A diversidade cultural e a biodiversidade enfrentam os mesmos riscos, compartilham estratégias de conservação e, em última análise, dependem uma da outra
Substitua espécies biológicas por saberes e fazeres culturais e o resultado será a mesma teia de vida, com seus riscos e oportunidades. Numa época em que a vida urbana leva a crer que haja uma ruptura entre sociedade, economia e o mundo natural, as semelhanças entre a diversidade humana e a biodiversidade servem como lembrete de que, no final das contas, temos todos um denominador comum.
A começar pelo processo de extinção, um dos primeiros fatores que vêm à mente quando se fala em biodiversidade. Assim como as espécies, variantes culturais desaparecem da face da Terra num ritmo acelerado e irreversível. As línguas, expressão máxima do conhecimento e dos valores de uma determinada cultura, extinguem-se na velocidade de uma a cada duas semanas, segundo o projeto Enduring Voices, da revista National Geographic. A projeção é de que, até o final do século, metade das 7 mil línguas faladas hoje terá desaparecido (leia mais em “Letra Morta”, texto da coluna de Regina Scharf, à edição 39).
Dá até para especular que o declínio dos recursos naturais tenha algo a ver com isso. Um relatório produzido pela Unesco, em 2002, aponta que os ambientes mais biodiversos do mundo têm também a maior diversidade linguística. Simples assim: quanto mais elementos disponíveis no ambiente, mais os humanos geram palavras para denominá-los. Isso não se restringe às populações tradicionais. Basta lembrar-se do repertório da gastronomia, ou mesmo dos fitoterápicos, comum a todos nós: dendê, tucupi, pequi, camomila, boldo, erva-cidreira… Por aí vai a alquimia de ingredientes que compõem a diversidade biológica e cultural brasileira.
Na origem do fenômeno das extinções, a lógica econômica faz com que meio ambiente e cultura se encontrem novamente. “A preservação do patrimônio ambiental se mostra tão mais viável quanto mais rentável for a sua exploração sustentada. Da mesma forma, produtos e serviços culturais tradicionais que não encontram inclusão econômica têm mais dificuldade em seguir existindo”, explica Ana Carla Fonseca Reis, especialista em economia da cultura.
Sem nenhuma formação específica em meio ambiente, Ana Carla entende do assunto. Isso porque as intersecções de ambas as diversidades fizeram com que as cabeças pensantes da cultura fossem buscar soluções na área ambiental. Afinal, os dois campos oferecem valores intangíveis de difícil tradução econômica segundo as metodologias consagradas.
Foi assim que surgiu o Método de Valoração Contingente (CVM, na sigla em inglês), originalmente desenvolvido para calcular o dano financeiro do derramamento de óleo do petroleiro Exxon Valdez, no Alasca, em 1989, envolvendo a empresa ExxonMobil. Até então não se sabia como atribuir valor à biodiversidade arruinada em um desastre ambiental. A solução foi perguntar às pessoas quanto elas estariam dispostas a pagar para usufruir dos recursos naturais ou apenas para mantê-los, ainda que a relação direta de usufruto não estivesse clara. A mesma metodologia passou a ser utilizada para balizar o valor de produtos e serviços culturais. “O meio ambiente é como um irmão mais velho da cultura”, brinca Ana Carla.
Um irmão mais velho que sai na frente inclusive na política internacional. É curioso como a humanidade expressou a importância da biodiversidade em convenção internacional específica já em 1992, mas levou ainda 13 anos para fazer o mesmo pela diversidade cultural. Ambos os textos, no entanto, não escondem seus vínculos e atribuem às duas diversidades o papel de garantir estabilidade no relacionamento entre as nações (veja quadro abaixo).
“A preservação e o uso duráveis da diversidade biológica reforçarão as relações amigáveis entre os Estados e contribuirão com a paz da humanidade” – Convenção sobre a Diversidade Biológica, 1992, assinada por 156 países
“O respeito à diversidade das culturas, à tolerância, ao diálogo e à cooperação, em um clima de confiança e entendimento mútuos, está entre as melhores garantias da paz e da segurança internacionais” – Convenção sobre a Diversidade Cultural, 2005, assinada por 148 países
Preservação de mão dupla
Certas culturas humanas ao longo da história foram capazes de contribuir para a biodiversidade em lugar de suprimi-la, segundo o biólogo Marcio Sztutman, gerente de conservação do programa Amazônia da ONG The Nature Conservancy (TNC). “Existe um entendimento de que onde se encontram populações tradicionais, em grande parte, é onde estão os remanescentes mais diversos. Quando os índios fazem uma roça e deixam para trás, aquela roça vira uma capoeira, com novas espécies. O hábito deles de largar restos de comida e folhas num local específico deu origem à terra preta, que são as áreas mais férteis.”
E para potencializar a capacidade das terras indígenas, que já são as unidades mais bem-sucedidas em conter o desmatamento, a TNC iniciou um trabalho de etnomapeamento, que aproveita o conhecimento desses povos para catalogar as diferentes manchas cartográficas de recursos naturais na Amazônia. É uma combinação de alta tecnologia, com satélites e GPS, somada ao conhecimento tradicional.
“As pessoas pensam que índio que é índio tá metido no meio do mato, não fala português. Mas, da mesma forma que a nossa cultura muda, a indígena também é dinâmica. Eles estão acessando novas informações, inseridos numa nova realidade”, diz Sztutman. Essa realidade inclui também mudanças no entorno – como estradas, hidrelétricas, mineração – ou, em alguns casos, o aumento da população, que pode exercer uma pressão excessiva sobre a caça e o extrativismo. Desde 2008, a TNC vem assessorando terras indígenas para compor planos de gestão do território, algo que só se fazia para outras unidades de conservação.
Existe uma polêmica, que opõe conservacionistas e socioambientalistas, sobre se todas as populações tradicionais ou indígenas realmente beneficiam a conservação. Sobre esse aspecto, o mínimo que se pode dizer é que só se pode proteger aquilo que se conhece e algumas culturas são a chave para esse acesso. Foi o que deu origem, em meados do século XX, às etnociências, combinação de antropologia e ciências biológicas.
“Hoje em dia se admite que a observação de pessoas que não têm educação formal tem valor quando incorporada em estudos científicos. E também se admite que o comportamento humano tem tudo a ver com o que acontece no ambiente”, diz a etnobotânica e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Elaine Elisabetsky.
A professora explica a aplicação prática em seu processo de pesquisa: “Se eu vou estudar uma floresta que tem 250 plantas superiores, cada uma com flores, sementes, raízes, é como procurar agulha no palheiro. Os índios Kayapó, por exemplo, reconhecem mais de 30 tipos de diarréia e para cada uma tem um tipo de planta. É o conhecimento tradicional que permite levantar hipóteses e fazer uma seleção preliminar”.
Nesses casos, a manutenção dos recursos naturais depende da cultura tanto quanto a cultura depende do meio ambiente e da paisagem para continuar existindo. Ao fim e ao cabo, a inteligência de combinar preservação ambiental e cultural consiste em deixar todas as opções em aberto para que a humanidade delas possa dispor. Como diz a Unesco, no relatório Cultural Diversity and Biodiversity for Sustainable Development: “Ambas as diversidades guardam a chave para assegurar resiliência tanto aos sistemas sociais quanto aos sistemas ecológicos”.