Um amigo playboy me levou ao cinema na sua Mercedes prateada conversível, anos atrás. Quando voltamos ao estacionamento, não tive dúvidas e me encaminhei para um Corcel cinza caindo aos pedaços. Ele, naturalmente, quase cortou os pulsos.
Eu passei a minha vida ignorando carros e sendo ignorada por eles. Faz 25 anos que tirei minha carteira de motorista, mas ela não foi usada uma única vez desde então. Sou uma avis rara, mas nem tanto.
Curiosamente, conheci duas jornalistas especializadas em indústria automobilística e mecânica de carros que nunca dirigiram. Talvez tivessem medo de perder a objetividade.
Motivos não me faltaram para evitar o volante: consciência do impacto ambiental do carro, histórico familiar de acidentes cabeludos, desejo de economizar uns cobres, vontade de fugir à norma, necessidade de exercício. Todas essas justificativas se aplicam no meu caso, mas a razão decisiva foi outra. Andar sempre representou uma terapia gratuita, uma oportunidade de espairecer, fazer planos e conversar comigo mesma e, ao mesmo tempo, de interagir com a cidade de forma direta, táctil. Bom, isso e o medo de dirigir.
Graças a esse hábito – melhor dizendo, essa decisão -, conheci lugares que os motorizados ignoram. Quem dirige geralmente vai de um ponto ao outro e olhe lá. No máximo, perambulam num raio de um ou dois quarteirões além do seu destino.
O pedestre e o ciclista estão expostos a um volume muito maior de informação urbana. Aprendem onde estão os (raríssimos) banheiros públicos do seu trajeto. Descobrem os melhores botecos, o pequeno comércio, as calçadas excessivamente esburacadas, as amoreiras.
O usuário de transportes públicos, por sua vez, entra em contato com uma fatia do Brasil Real invisível aos motoristas. Dentro de ônibus e trens, vi de tudo. Paraplégicos que enfrentavam quatro conduções diárias para trabalhar, briga por política ou futebol, muito flerte, muita conversa fiada. Mas as minhas histórias são fichinha perto das experiências do meu amigo Raimundo Oliveira, freguês frequente de coletivos e colecionador de causos.
Ele já teve de encarar um grupo que cantava em coro um pagode religioso, com o tocador de CDs no último volume. Noutro episódio, foi chamado de cavalo do demo por um pregador e teve de encarar uma sessão de exorcismo indesejada. Também foi abordado por um pedinte que teria nascido com dois fígados: “senhores passageiros, cês já me conhece, eu moro no jardim Rosana, que fica depois do terminal Santo Amaro, depois do Terminal Capelinha, depois de tudo e estou pedindo porque perdi um figu e só fiquei com um”, descreve ele.
Se eu sinto falta de carro? Francamente, não. Eu me virei sem ele em pelo menos 30 países, sem maiores escoriações. E olha que abusei. Para desespero dos meus pais, andei muito por São Paulo a altas horas, com a bolsa cruzada no peito, por vias das dúvidas. Pior: atravessei correndo o Cairo sozinha, mochila nas costas, às quatro da manhã, para embarcar numa excursão do outro lado da cidade. Chamar táxi e ficar sozinha com um homem num país muçulmano, nem pensar. Meia dúzia de criaturas da noite me perseguiram no trajeto, mas eu sempre fui mais rápida que os meus admiradores.
Claro, o pedestre convicto tem que seguir algumas regras. Tem que redobrar a atenção em certos bairros e horários. Tem que ter saúde para encarar uma condução lotada (metade das viagens que fiz no auge da minha gravidez foram de pé. Os garotos sentados fingiam que não viam meu olhar pidão). Quem não tem carro tem que fazer pesquisa de itinerário. Tem que abrir mão de certos programas muito fora de mão e tentar agrupar compromissos numa mesma região. E, num mundo perfeito, tem que escolher uma cidade compatível com a sua opção.
Vejam vocês: eu vivi em duas metrópoles, São Paulo e Paris. Na primeira o meu arranjo deu certo porque consegui concentrar minha vida numa área restrita da cidade, baseada no traçado do metrô e umas poucas linhas de ônibus. Claro, se você pode se dar ao luxo de viver a menos de três quilômetros do seu trabalho, andar é moleza.
Infelizmente, poucos têm essa opção. Em Paris e em muitas outras cidades européias, os pedestres geralmente não enfrentam dificuldade, mesmo que morem em cidades periféricas. Eu esbarrava numa estação de metrô ou trem a cada seis quarteirões. Aliás, os poucos conhecidos que tinham carro usavam apenas no fim de semana. Dificuldade maior encontrei aqui nos Estados Unidos – um país notório por abominar pedestres (como ilustrei em artigo do ano passado, Só no Sapatinho).
Moro numa cidade de apenas 70 mil habitantes, com invernos difíceis e a meia distância entre o nada e lugar nenhum. Até dez anos atrás, não havia nenhuma linha de ônibus urbanos. Hoje a prefeitura de Santa Fe oferece meia dúzia de linhas, mas elas têm poucos carros, não circulam à noite e, em alguns casos, nem nos fins de semana. Só me dou bem na empreitada porque minha casa fica num bairro razoavelmente central e bem servido por serviços. Vou resistir enquanto puder, mas estou preocupada. Minha filha completa quatro anos esta semana e, do jeito como come, já não cabe mais no carrinho. Vou ter que ensinar a garota a andar como gente grande.