Para além de categorias, preceitos e julgamentos, o que emana da arte é a necessidade de transcender
O que nos captura e nos toma antes da ação? Que impulso é esse que nos envolve, modifi ca, intriga, aguça para o movimento? Pensamos que ele pode vir de várias vertentes, mas nenhum é mais potente que a arte – talvez só mesmo a natureza. Uma criação humana com valores estéticos que vão da harmonia à dissonância, do belo ao feio, do equilíbrio ao seu contrário, sem aceitação, com urgência, surpresa, paixão. PÁGINA22 foi atrás do que move o gosto pela arte hoje, o que está por trás dele e como ele se forma. Por que uma canção é brega e outra, cult? O que distingue o popular do erudito? Nas diferentes manifestações da arte, surgem questionamentos sobre as categorizações, conceitos e preconceitos, mas, sobretudo, uma ideia de sismo e catarse através dos tempos.
Nessa tarefa em busca do que sensibiliza as pessoas, o músico e pesquisador Arrigo Barnabé já está há alguns anos. Arrigo tem um programa na Rádio Cultura, de nome Supertônica, em que propõe deixar que a gente ouça músicas as mais diferentes e estranhas. Ele vai às ruas levando alguma interferência auditiva e chama as pessoas para ouvir e opinar. Alguns levam mais ou menos tempo.
A “audição” menos apreciada, conta o músico e compositor, foi A Grande Fuga, de Beethoven, um quarteto de cordas sem espaço para distração, uma música áspera e irritante para os primeiros ouvintes, mas considerada perene e universal. Arrigo achou esse dia curioso e foi anotando observações colhidas nas ruas de São Paulo. Uma música fora dos códigos conhecidos tocada para os ambulantes do entorno do Teatro Municipal, no Centro da cidade.
Ah! Mas os ambulantes não tinham repertório ou convívio com a música clássica para desfrutar de Beethoven? Não. Houve várias outras tentativas de aproximação entre esses universos aparentemente díspares que geraram enorme satisfação, revela Arrigo Barnabé. “É uma admiração, uma afeição por aquilo, um simples gostar. Na hora em que você percebe que existe outro horizonte estético, sua alma aumenta.”
Fugitivos
Quem sabe a recusa por A Grande Fuga seja um sintoma da época de rapidez e fragmentação em que vivemos? – palpito –, e Arrigo concorda. Mas ele vai além. “O fato de você se permitir ouvir, entrar realmente em contato implica uma mudança ética, porque você descobre como aquilo é signifi cativo, faz sentido, é importante”, diz o músico.
Então será que os julgamentos estéticos expressam valores éticos? É isso que está por trás do gosto/não gosto? O jornalista Pedro Alexandre Sanches arriscou-se a dizer que “atrás das cortinas do ‘bom gosto’ e do ‘mau gosto’ esconde-se um bichinho do qual em geral preferimos fugir a 120, 150, 200 quilômetros por hora e que atende pelo nome de preconceito”, em reportagem publicada recentemente na Revista da Cultura. “Será que eu desprezo o axé porque é péssimo ou porque desejo me manter bem distante dos baianos periféricos, pobres e pretos que o inventaram? Você detesta os emos porque fazem rock muito pauleira ou porque não se dá bem com seus fi gurinos esquisitões, soturnos, sexualmente indefi nidos? É fi car entre uma coisa e outra, indubitavelmente? Ou a repulsa (extra) musical nasce de uma gororoba mista disso tudo?”, levanta a poeira o jornalista.
O crítico e curador do Instituto Cultural Inhotim (1), Rodrigo Moura, responde que o próprio questionamento do bom e do mau gosto é também papel da arte:
“Existe uma hierarquização do gosto e do valor que se atribui a uma coisa e outra. Esse questionamento da fronteira entre o popular e o erudito acontece por várias vias”. E pouco se explica. Um exemplo dado por Rodrigo é uma exposição em cartaz até fi nal deste mês no Instituto Moreira Salles. O artista Artur Pereira, nascido nos anos 20 em Cachoeira do Brumado (distrito de Mariana, MG), era um mateiro que começou a fazer esculturas com 30 anos, não teve estudo formal nem contato com a história da arte ocidental. “O que se vê são todos os méritos, ele foi um gênio, suas obras se aproximam de (Auguste) Rodin”, avalia o crítico.
(1) O instituto é um complexo museológico localizado em Brumadinho, a 60 quilômetros da capital mineira, e possui um importante acervo de arte contemporânea e uma extensa coleção botânica.
