mil habitantes.
Havia algo de especial na cidadezinha que cativou a antropóloga Rachel Galhena, sócia-fundadora da produtora Via de Comunicação. Composto basicamente de uma única via pavimentada, o lugar tinha já dois teatros, herança dos tempos em que a oligarquia cearense do começo do século XX subia a serra no verão para aproveitar o “friozinho” de 15 a 20 graus, e matava o tempo fazendo saraus.
Cercada de remanescentes protegidos de Mata Atlântica, nem as tentativas de sobreviver da produção do café vingavam e Guaramiranga era uma cidade estagnada. Para Rachel, a memória cultural da cidade, combinada ao fato de que o Ceará não tinha mesmo vocação para o Carnaval, mas era berço de excelentes instrumentistas, compunha o chamado para uma virada extraordinária.
Em 11 edições, o festival selou encontros de músicos do gabarito de Stanley Jordan e Jean-Jacques Milteau com feras nacionais como Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal e Ivan Lins, além, é claro, dos talentos regionais. “No primeiro ano, ou hospedava o público ou os músicos. Não tinha leito suficiente. Também não tinha onde comer, só uma Kombi que vendia hot dog. Hoje tem restaurante italiano, alemão, gaúcho, várias pousadas. E agora a gente contrata cada vez mais mão de obra local”, comemora Rachel. Em 2005, por exemplo, o festival gerou mais de R$ 3 milhões de receita para o município, o equivalente a dez meses de arrecadação em impostos. Hoje, quase a metade da população trabalha não mais na prefeitura, mas na cadeia produtiva do turismo cultural e ecológico, que, por sua vez, gerou a revitalização urbana e o aprimoramento dos serviços públicos.
Guaramiranga é mais uma experiência entre inúmeras localidades que encontraram na cultura um caminho insuspeitado para o desenvolvimento, especialmente em momentos de crise e estagnação econômica. No início dos anos 90, o projeto do Museu Guggenheim foi o centro da estratégia para superar uma profunda recessão industrial e portuária no País Basco que se estendia há mais de uma década. Na França dos anos 50, as Casas da Cultura tiveram um papel importante na recuperação das cidades arrasadas durante a Segunda Guerra.
São casos estudados por Ana Carla Fonseca Reis no livro Economia da Cultura e Desenvolvimento Sustentável (Editora Manole, 2007). A autora descreve como os bens e serviços culturais têm potencial para gerar mais do que empregos e impostos, mas também valores intangíveis como bem-estar, coesão social e principalmente um ambiente propício para que as mais variadas ideias possam florescer.
Este último componente está na origem do conceito mais recente de economia criativa, campo de estudo no qual Ana Carla é pioneira no Brasil. Ela explica que, embora não haja unanimidade conceitual, a economia criativa abarca desde as indústrias do conhecimento geradoras de propriedade intelectual, passando pelas artes e pelo patrimônio histórico, até aquelas que se valem da cultura para desenvolver funcionalidade, como moda, design, propaganda, arquitetura – com desdobramentos sobre setores tradicionais, como a indústria têxtil e de construção.
“Para mim, o componente ético da economia criativa é reconhecer que há recursos não facilmente valoráveis e mensuráveis pelas metodologias tradicionais, mas que se mostram com enorme potencial para diferenciar bens e serviços e para promover o desenvolvimento em diferentes partes do mundo”, diz a especialista.
Singular e plural
Assim, Guaramiranga pode ser pobre do ponto de vista dos ativos econômicos tradicionais, mas riquíssima de atributos criativos que podem se traduzir em possibilidades reais de transformação. Entre outras coisas, uma cidade criativa é a que oferece ao mundo aquilo que tem de único, partindo de sua singularidade cultural, sem prejuízo das trocas de influências globais.
Esse ponto de partida é inseparável da crítica às definições consagradas do desenvolvimento que, ao dividirem o mundo em dois blocos, supõem que haja apenas uma fórmula evolutiva. O estudo Our Creative Diversity, produzido pela Comissão Mundial sobre Cultura e Desenvolvimento, da Unesco, dá o tom: “Em 1988, já era claro para nós que o desenvolvimento era uma empreitada muito mais complexa do que se pensara originalmente. Ele não poderia mais ser visto como um caminho único, uniforme, linear, porque isso eliminaria inevitavelmente a diversidade cultural e a experimentação. E limitaria perigosamente as capacidades criativas da humanidade, diante de um passado rico e de um futuro imprevisível.”
