Em visita a Carajás, conversamos com quem chegou ali na aventura da busca do próprio pedaço de chão e fez da Amazônia o seu bem mais precioso
Já passava das seis da tarde, quando Francisco Barbosa Carvalho pisou pela primeira vez na terra que lhe havia sido oferecida por um grileiro de Curionópolis, cidade próxima a Carajás. Estava acompanhado por mais quatro companheiros que, como ele, andaram dois dias mata adentro para conhecer a nova terra. Começava ali mais um episódio da história de ocupação da Amazônia no Brasil.
Quase 30 anos se passaram e as coisas parecem bem diferentes. O matão mudou de nome, agora é “Área de Proteção Ambiental do Igarapé Gelado”, e Francisco virou “Seu Chiquinho da APA”. A “APA do Gelado”, como os moradores fazem questão de encurtar, faz divisa ao sul com a Floresta Nacional de Carajás, concedida à Vale para exploração mineral.
Seu Chiquinho é mais um personagem entre os muitos que migraram para a Amazônia nas décadas de 70 e 80 na busca de melhores condições de vida (mais sobre migração na reportagem “Caravana sem fim”, da edição 39 de Página22). Embora a corrida do ouro fosse a razão mais comum para os que ali se aventuravam, não foi isso que o levou a Curionópolis. Em seu estado natal, o Maranhão, Seu Chiquinho foi expulso da terra onde trabalhava por fazendeiros da região. Juntou, então, família e tudo o que podia carregar e caiu na estrada, sem muito saber para onde ir. “Pensei: vou sumir no mundo até achar uma terra só pra mim”, conta.
Foi parar em Curionópolis, no começo dos anos 80, quando a descoberta de ouro em Serra Pelada, a poucos quilômetros, tornou o distrito famoso pela possibilidade do enriquecimento. Foi aí que ele conheceu o tal grileiro. “Ele me falou que tinha uma terra a uns 100 km de lá [Curionópolis], que não era de ninguém e que podia ser nossa. Então partimos”.
Isolamento
O acesso era bastante complicado. Para chegar à terra prometida, acompanhavam a ferrovia (a Estrada de Ferro Carajás, que liga Carajás ao porto de São Luís) até o ponto onde embrenhavam mata adentro, vegetação fechada, cujo único sinal da presença humana eram algumas poucas indicações deixadas por garimpeiros que se aventuravam pelo local. Mas em certos pontos era necessária a ajuda da foice e do facão a fim de reforçar o caminho.
Para fazer a travessia, Seu Chiquinho não dispensava o uso do “remanchinho”, espécie de mochila feita com cipó e que chegava a comportar, como conta, até 60 kg de tralhas. Foi no remanchinho que carregou a filha de três anos para a nova terra, dois anos depois da data de chegada.
Só levou a família depois de construir casa e plantar milho, arroz e feijão. Até a primeira colheita da roça, para comer o jeito foi caçar animais na mata, pescar e racionar o pouco que conseguia trazer no remanchinho, após visitar a família em Curionópolis.
Depois de Seu Chiquinho, chegaram à região dezenas de outros agricultores, que se distribuíram em lotes de até 80 hectares. Seis meses depois, seguranças da então Companhia Vale do Rio Doce – à epoca, de controle estatal –, descobriram os lotes. O governo foi acionado e os agricultores, diante de pressões para saírem das terras, conseguiram se mobilizar e formar um grupo com mais de 170 pessoas. “Quando os caras do governo viram todo aquele povo junto, ficaram mais mansos com a gente”, revela. A partir daí, as negociações começaram a fluir com mais facilidade.
Grande parte dos lotes foi regularizada ao longo dos últimos anos. Em 1989, o local se tornou Área de Proteção Ambiental, o que ajudou, segundo Seu Chiquinho, a melhorar a infraestrutura da região, principalmente em relação às estradas. Agora é possível chegar até lá de carro ou ônibus.
APA hoje
Entre as atividade agrícolas da APA do Gelado, destaca-se o cultivo de milho, feijão, arroz e frutas, como o açaí e o maracujá. Seu Chiquinho garante que a terra é bastante fértil, sem necessidade de uso de adubo químico ou calcário. “Faz 12 anos que planto melancia numa área só. A cada ano ela fica melhor”, orgulha-se.
Tudo que o agricultor planta ocupa menos de 5 de seus 75 hectares de terras. O restante está preservado em mata nativa, cerca de 90% da propriedade – na Amazônia, o mínimo legal é de 80%. Seu Chiquinho diz que não sabe por que, mas se sente parte da mata; por isso, não a põe abaixo.
Apesar do bom exemplo, o agricultor conta que muitos dos colegas acabaram com quase toda a formação florestal de seus lotes, a maioria para se aventurar na pecuária. “Muitos companheiros me chamavam de preguiçoso. ‘Por que que tu não derruba e planta capim?’ Mas eu disse: ‘um dia eu preciso dessa reserva’”.
Questionado sobre a possibilidade de pagamento pela floresta em pé – em referência ao REDD (Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação) –, o agricultor se anima com o rumo da conversa. Diz que já ouviu falar sobre o serviço e acredita que essa seria uma boa alternativa para os que pensam em desmatar. “Aí eu duvido que um colono iria derrubar uma linha de mato”, completa.
Seu Chiquinho só não acredita na rapidez de implantação do serviço. Segundo ele, desde que a área se tornou protegida pelo governo, vários projetos foram trazidos para a região, mas poucos conseguiram engrenar.
Projetos
O que tem movimentado bastante a vida de Seu Chiquinho e da comunidade da APA nos últimos meses é a implantação de uma escola técnica no local para dar assistência aos produtores rurais. O projeto é uma parceria entre a Fundação Vale, a Prefeitura de Parauapebas, o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), a Associação dos Produtores Rurais da APA e a Associação Filhas da Terra.
Entre as principais atividades do projeto está o incentivo à bovinocultura leiteira. Cada produtor (53 no total) recebeu sete cabeças de gado para desenvolver a cultura a partir do sistema de pasto rotacionado. Eles receberão ainda uma estrutura para ordenha e cerca elétrica para confinar os animais, tudo a ser pago com os resultados das primeiras vendas.
Uma das intenções do projeto é aumentar a produtividade da pecuária local, cuja média não ultrapassa um animal por hectare. “Atualmente, o projeto está trabalhando com o valor de 3,3, mas o objetivo é chegar a 6 animais por hectare”, afirma Rogério Gomes, coordenador do setor produtivo da Estação Conhecimento da APA do Gelado, nome dado ao projeto.
Alguns produtores, como Seu Chiquinho, lamentam, porém, que a pecuária tenha sido a prioridade do projeto. Segundo ele, muitos dos colegas preferiam a plantação de frutas, pois é algo com que tinham mais familiaridade. Além disso, ele alerta para o risco de que a produção de leite acabe incentivando produtores a desmatarem suas propriedades, caso a venda do produto comece a alcançar bons rendimentos.
Mais pecuária
Perguntado sobre a prioridade à pecuária, Gomes afirmou que foi feito um levantamento inicial com os produtores, cujo resultado final apontou uma maior porcentagem de interessados em produzir leite. “O Silvio Vaz, presidente da Fundação Vale, idealizou esse projeto porque é produtor rural, gosta da atividade e quer melhorar a qualidade de vida do produtor”, diz Gomes. Vaz é pecuarista nos estados de São Paulo e Goiás.
A Fundação Vale ainda pretende levar projetos de produção leiteira para Ourilândia do Norte e pecuária de corte para Canaã dos Carajás, ambos municípios da região.
*O repórter viajou a convite da Vale.