O diretor executivo da EcosSistemas, Alexander Van Parys Piergili, é engenheiro agrônomo, especialista em energias renováveis. Fundou e dirige a EcosSistemas com uma visão voltada para a transformação positiva da sociedade. Aplica os conceitos nos quais acredita à sua vida diária. Mora no sítio Gralha Azul, em Santo Antonio do Pinhal (onde fica a sede da empresa).
Quando você e sua esposa notaram a necessidade de cultivar as sementes de espécies crioulas?
A necessidade surgiu há mais ou menos dois anos, quando passamos pela primeira inspeção da certificadora orgânica aqui no Sítio Gralha Azul. Durante a inspeção, o técnico me perguntou sobre a origem das sementes, se eram orgânicas, e eu respondi que a menor parte delas era, pois há poucas sementes orgânicas no mercado. Como agricultor, fiquei tão constrangido com o fato de não produzir minhas próprias sementes, para poder garantir a origem orgânica dos alimentos que cultivo, que passei a pesquisar sobre sementes de polinização aberta, que eu mesmo posso reproduzir e replantar. Dentro das variedades de polinização aberta, encontramos as sementes crioulas, variedades mantidas por comunidades de agricultores e populações tradicionais.
Quantas espécies são criadas por vocês?
Nós cultivamos cerca de 100 variedades, das mais diversas espécies, dentre elas tomates, cenouras, alfaces, beterrabas, batatas, milho, feijão, trigo, aveia, aspargos, amendoim, girassol e diversos tipos de flores e frutos. Temos 10 variedades de milho, que variam de coloração desde o branco, que é mais adocicado, até o amarelo ‘raio de sol’, muito bom para fubá, e o milho preto, duríssimo, e de excelente armazenamento, nunca sendo atacado por carunchos. Tomates de várias cores, formas, tamanhos e sabores. Os mais gostosos são os tomatinhos “pêra” vermelho e amarelo. Eles são pequenos como tomates cereja, mas tem o formato oblongo como uma pêra, e são muito doces. As crianças adoram colher direto no pé e comer.
No início, vocês procuraram os Seed Savers. O que é esta iniciativa? Como foi adaptá-la para o Brasil?
O Seed Savers é uma ONG americana, com 35 anos de existência, que recebe sementes de “polinização aberta” de seus membros, cataloga, multiplica e comercializa estas sementes para quem tiver interesse em cultivá-las. O nosso projeto de sementes de polinização aberta aqui no Sítio Gralha Azul ainda está em fase bastante embrionária. Diria que estamos na “fase 1”, coletando, trocando, comprando e recebendo sementes de amigos, catalogando e multiplicando estas sementes no campo. Mas a variedade de sementes que temos para trabalhar ainda é extremamente pequena. Como já comentei, nós temos cerca de 100 variedades de plantas de polinização aberta. O Seed Savers trabalha com mais de 25 mil variedades.
Diria que nossa intenção de adaptá-la ao Brasil existe, mas ainda estamos bem longe disso. Por enquanto, o projeto ainda é de cunho pessoal, mas tenho sentido cada vez mais a importância de tornar esta iniciativa um projeto maior.
Como funciona esta troca com o Seed Savers? Como o Brasil participa desta iniciativa?
A troca acontece de várias formas. Pessoas que mantém variedades especiais de plantas, tipo aquelas flores que a vovó cultivava, ou tomates que o bisavô tinha no jardim e as sementes foram passadas de geração para geração; tem orgulho em doar suas sementes para que o Seed Savers cadastre em seu catálogo, reproduza e distribua aquele material. Assim, pessoas do mundo todo enviam suas sementes para o Seed Savers. Uma vez que a variedade foi multiplicada, ela é vendida normalmente em lojas de produtos agrícolas, internet, etc. Isso garante a sobrevivência daquela variedade. Não existe participação “oficial” do Brasil nisso. Eu sou um membro do Seed Savers como pessoa física, e como tal eu posso comprar sementes, enviar as minhas variedades, participar de eventos, por exemplo.
O que é preciso para ter uma iniciativa similar ao Seed Savers no Brasil?
Precisamos, primeiramente, criar uma instituição com figura jurídica, de preferência uma organização do terceiro setor, capaz de captar os recursos que tal empreendimento necessita. Depois, precisamos mapear agricultores, comunidades e locais que tem bancos de sementes de polinização aberta, cadastrá-los, e coletar sementes. Uma vez que as sementes foram coletadas, precisamos catalogá-las, e começar um processo de multiplicação de sementes, para só então torná-las disponíveis para outros agricultores/jardineiros. Eu comecei este projeto única e exclusivamente para satisfazer as necessidades de produção aqui do Sítio, ou seja, criar um banco de sementes para o Sítio Gralha Azul, de modo a garantir uma segurança alimentar efetiva para minha família e meus clientes.