E, como a criatividade não pode gerar desenvolvimento por combustão espontânea, o primeiro e mais importante prérequisito é a educação. Uma pessoa de alta escolaridade tem 36 vezes mais chances de se envolver em práticas culturais – como ir ao teatro ou simplesmente ler um livro ou uma revista –, portanto de expandir seu universo criativo e de propor soluções as mais variadas.
Uma pesquisa sobre práticas culturais realizada em São Paulo, em 2005, revelou que, na cidade brasileira onde a oferta de bens e serviços culturais é mais abundante, 4 em cada 10 habitantes não haviam se envolvido em nenhuma experiência desse tipo no espaço de um ano. Entre os demais, apenas 59,3% tinham práticas culturais externas à sua residência.
Não basta, portanto, produzir e ofertar cultura. É preciso trabalhar a demanda e a distribuição. Há quatro anos, o Serviço Social do Comércio de São Paulo (Sesc) mudou seu escritório central da Avenida Paulista – “moral e fisicamente no alto, próximo ao poder”, como diz o diretor Danilo Santos de Miranda – para o bairro do Belenzinho, na Zona Leste da cidade. Uma das estratégias para atrair a demanda foi uma ampla pesquisa sobre os personagens do bairro, o barbeiro, o padre, o dono da padaria, o sapateiro etc.
Os retratos dessas pessoas foram transformados numa exposição fotográfica, disposta nas janelas do edifício, do Sesc para fora. “É uma estratégia bem direta, nem um pouco sutil. Não há condições de nos fixarmos em nenhuma parte da cidade sem ter uma aproximação, uma política de ampliação do pertencimento dos locais com relação ao bairro. E pertencimento é a antessala da cidadania”, diz Miranda.
Para o diretor, os efeitos intangíveis de um projeto criativo, para além da economia formal e informal que se estabelece no entorno de um equipamento de cultura, só podem se realizar com uma ampla gama de agentes em sintonia. “Eu não acredito na ação cultural substitutiva de outras estruturas. A questão é a cidade inteira propor ações. A escola no seu âmbito, a Igreja no seu âmbito, os políticos no seu âmbito, o Sesc no seu âmbito…”
É o que John Howkins chama de “ecologia criativa” (1), uma estrutura capaz de conectar os diferentes “ecossistemas socioculturais”. O empréstimo de termos biológicos denota a importância de ver a cidade como um sistema integrado e não como um conjunto de fragmentos, alguns mais beneficiados que outros. A outra parte da estratégia do Sesc é a conexão do local com o global da cidade. Em outras palavras, fazer as pessoas circularem entre as diferentes unidades espalhadas pelo território.
(1) Especialista em relações internacionais e urbanista, é diretor do British Screen Advisory Council e autor de vários livros, como The Creative Economy (2002) e Creative Ecologies (2010).
Se o critério fosse apenas a produção de conhecimento, diz Ana Carla, o maior exemplo de cluster criativo seria o Vale do Silício, na Califórnia (EUA). “Clusters criativos são locais nos quais as pessoas vivem, trabalham, se divertem; nos quais se produz, há circulação e se consomem produtos e serviços criativos. Há uma conciliação não só entre tangível e intangível, mas também entre razão e emoção. Não imagino outra forma de transformarmos o mundo para um modelo mais resolvido.”
Uma estrutura de tecnologia da informação e do conhecimento também é importante. Mas, nos quesitos produção e distribuição, a velha plataforma dos encontros é essencial.
Hard e soft
Foi Charles Landry quem propôs a ideia de que o espaço público da cidade é como o hardware que roda o software da criatividade. “O ambiente construído é crucial. Ele proporciona as condições físicas ou a plataforma sobre a qual as atividades da cidade vão se desenvolver”, afirma no livro Creative City Perspectives (2).
(2) Principal autoridade em economia criativa no mundo. Escreveu The Art of City Making, The Creative City: a Toolkit for Urban Innovators e Creative City Perspectives. Nessa última obra, organizada por Ana Carla Fonseca Reis e Peter Kageyama, foram reunidos relatos de 18 autores sobre experiências em diversas cidades do mundo. O dowload está disponível aqui.