Estranho e confortável
Em outra vertente, artistas contemporâneos buscam o que seria de ‘mau gosto’ ou que passa despercebido no cotidiano e trazem para seus trabalhos e para o ambiente das galerias. Apropriando-se da estética popular, folclórica ou banal, os artistas embolam os sentidos e os valores das coisas. A artista Leda Catunda, por exemplo, apropria-se de tecidos e texturas da sua infância convivendo com tias portuguesas e leva para suas “pinturas moles”, de superfície estufada e volumosa, uma busca da sensação tátil que tinha das roupas cheias de babados cafonas das tias. “Para mim, o senso estético está coordenado por uma ideia de conforto”, disse a artista em entrevista no programa Supertônica, de Arrigo Barnabé. E acrescenta que o “gosto” e o estético são uma necessidade legítima de qualquer humano. “Ninguém é só trabalho e consumo, você está existindo e fazendo coisas.
Rodrigo Moura, do Inhotim, cita o trabalho emblemático do artista plástico Cao Guimarães, Gambiarras, que já esteve na seção Retrato. O artista resgata objetos, invenções populares do cotidiano e compõe uma série curiosa e divertida de fotografias para lembrar que as gambiarras acontecem diariamente ao nosso redor, e desaparecem instantaneamente também. “São objetos sem valor, improvisos fadados ao esquecimento que são colocados no campo da arte, como a condensação da cultura”, explica Moura sobre a apropriação do popular nas artes plásticas.
O esquisito é matéria-prima de Arrigo Barnabé, por exemplo. “Eu parto da dissonância, a música do século XX é infl uenciada pela dissonância e ritmos complexos. A questão da ‘feiura’ me atrai muito, porque gera um conflito e é esse conflito que vai transformar, provocar alguma coisa”, expõe.
Nas artes, acrescenta o curador do Inhotim, a chegada do século XX, com o choque dos valores éticos e estéticos, é bem representada por Pablo Picasso, que passa a olhar para a arte africana e inaugura o Cubismo. Os expressionistas alemães trazem elementos primitivos dos povos da Oceania, numa história de contaminação do Ocidente por outras culturas, avacalhando, no melhor sentido, a arte renascentista.
O aparentemente “feio” de Picasso quebrava o paradigma do compromisso de fidelidade com a aparência real das coisas, estabelecendo o dogma fundamental da arte moderna – a de que o trabalho do artista não é cópia nem ilustração do mundo real, mas um acréscimo novo e autônomo. Nessa cisão, a busca da transcendência não mais se atrelava a reproduções da natureza, formas perfeitas ou o corpo humano, mas a aguçar este ser humano com autonomia e liberdade.
De lá pra cá, muito se fez e se falou sobre a arte moderna, a contemporaneidade, a arte conceitual (2). O aparato que envolve a arte nos dias de hoje também foi muito questionado por mais afastar do que aproximar o espectador do que realmente interessa, seja pelo circuito restrito de exibição, os altos valores cobrados, seja mesmo por um sentido de que tudo pode ser validado como arte. Rodrigo Moura concorda que a indústria da arte é cara e pode parecer hermética, mas acha enganoso encarar a arte como um “vale-tudo”. “Só quem está muito de fora acha isso, porque a arte é uma coisa legitimada, codificada, passa por mediações importantes, escolas de arte, críticos, curadores”, afirma. Mas e se o gosto popular mediar? Assim surgem o tecnobrega e outros fenômenos musicais espontâneos que surpreendem a indústria cultural estabelecida e o bom gosto vigente (leia mais abaixo em “A sacudida do tecnobrega”).
(2) Vanguarda surgida na Europa e nos EUA, no fim da década de 60, em que o conceito ou a atitude mental tem prioridade em relação à aparência da obra.
O invólucro de arte em muito contribui para o gosto/desgosto geral. Ficou famosa a iniciativa do Washington Post, que colocou um dos maiores violinistas do mundo, Joshua Bell, para tocar em uma estação do metrô da capital americana. Aplaudido nos teatros e cultuado pela mídia, o musicista foi praticamente ignorado pelos que passavam enquanto tocava peças musicais consagradas em seu violino Stradivarius de 1713, estimado em mais de US$ 3 milhões. Alguns dias antes Bell havia tocado no Symphony Hall, de Boston, onde os melhores lugares custam cerca de mil dólares (veja vídeo aqui).
Outro caso ocorreu no Brasil, durante a Bienal de Arte de São Paulo, em 2002. O estudante Cleiton Campos resolveu colocar um quadro seu no meio da seção de arte eslovena da mostra. O quadro, que segundo o autor era feio e nunca foi seu orgulho, permaneceu durante três meses na Bienal e provavelmente foi admirado e apreciado pelo público. O estudante foi “descoberto” no final da mostra e disse que achou “legal” o debate sobre pirataria que sua ação provocou.