Existem iniciativas similares ao seu trabalho?
Ao longo de minhas pesquisas, percebi que, embora no Brasil existam iniciativas isoladas de bancos de sementes crioulas, estas iniciativas não conversam entre si, ou conversam pouco, e é praticamente impossível comprar sementes crioulas pela internet ou em lojas agropecuárias. Acho bem importante reforçar essa questão, da falta de disponibilidade de sementes crioulas à venda. Isso é um indicador fortíssimo de vulnerabilidade das sementes crioulas no Brasil. Hoje, se eu quiser adquirir sementes crioulas, preciso fazer uma verdadeira expedição pelos rincões brasileiros, buscando agricultores e comunidades que guardam suas sementes. Ou seja: quanto mais difícil de encontrar as sementes, mais difícil plantá-las, menor a chance de serem reproduzidas, maior a vulnerabilidade e risco de perda de um recurso genético precioso. Acho extremamente importante a comercialização das sementes crioulas, por todos os meios possíveis, principalmente a internet.
Uma questão interessante são as sementes raras. Por que há uma seleção nas espécies de tomate, por exemplo? Há cerca de 40 mil tipos de tomate no mundo, por que no Brasil comemos apenas 5 deles? Vocês têm outros exemplos neste sentido?
Realmente, nossa dieta é bastante limitada a poucas plantas, e pouquíssimas variedades de cada planta. Grande parte da razão de existência de variedades da mesma espécie vem da cultura agrícola da humanidade. Desde a “invenção” da agricultura até pouco tempo atrás, os agricultores plantavam suas sementes, colhiam suas safras, selecionavam as melhores sementes para plantar no ano seguinte, e consumiam, trocavam ou vendiam o restante da produção. Procedendo assim por algumas centenas de anos, os agricultores selecionaram as sementes mais adaptadas às condições de clima, solo, insetos, doenças e outras características que só existiam naquela localidade. Assim, surgiram as variedades conhecidas como crioulas, ou seja, plantas extremamente adaptadas a condições específicas das localidades onde foram cultivadas e, mais importante, de polinização aberta, ou seja, capazes de reproduzir sementes que gerarão plantas idênticas às plantas das quais se originaram.
Qual o principal fator responsável pela destruição das variedades crioulas?
Foi a substituição massiva destas variedades por híbridos. Sementes híbridas são cruzamentos específicos entre duas variedades com características diferentes, para a criação de uma terceira variedade que carregue as características das duas variedades mães. Sementes híbridas são muito mais caras de se produzir, e podem ser vendidas por valores maiores do que as sementes de polinização aberta. Quando um agricultor planta sementes híbridas, ele não pode guardar as melhores sementes para plantar na safra seguinte: os híbridos não se prestam ao plantio, então o agricultor fica obrigado a comprar novas sementes anualmente. Além disso, sementes crioulas são adaptadas à micro-regiões específicas de onde foram cultivadas, não se adequando a um plantio massificado em escala nacional, o que facilitaria o marketing e comercialização pelas empresas de sementes. Podemos dizer que comemos uma variedade tão pequena de alimentos por questões de mercado: variedades híbridas, de alta produtividade, adaptáveis a diversas condições de solo e clima, com todo o suporte tecnológico dos pacotes que as acompanham, como adubos químicos e agrotóxicos, são muito mais interessantes do ponto de vista comercial.
Outra questão curiosa é a cor dos alimentos. Soubemos que a cenoura era branca, e o tom foi dado pelos holandeses. Vocês sabem o por quê? Há outras histórias parecidas que vocês poderiam nos contar?
Na verdade, as cenouras eram amarelas, brancas, vermelhas, pretas, roxas e alaranjadas; ou seja, existiam cenouras de diversas cores. As cenouras de cor laranja foram selecionadas por agricultores Holandeses no século XVII como uma homenagem a William of Orange, fundador do “Novo Estado Holandês”, líder do movimento de independência da Holanda. Hoje consumimos cenouras de cor alaranjada por motivos políticos. A moda pegou, as variedades de cor alaranjada predominaram, e poucas pessoas sabem que existem cenouras de diversas cores, até por que elas não podem ser encontradas nos mercados e feiras.
A banana também tem fatos curiosos em sua história. Quem come uma banana hoje, com sua forma anatômica, a embalagem mais perfeita do mundo, pois além de biodegradável, a cor da casca nos mostra o estado de maturação da fruta – se verde, o fruto não está bom, amarela é boa para consumo, e marrom está passada, imagina que a fruta é assim “perfeita” por natureza. No entanto, a banana tem mais de cinco mil anos de seleção e domesticação pelos seres humanos. A banana que consumimos hoje não poderia existir sem a parceria dos humanos com a natureza. As bananas selvagens que ainda existem possuem grandes sementes, ao contrário das variedades comerciais a qual estamos acostumados.