Richard Florida, autor de The Rise of the Creative Class (2002), foi um dos primeiros a argumentar que, para atrair as classes criativas, as cidades precisavam também de uma atmosfera criativa. Era preciso oferecer um clima de pessoas, tanto quanto um clima de negócios. É por isso que o turismo é como um subproduto ou termômetro da cidade criativa, mas que pode sair pela culatra com o inchaço da infraestrutura e a escalada dos preços. Para Ana Carla, antes de atrair os que vêm de fora, as cidades precisam ser atraentes para seus próprios habitantes.
Foi o que fez Medellín, na Colômbia, para superar o estigma da cidade mais violenta do mundo nos anos 90. Se o objetivo era recompor o controle sobre o território, Medellín deu menos pelota às medidas repressivas de segurança e mais à apropriação de seus mais de 2 milhões de habitantes. Seguiu-se então uma revitalização urbana de peso – que incluiu teatros, praças, bibliotecas, parques, mirantes – somada a um fundo de educação de US$ 75 milhões para complementar a renda de estudantes e descontos expansivos para quase toda a população nos equipamentos de cultura.
Em quatro anos, os índices de homicídio baixaram 81%, o que também possibilitou sediar eventos internacionais como a Assembleia-Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), o Congresso Ibero-Americano de Cultura e, mais recentemente, os Jogos Sul-Americanos. Nos últimos dois anos, o índice de homicídios voltou a subir, em parte devido à retomada de fôlego dos grupos paramilitares em toda a Colômbia. Mas a face econômica e social de Medellín foi sensivelmente transformada.
Para Ronald Kapaz, sóciodiretor da empresa Oz Design, a falta de personalidade estética da capital paulista segue na contramão da cidadania e da criatividade. “São Paulo abandonou completamente a dimensão lúdica, o lugar que você vai caminhar, namorar, ver as pessoas. Por que você vai respeitar a cidade se ela não te respeita de volta?” Não fosse isso, São Paulo até poderia se tornar a capital nacional do design, diz Kapaz: “Onde há a maior complexidade de negócios e maior competitividade, é onde o design entra como ferramenta de valores, de diferenciar você dos seus concorrentes”.
O arquiteto Mauro Munhoz, autor de um projeto urbanístico para Paraty, acredita que a escalada tecnológica influenciou os espaços urbanos de maneira determinante. “É muito comum as pessoas gostarem de espaços que foram construídos há muito tempo, cidades históricas. Antigamente, as limitações técnicas, as dificuldades de transporte, obrigavam esse processo a estabelecer contato entre as transformações do espaço e as pessoas que o habitam. Hoje você pode fazer transformações radicais sem ter nenhum contato com as características físicas, o meio ecológico e cultural.”
E foi justamente na cidade histórica fluminense que Munhoz pôde concretizar a simbiose entre elementos identitários e urbanismo. Ao estudar o caso icônico de Barcelona, o arquiteto concluiu que um projeto sólido de revitalização urbana tinha um ciclo de vida de cerca de 20 anos. Temeu, então, que o seu projeto (fruto de tese de mestrado) perdesse o rumo ao longo das mudanças de governantes e de políticas públicas. Foi como resposta a esse desafio que surgiu a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), sintonizada à cultura de festas, típica do local.
Hoje, o evento de uma semana gera dividendos da ordem de R$ 5 milhões, tornou-se o principal componente do calendário turístico e gerou efeitos disseminados, como a lei municipal que incluiu no currículo escolar uma hora por semana de leitura literária.
O sucesso fez de Paraty uma referência em turismo cultural no País e chamou a atenção do governo federal. O plano Mar de Cultura repassa recursos do Ministério de Turismo para que a cidade supere seus problemas urbanos, como enchentes e carências de saneamento, entendidos finalmente como obstáculos ao desenvolvimento.
“Olha que estratégia interessante. A gente conseguiu, transitando do urbanismo para a cultura, que a filosofia de um projeto iniciado lá nos anos 90 não fosse abandonada e se tornasse objeto de política pública federal”, considera Munhoz. Outras cidades podem descobrir seus caminhos, criativos e únicos.[:en]A singularidade cultural aponta caminhos para o desenvolvimento. A “ecologia criativa” das cidades inclui de agentes econômicos à atmosfera das ruas
Era o caminho mais improvável para o sucesso. Em pleno País do Carnaval, escolheram o período da folia para um festival de jazz e blues. Não nos centros manjados do Sudeste, com infraestrutura adequada para atender às necessidades de um evento internacional, mas o estado do Ceará. E não a capital Fortaleza, mas 100 quilômetros interior adentro, na pequenina Guaramiranga, com cerca de 5 mil habitantes.