Faltou ética ou o “debate” é legítimo? A Bienal é palco constante de intervenções e protestos questionáveis. Na última edição, cerca de 40 jovens entraram no prédio como visitantes comuns e picharam paredes, pilares e corrimãos do segundo andar, até serem detidos pela polícia. O segundo andar estava vazio, marcando a crise por que passava a própria instituição. Invasão e depredação de patrimônio público ou expressão legítima diante da interrogação lançada pela Bienal?
Acima dessas histórias, por último, e não menos importante, uma poderosa e rica indústria cultural ainda influi muito na definição do que vai chegar até o público. A internet e as possibilidades de compartilhamento, downloads, copylefts reduziram parte desse poderio. Agora eu já posso gostar do que eu procuro na rede e não apenas do que me chega pela TV, o rádio ou do que o meu vizinho gosta. Menos mal. E posso me arriscar a produzir também – melhor ainda.
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A sacudida do tecnobrega
Um movimento musical surgido no Pará nos últimos anos surpreende pela originalidade da mistura de ritmos, pelo número de adeptos e pela estratégia de divulgação em paralelo às garras da indústria cultural. Lançou mão da música eletrônica americana que chegou por aqui na década de 90 e fez a fusão com o chamado “brega”, que tem origem em canções românticas junto com ritmos caribenhos e antigos ritmos regionais, como a guitarrada e o carimbó. Dessa salada, surgiu o grupo de artistas do tecnobrega, realizando festas com aparelhagens de Djs, produtores caseiros e cantores. As vendas dos Cds se concentram nos camelôs, com a aprovação dos artistas.
O jornalista Pedro Alexandre Sanches, em reportagem publicada na revista Fórum, analisa o movimento sob a ótica do Modernismo, em que a antropofagia tomava a cena artística.
“O tecnobrega é um borbulhante espetáculo de canibalismo musical. O refrão de Thriller, de Michael Jackson, vira “firmêê, firmêê”. Single Ladies, de Beyoncé, se transforma em Não Me Segure e Tô Solteira, entre outras versões e subversões. Triturado pela legião tecnobregueira, todo o pop americano ou americanizado ganha sotaque, cadência, molejo e tonalidade de pele paraenses”, escreve.[:en]Para além de categorias, preceitos e julgamentos, o que emana da arte é a necessidade de transcender
O que nos captura e nos toma antes da ação? Que impulso é esse que nos envolve, modifi ca, intriga, aguça para o movimento? Pensamos que ele pode vir de várias vertentes, mas nenhum é mais potente que a arte – talvez só mesmo a natureza. Uma criação humana com valores estéticos que vão da harmonia à dissonância, do belo ao feio, do equilíbrio ao seu contrário, sem aceitação, com urgência, surpresa, paixão. PÁGINA22 foi atrás do que move o gosto pela arte hoje, o que está por trás dele e como ele se forma. Por que uma canção é brega e outra, cult? O que distingue o popular do erudito? Nas diferentes manifestações da arte, surgem questionamentos sobre as categorizações, conceitos e preconceitos, mas, sobretudo, uma ideia de sismo e catarse através dos tempos.
Nessa tarefa em busca do que sensibiliza as pessoas, o músico e pesquisador Arrigo Barnabé já está há alguns anos. Arrigo tem um programa na Rádio Cultura, de nome Supertônica, em que propõe deixar que a gente ouça músicas as mais diferentes e estranhas. Ele vai às ruas levando alguma interferência auditiva e chama as pessoas para ouvir e opinar. Alguns levam mais ou menos tempo.
A “audição” menos apreciada, conta o músico e compositor, foi A Grande Fuga, de Beethoven, um quarteto de cordas sem espaço para distração, uma música áspera e irritante para os primeiros ouvintes, mas considerada perene e universal. Arrigo achou esse dia curioso e foi anotando observações colhidas nas ruas de São Paulo. Uma música fora dos códigos conhecidos tocada para os ambulantes do entorno do Teatro Municipal, no Centro da cidade.
Ah! Mas os ambulantes não tinham repertório ou convívio com a música clássica para desfrutar de Beethoven? Não. Houve várias outras tentativas de aproximação entre esses universos aparentemente díspares que geraram enorme satisfação, revela Arrigo Barnabé. “É uma admiração, uma afeição por aquilo, um simples gostar. Na hora em que você percebe que existe outro horizonte estético, sua alma aumenta.”
