O impasse nas negociações globais reflete um mundo alheio à urgência ambiental. Fóruns setoriais que crescem nessa lacuna são um grande avanço, mas também guardam contradições
Um dos grandes sucessos do cinema na virada do século, a ficção Matrix retrata um mundo em que a realidade virtual torna as pessoas alheias ao mundo real a sua volta. O mote do filme inspirou algumas organizações da sociedade civil brasileira durante a 8ª Conferência das Partes (COP) da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), em 2006, em Curitiba. Parte da programação paralela do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (FBOMS) foi chamada de Coptrix, porque trazia a proposta de discutir os reais dilemmas da Convenção, nem sempre encarados de frente na disputa por colchetes [1] das reuniões da diplomacia.
[1] Trechos do acordo, grafados entre colchetes, sobre os quais ainda não há consenso entre os países signatários da Convenção.
Na Rio 92, quando as principais convenções internacionais relativas ao meio ambiente foram assinadas, o sentido já era de urgência. Por isso, parece surreal o jogo de cena dos negociadores internacionais diante da dinâmica de destruição dos ecossistemas em curso. A cada reunião, decisões que poderiam fazer toda a diferença para o futuro do planeta são adiadas com manobras protelatórias pautadas pelos interesses econômicos. Os impasses não permitem às convenções avançar nos temas mais sensíveis e críticos para a conservação e o desenvolvimento sustentável.
Em quase todos os acordos internacionais relativos ao meio ambiente as negociações estão travadas. O exemplo mais recente foi a dificuldade de chegar a resultados mais significativos na reunião da Convenção de Mudanças Climáticas, em dezembro do ano passado, em Copenhague. Na CDB, o nó está nos mecanismos de acesso e repartição de benefícios [2].
[2] Procedimentos para acessar recursos genéticos da biodiversidade e repartir os benefícios advindos do uso desses recursos.
A situação se repete também nos processos nacionais, como é o caso no Brasil da regulamentação do acesso aos recursos genéticos. A Medida Provisória em vigor é insuficiente para a promoção do uso sustentável da biodiversidade com a devida repartição de benefícios associados ao seu uso, enquanto a polêmica dentro do próprio governo impede o aprimoramento da legislação e das políticas. A ausência de definições no âmbito internacional prejudica a implementação dos objetivos das convenções e torna ainda mais difícil o debate nacional.
Tal ausência de definições formais, no entanto, não extingue a urgência de ações de conservação, as necessidades das comunidades, o interesse das empresas. É nessa lacuna que se tornam relevantes os inúmeros fóruns de discussão entre empresas e sociedade civil, em busca de melhores práticas produtivas. Esses espaços constituem oportunidades para um maior entendimento entre as partes, e a proposição de soluções para os problemas concretos. Ali são discutidos objetivos, parâmetros e salvaguardas que têm o potencial de contribuir significativamente para a superação de dilemmas que vão além de casos específicos. Mas nem sempre esses processos conseguem potencializar sua ação, produzindo consensos e propostas direcionadas aos processos formais de regulamentação.
Espaços de debate como o propiciado pelo Fórum Amazônia Sustentável, por exemplo, podem ser bastante efetivos no engajamento das empresas em iniciativas que vão além da responsabilidade socioambiental. O diálogo continuado entre os diferentes segmentos é fundamental para a superação dos impasses existentes.
O crescimento desses fóruns e mesas de diálogo, entretanto, guarda uma contradição. Eles crescem na lacuna dos regulamentos e consensos no âmbito dos acordos internacionais e das legislações nacionais. Servem de espaço de diferenciação de quem deles participa, dando visibilidade pública ao engajamento das empresas, configurando, muitas vezes, estratégia de marketing verde. Estabelece-se, assim, um circulo vicioso no qual a não decisão nas instâncias devidas pode favorecer ganhos em fóruns multissetoriais específicos.
Trata-se de um dos grandes desafios para a governança ambiental. A existência de espaços de discussão setorial não torna inócuos os acordos internacionais em matéria ambiental, ao contrário, deve servir como processos de amadurecimento para que as convenções avancem no sentido de decisões que reflitam as demandas e possibilidades concretas.
A simples existência desse diálogo entre empresas, organizações da sociedade civil e comunidades é um dos grandes avanços da virada do século. A questão é garantir efetividade por meio de compromissos concretos que reflitam também na atuação política dos mesmos segmentos. Só assim o diálogo fará a diferença, inspirando políticas públicas que mostrem verdadeiro compromisso com a sustentabilidade.
* Secretária-executiva adjunta do Instituto Socioambiental (ISA).