Havia algo de especial na cidadezinha que cativou a antropóloga Rachel Galhena, sócia-fundadora da produtora Via de Comunicação. Composto basicamente de uma única via pavimentada, o lugar tinha já dois teatros, herança dos tempos em que a oligarquia cearense do começo do século XX subia a serra no verão para aproveitar o “friozinho” de 15 a 20 graus, e matava o tempo fazendo saraus.
Cercada de remanescentes protegidos de Mata Atlântica, nem as tentativas de sobreviver da produção do café vingavam e Guaramiranga era uma cidade estagnada. Para Rachel, a memória cultural da cidade, combinada ao fato de que o Ceará não tinha mesmo vocação para o Carnaval, mas era berço de excelentes instrumentistas, compunha o chamado para uma virada extraordinária.
Em 11 edições, o festival selou encontros de músicos do gabarito de Stanley Jordan e Jean-Jacques Milteau com feras nacionais como Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal e Ivan Lins, além, é claro, dos talentos regionais. “No primeiro ano, ou hospedava o público ou os músicos. Não tinha leito suficiente. Também não tinha onde comer, só uma Kombi que vendia hot dog. Hoje tem restaurante italiano, alemão, gaúcho, várias pousadas. E agora a gente contrata cada vez mais mão de obra local”, comemora Rachel. Em 2005, por exemplo, o festival gerou mais de R$ 3 milhões de receita para o município, o equivalente a dez meses de arrecadação em impostos. Hoje, quase a metade da população trabalha não mais na prefeitura, mas na cadeia produtiva do turismo cultural e ecológico, que, por sua vez, gerou a revitalização urbana e o aprimoramento dos serviços públicos.
Guaramiranga é mais uma experiência entre inúmeras localidades que encontraram na cultura um caminho insuspeitado para o desenvolvimento, especialmente em momentos de crise e estagnação econômica. No início dos anos 90, o projeto do Museu Guggenheim foi o centro da estratégia para superar uma profunda recessão industrial e portuária no País Basco que se estendia há mais de uma década. Na França dos anos 50, as Casas da Cultura tiveram um papel importante na recuperação das cidades arrasadas durante a Segunda Guerra.
São casos estudados por Ana Carla Fonseca Reis no livro Economia da Cultura e Desenvolvimento Sustentável (Editora Manole, 2007). A autora descreve como os bens e serviços culturais têm potencial para gerar mais do que empregos e impostos, mas também valores intangíveis como bem-estar, coesão social e principalmente um ambiente propício para que as mais variadas ideias possam florescer.
Este último componente está na origem do conceito mais recente de economia criativa, campo de estudo no qual Ana Carla é pioneira no Brasil. Ela explica que, embora não haja unanimidade conceitual, a economia criativa abarca desde as indústrias do conhecimento geradoras de propriedade intelectual, passando pelas artes e pelo patrimônio histórico, até aquelas que se valem da cultura para desenvolver funcionalidade, como moda, design, propaganda, arquitetura – com desdobramentos sobre setores tradicionais, como a indústria têxtil e de construção.
“Para mim, o componente ético da economia criativa é reconhecer que há recursos não facilmente valoráveis e mensuráveis pelas metodologias tradicionais, mas que se mostram com enorme potencial para diferenciar bens e serviços e para promover o desenvolvimento em diferentes partes do mundo”, diz a especialista.
Singular e plural
Assim, Guaramiranga pode ser pobre do ponto de vista dos ativos econômicos tradicionais, mas riquíssima de atributos criativos que podem se traduzir em possibilidades reais de transformação. Entre outras coisas, uma cidade criativa é a que oferece ao mundo aquilo que tem de único, partindo de sua singularidade cultural, sem prejuízo das trocas de influências globais.