Fugitivos
Quem sabe a recusa por A Grande Fuga seja um sintoma da época de rapidez e fragmentação em que vivemos? – palpito –, e Arrigo concorda. Mas ele vai além. “O fato de você se permitir ouvir, entrar realmente em contato implica uma mudança ética, porque você descobre como aquilo é signifi cativo, faz sentido, é importante”, diz o músico.
Então será que os julgamentos estéticos expressam valores éticos? É isso que está por trás do gosto/não gosto? O jornalista Pedro Alexandre Sanches arriscou-se a dizer que “atrás das cortinas do ‘bom gosto’ e do ‘mau gosto’ esconde-se um bichinho do qual em geral preferimos fugir a 120, 150, 200 quilômetros por hora e que atende pelo nome de preconceito”, em reportagem publicada recentemente na Revista da Cultura. “Será que eu desprezo o axé porque é péssimo ou porque desejo me manter bem distante dos baianos periféricos, pobres e pretos que o inventaram? Você detesta os emos porque fazem rock muito pauleira ou porque não se dá bem com seus fi gurinos esquisitões, soturnos, sexualmente indefi nidos? É fi car entre uma coisa e outra, indubitavelmente? Ou a repulsa (extra) musical nasce de uma gororoba mista disso tudo?”, levanta a poeira o jornalista.
O crítico e curador do Instituto Cultural Inhotim (1), Rodrigo Moura, responde que o próprio questionamento do bom e do mau gosto é também papel da arte:
“Existe uma hierarquização do gosto e do valor que se atribui a uma coisa e outra. Esse questionamento da fronteira entre o popular e o erudito acontece por várias vias”. E pouco se explica. Um exemplo dado por Rodrigo é uma exposição em cartaz até fi nal deste mês no Instituto Moreira Salles. O artista Artur Pereira, nascido nos anos 20 em Cachoeira do Brumado (distrito de Mariana, MG), era um mateiro que começou a fazer esculturas com 30 anos, não teve estudo formal nem contato com a história da arte ocidental. “O que se vê são todos os méritos, ele foi um gênio, suas obras se aproximam de (Auguste) Rodin”, avalia o crítico.
(1) O instituto é um complexo museológico localizado em Brumadinho, a 60 quilômetros da capital mineira, e possui um importante acervo de arte contemporânea e uma extensa coleção botânica.
Estranho e confortável
Em outra vertente, artistas contemporâneos buscam o que seria de ‘mau gosto’ ou que passa despercebido no cotidiano e trazem para seus trabalhos e para o ambiente das galerias. Apropriando-se da estética popular, folclórica ou banal, os artistas embolam os sentidos e os valores das coisas. A artista Leda Catunda, por exemplo, apropria-se de tecidos e texturas da sua infância convivendo com tias portuguesas e leva para suas “pinturas moles”, de superfície estufada e volumosa, uma busca da sensação tátil que tinha das roupas cheias de babados cafonas das tias. “Para mim, o senso estético está coordenado por uma ideia de conforto”, disse a artista em entrevista no programa Supertônica, de Arrigo Barnabé. E acrescenta que o “gosto” e o estético são uma necessidade legítima de qualquer humano. “Ninguém é só trabalho e consumo, você está existindo e fazendo coisas.
Rodrigo Moura, do Inhotim, cita o trabalho emblemático do artista plástico Cao Guimarães, Gambiarras, que já esteve na seção Retrato. O artista resgata objetos, invenções populares do cotidiano e compõe uma série curiosa e divertida de fotografias para lembrar que as gambiarras acontecem diariamente ao nosso redor, e desaparecem instantaneamente também. “São objetos sem valor, improvisos fadados ao esquecimento que são colocados no campo da arte, como a condensação da cultura”, explica Moura sobre a apropriação do popular nas artes plásticas.
O esquisito é matéria-prima de Arrigo Barnabé, por exemplo. “Eu parto da dissonância, a música do século XX é infl uenciada pela dissonância e ritmos complexos. A questão da ‘feiura’ me atrai muito, porque gera um conflito e é esse conflito que vai transformar, provocar alguma coisa”, expõe.
Nas artes, acrescenta o curador do Inhotim, a chegada do século XX, com o choque dos valores éticos e estéticos, é bem representada por Pablo Picasso, que passa a olhar para a arte africana e inaugura o Cubismo. Os expressionistas alemães trazem elementos primitivos dos povos da Oceania, numa história de contaminação do Ocidente por outras culturas, avacalhando, no melhor sentido, a arte renascentista.
O aparentemente “feio” de Picasso quebrava o paradigma do compromisso de fidelidade com a aparência real das coisas, estabelecendo o dogma fundamental da arte moderna – a de que o trabalho do artista não é cópia nem ilustração do mundo real, mas um acréscimo novo e autônomo. Nessa cisão, a busca da transcendência não mais se atrelava a reproduções da natureza, formas perfeitas ou o corpo humano, mas a aguçar este ser humano com autonomia e liberdade.