Sobre a questão do agrotóxico: grande parte das sementes já vem coberta de agrotóxico, mas questiona-se também a diversidade e a variedade de comida no prato. Como vocês veem esta questão?
Podemos separar a questão em duas partes.
Sobre a questão dos agrotóxicos: realmente, a maior parte das sementes comercializadas hoje vem impregnada de agrotóxicos, para aumentar o período de conservação, e também para melhorar a taxa de germinação das sementes no campo, já que estas sementes não são atacadas por fungos e doenças. Por outro lado, as sementes com agrotóxicos criam algumas situações bastante estranhas para agricultores: primeiro que as sementes tratadas deixam de ser alimento, e tornam-se um risco à saúde de pessoas e animais. Depois, não é possível manusear estas sementes com as mãos nuas, então para semeá-las, deve-se utilizar ou máquinas, ou luvas. Crianças não podem nem chegar perto desse tipo de material. Minhas filhas de 3 e 5 anos gostam muito de plantar, tratam as sementes como se fossem bichinhos de estimação, e simplesmente não conseguem entender como é possível colocar veneno nas sementes. E o mais curioso, e eu diría que grave: adulto também tem dificuldade de associar uma simples semete, a riscos à sua saúde, e isso acaba gerando problemas no campo para os agricultores com menos acesso à informação.
É difícil para nós, pessoas, termos a real percepção de que uma semente, símbolo máximo da vida, possa na verdade ser um organismo de alta periculosidade pelo fato de estar impregnada de produtos tóxicos.
Com relação à diversidade: o desenvolvimento dos métodos de agricultura industrial que conhecemos hoje propiciou uma série de benefícios para a sociedade humana; e com os benefícios, vieram diversas consequências negativas que tanto conhecemos, como a erosão dos solos, a contaminação da água e dos alimentos, a deflorestação, e a erosão genética. A pesquisa agrícola moderna direcionou todos os seus esforços para a obtenção de variedades e híbridos de altíssima produtividade, homogeneidade de crescimento, tempo de prateleira, em detrimento de outras qualidades como resistência natural a pragas e doenças, adaptação ao clima, resistência a secas, ao frio, etc. Com isso, direcionou-se a alimentação das populações principalmente urbanas, para o consumo das variedades para alta produtividade, deixando de lado as outras milhares de variedades que, por não produzirem tanto, ou por terem um aspecto “feio”, ou sabor pouco agradável, ou dificuldade de industrialização, não ofereciam vantagens financeiras imediatas para as indústrias de sementes.
Qual a importância do cultivo das sementes crioulas?
As sementes crioulas, ou de polinização aberta, como eu prefiro chamar, são um dos patrimônios mais preciosos da humanidade. A segurança alimentar da humanidade depende das sementes de polinização aberta. Mesmo que hoje, ao redor do mundo, seja utilizada uma quantidade muito maior de sementes híbridas, é necessário um banco de sementes de polinização aberta para o estudo de novas variedades, adaptáveis a condições extremas que certamente enfrentaremos com a questão das mudanças climáticas. A indústria de sementes tem como matéria prima as variedades crioulas.
No mundo, como a questão é vista?
Há uma história interessante: na década de 30 do século passado, um russo de nome Nikolai Vavilov pesquisava sobre os centros de origem das plantas cultivadas. Durante suas pesquisas, Vavilov realizou uma série de expedições botânico-agronômicas pelo planeta, coletando sementes de cada canto do globo terrestre, criando em Leningrado a maior coleção de sementes conhecida. O banco de sementes foi cuidadosamente preservado, mesmo durante os 28 meses do “Cerco de Leningrado”, onde morreram mais de um milhão de pessoas, muitas de fome, cercadas pelos nazistas. Apesar da fome, um dos assistentes de Vavilov morreu cercado de sementes comestíveis, ciente da importância daquele material para toda a humanidade. Hoje, temos um banco de sementes chamado Svalbard, em uma caverna congelada na Noruega. Este banco foi construído 120 metros para dentro de uma montanha, a 1.300 km do Polo Norte, a um custo de 9 milhões de dólares para guardar duplicatas de sementes presentes em bancos do mundo todo, como forma de “backup”, para assegurar a sobrevivência do patrimônio genético de plantas cultiváveis para a humanidade. O esforço para a construção de um centro como Svalbard, empregado por um consórcio de diversos países, demonstra bem a importância das sementes crioulas.