Esse ponto de partida é inseparável da crítica às definições consagradas do desenvolvimento que, ao dividirem o mundo em dois blocos, supõem que haja apenas uma fórmula evolutiva. O estudo Our Creative Diversity, produzido pela Comissão Mundial sobre Cultura e Desenvolvimento, da Unesco, dá o tom: “Em 1988, já era claro para nós que o desenvolvimento era uma empreitada muito mais complexa do que se pensara originalmente. Ele não poderia mais ser visto como um caminho único, uniforme, linear, porque isso eliminaria inevitavelmente a diversidade cultural e a experimentação. E limitaria perigosamente as capacidades criativas da humanidade, diante de um passado rico e de um futuro imprevisível.”
E, como a criatividade não pode gerar desenvolvimento por combustão espontânea, o primeiro e mais importante prérequisito é a educação. Uma pessoa de alta escolaridade tem 36 vezes mais chances de se envolver em práticas culturais – como ir ao teatro ou simplesmente ler um livro ou uma revista –, portanto de expandir seu universo criativo e de propor soluções as mais variadas.
Uma pesquisa sobre práticas culturais realizada em São Paulo, em 2005, revelou que, na cidade brasileira onde a oferta de bens e serviços culturais é mais abundante, 4 em cada 10 habitantes não haviam se envolvido em nenhuma experiência desse tipo no espaço de um ano. Entre os demais, apenas 59,3% tinham práticas culturais externas à sua residência.
Não basta, portanto, produzir e ofertar cultura. É preciso trabalhar a demanda e a distribuição. Há quatro anos, o Serviço Social do Comércio de São Paulo (Sesc) mudou seu escritório central da Avenida Paulista – “moral e fisicamente no alto, próximo ao poder”, como diz o diretor Danilo Santos de Miranda – para o bairro do Belenzinho, na Zona Leste da cidade. Uma das estratégias para atrair a demanda foi uma ampla pesquisa sobre os personagens do bairro, o barbeiro, o padre, o dono da padaria, o sapateiro etc.
Os retratos dessas pessoas foram transformados numa exposição fotográfica, disposta nas janelas do edifício, do Sesc para fora. “É uma estratégia bem direta, nem um pouco sutil. Não há condições de nos fixarmos em nenhuma parte da cidade sem ter uma aproximação, uma política de ampliação do pertencimento dos locais com relação ao bairro. E pertencimento é a antessala da cidadania”, diz Miranda.
Para o diretor, os efeitos intangíveis de um projeto criativo, para além da economia formal e informal que se estabelece no entorno de um equipamento de cultura, só podem se realizar com uma ampla gama de agentes em sintonia. “Eu não acredito na ação cultural substitutiva de outras estruturas. A questão é a cidade inteira propor ações. A escola no seu âmbito, a Igreja no seu âmbito, os políticos no seu âmbito, o Sesc no seu âmbito…”
É o que John Howkins chama de “ecologia criativa” (1), uma estrutura capaz de conectar os diferentes “ecossistemas socioculturais”. O empréstimo de termos biológicos denota a importância de ver a cidade como um sistema integrado e não como um conjunto de fragmentos, alguns mais beneficiados que outros. A outra parte da estratégia do Sesc é a conexão do local com o global da cidade. Em outras palavras, fazer as pessoas circularem entre as diferentes unidades espalhadas pelo território.
(1) Especialista em relações internacionais e urbanista, é diretor do British Screen Advisory Council e autor de vários livros, como The Creative Economy (2002) e Creative Ecologies (2010).
Se o critério fosse apenas a produção de conhecimento, diz Ana Carla, o maior exemplo de cluster criativo seria o Vale do Silício, na Califórnia (EUA). “Clusters criativos são locais nos quais as pessoas vivem, trabalham, se divertem; nos quais se produz, há circulação e se consomem produtos e serviços criativos. Há uma conciliação não só entre tangível e intangível, mas também entre razão e emoção. Não imagino outra forma de transformarmos o mundo para um modelo mais resolvido.”
Uma estrutura de tecnologia da informação e do conhecimento também é importante. Mas, nos quesitos produção e distribuição, a velha plataforma dos encontros é essencial.
Hard e soft
Foi Charles Landry quem propôs a ideia de que o espaço público da cidade é como o hardware que roda o software da criatividade. “O ambiente construído é crucial. Ele proporciona as condições físicas ou a plataforma sobre a qual as atividades da cidade vão se desenvolver”, afirma no livro Creative City Perspectives (2).