De lá pra cá, muito se fez e se falou sobre a arte moderna, a contemporaneidade, a arte conceitual (2). O aparato que envolve a arte nos dias de hoje também foi muito questionado por mais afastar do que aproximar o espectador do que realmente interessa, seja pelo circuito restrito de exibição, os altos valores cobrados, seja mesmo por um sentido de que tudo pode ser validado como arte. Rodrigo Moura concorda que a indústria da arte é cara e pode parecer hermética, mas acha enganoso encarar a arte como um “vale-tudo”. “Só quem está muito de fora acha isso, porque a arte é uma coisa legitimada, codificada, passa por mediações importantes, escolas de arte, críticos, curadores”, afirma. Mas e se o gosto popular mediar? Assim surgem o tecnobrega e outros fenômenos musicais espontâneos que surpreendem a indústria cultural estabelecida e o bom gosto vigente (leia mais abaixo em “A sacudida do tecnobrega”).
(2) Vanguarda surgida na Europa e nos EUA, no fim da década de 60, em que o conceito ou a atitude mental tem prioridade em relação à aparência da obra.
O invólucro de arte em muito contribui para o gosto/desgosto geral. Ficou famosa a iniciativa do Washington Post, que colocou um dos maiores violinistas do mundo, Joshua Bell, para tocar em uma estação do metrô da capital americana. Aplaudido nos teatros e cultuado pela mídia, o musicista foi praticamente ignorado pelos que passavam enquanto tocava peças musicais consagradas em seu violino Stradivarius de 1713, estimado em mais de US$ 3 milhões. Alguns dias antes Bell havia tocado no Symphony Hall, de Boston, onde os melhores lugares custam cerca de mil dólares (veja vídeo aqui).
Outro caso ocorreu no Brasil, durante a Bienal de Arte de São Paulo, em 2002. O estudante Cleiton Campos resolveu colocar um quadro seu no meio da seção de arte eslovena da mostra. O quadro, que segundo o autor era feio e nunca foi seu orgulho, permaneceu durante três meses na Bienal e provavelmente foi admirado e apreciado pelo público. O estudante foi “descoberto” no final da mostra e disse que achou “legal” o debate sobre pirataria que sua ação provocou.
Faltou ética ou o “debate” é legítimo? A Bienal é palco constante de intervenções e protestos questionáveis. Na última edição, cerca de 40 jovens entraram no prédio como visitantes comuns e picharam paredes, pilares e corrimãos do segundo andar, até serem detidos pela polícia. O segundo andar estava vazio, marcando a crise por que passava a própria instituição. Invasão e depredação de patrimônio público ou expressão legítima diante da interrogação lançada pela Bienal?
Acima dessas histórias, por último, e não menos importante, uma poderosa e rica indústria cultural ainda influi muito na definição do que vai chegar até o público. A internet e as possibilidades de compartilhamento, downloads, copylefts reduziram parte desse poderio. Agora eu já posso gostar do que eu procuro na rede e não apenas do que me chega pela TV, o rádio ou do que o meu vizinho gosta. Menos mal. E posso me arriscar a produzir também – melhor ainda.
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A sacudida do tecnobrega
Um movimento musical surgido no Pará nos últimos anos surpreende pela originalidade da mistura de ritmos, pelo número de adeptos e pela estratégia de divulgação em paralelo às garras da indústria cultural. Lançou mão da música eletrônica americana que chegou por aqui na década de 90 e fez a fusão com o chamado “brega”, que tem origem em canções românticas junto com ritmos caribenhos e antigos ritmos regionais, como a guitarrada e o carimbó. Dessa salada, surgiu o grupo de artistas do tecnobrega, realizando festas com aparelhagens de Djs, produtores caseiros e cantores. As vendas dos Cds se concentram nos camelôs, com a aprovação dos artistas.
O jornalista Pedro Alexandre Sanches, em reportagem publicada na revista Fórum, analisa o movimento sob a ótica do Modernismo, em que a antropofagia tomava a cena artística.
“O tecnobrega é um borbulhante espetáculo de canibalismo musical. O refrão de Thriller, de Michael Jackson, vira “firmêê, firmêê”. Single Ladies, de Beyoncé, se transforma em Não Me Segure e Tô Solteira, entre outras versões e subversões. Triturado pela legião tecnobregueira, todo o pop americano ou americanizado ganha sotaque, cadência, molejo e tonalidade de pele paraenses”, escreve.