(2) Principal autoridade em economia criativa no mundo. Escreveu The Art of City Making, The Creative City: a Toolkit for Urban Innovators e Creative City Perspectives. Nessa última obra, organizada por Ana Carla Fonseca Reis e Peter Kageyama, foram reunidos relatos de 18 autores sobre experiências em diversas cidades do mundo. O dowload está disponível aqui.
Richard Florida, autor de The Rise of the Creative Class (2002), foi um dos primeiros a argumentar que, para atrair as classes criativas, as cidades precisavam também de uma atmosfera criativa. Era preciso oferecer um clima de pessoas, tanto quanto um clima de negócios. É por isso que o turismo é como um subproduto ou termômetro da cidade criativa, mas que pode sair pela culatra com o inchaço da infraestrutura e a escalada dos preços. Para Ana Carla, antes de atrair os que vêm de fora, as cidades precisam ser atraentes para seus próprios habitantes.
Foi o que fez Medellín, na Colômbia, para superar o estigma da cidade mais violenta do mundo nos anos 90. Se o objetivo era recompor o controle sobre o território, Medellín deu menos pelota às medidas repressivas de segurança e mais à apropriação de seus mais de 2 milhões de habitantes. Seguiu-se então uma revitalização urbana de peso – que incluiu teatros, praças, bibliotecas, parques, mirantes – somada a um fundo de educação de US$ 75 milhões para complementar a renda de estudantes e descontos expansivos para quase toda a população nos equipamentos de cultura.
Em quatro anos, os índices de homicídio baixaram 81%, o que também possibilitou sediar eventos internacionais como a Assembleia-Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), o Congresso Ibero-Americano de Cultura e, mais recentemente, os Jogos Sul-Americanos. Nos últimos dois anos, o índice de homicídios voltou a subir, em parte devido à retomada de fôlego dos grupos paramilitares em toda a Colômbia. Mas a face econômica e social de Medellín foi sensivelmente transformada.
Para Ronald Kapaz, sóciodiretor da empresa Oz Design, a falta de personalidade estética da capital paulista segue na contramão da cidadania e da criatividade. “São Paulo abandonou completamente a dimensão lúdica, o lugar que você vai caminhar, namorar, ver as pessoas. Por que você vai respeitar a cidade se ela não te respeita de volta?” Não fosse isso, São Paulo até poderia se tornar a capital nacional do design, diz Kapaz: “Onde há a maior complexidade de negócios e maior competitividade, é onde o design entra como ferramenta de valores, de diferenciar você dos seus concorrentes”.
O arquiteto Mauro Munhoz, autor de um projeto urbanístico para Paraty, acredita que a escalada tecnológica influenciou os espaços urbanos de maneira determinante. “É muito comum as pessoas gostarem de espaços que foram construídos há muito tempo, cidades históricas. Antigamente, as limitações técnicas, as dificuldades de transporte, obrigavam esse processo a estabelecer contato entre as transformações do espaço e as pessoas que o habitam. Hoje você pode fazer transformações radicais sem ter nenhum contato com as características físicas, o meio ecológico e cultural.”
E foi justamente na cidade histórica fluminense que Munhoz pôde concretizar a simbiose entre elementos identitários e urbanismo. Ao estudar o caso icônico de Barcelona, o arquiteto concluiu que um projeto sólido de revitalização urbana tinha um ciclo de vida de cerca de 20 anos. Temeu, então, que o seu projeto (fruto de tese de mestrado) perdesse o rumo ao longo das mudanças de governantes e de políticas públicas. Foi como resposta a esse desafio que surgiu a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), sintonizada à cultura de festas, típica do local.
Hoje, o evento de uma semana gera dividendos da ordem de R$ 5 milhões, tornou-se o principal componente do calendário turístico e gerou efeitos disseminados, como a lei municipal que incluiu no currículo escolar uma hora por semana de leitura literária.
O sucesso fez de Paraty uma referência em turismo cultural no País e chamou a atenção do governo federal. O plano Mar de Cultura repassa recursos do Ministério de Turismo para que a cidade supere seus problemas urbanos, como enchentes e carências de saneamento, entendidos finalmente como obstáculos ao desenvolvimento.
“Olha que estratégia interessante. A gente conseguiu, transitando do urbanismo para a cultura, que a filosofia de um projeto iniciado lá nos anos 90 não fosse abandonada e se tornasse objeto de política pública federal”, considera Munhoz. Outras cidades podem descobrir seus caminhos, criativos e únicos.