Combinar a espontaneidade dos afetos com a civilidade ética parece ser o grande desafio brasileiro. É das dinâmicas populares que esse outro modelo pode emergir, subvertendo ideias eurocêntricas de modernidade e atraso
Abre a cortina do passado e mostra a tua cara! Esquentai vossos pandeiros e iluminai os terreiros! Grande pátria desimportante, isto aqui, ô ô, é um pouquinho de Brasil, iá iá. Eu fui à Penha e pedi à Padroeira para me ajudar. Será que ela vai continuar uma tradição? Será que ela quer modificar uma geração? Lá vem ela! Miss Brasil 2000!
O Brasil que vem lá é 2011. Nesta nova década, sob novo mandato de governo, o País em relativa transformação depara-se com as armadilhas que os próprios conceitos de modernidade e atraso encerram. Que cara vai mostrar? Que novidade vem trazer? Qualquer mergulho na discussão sobre identidade nacional em uma sociedade culturalmente múltipla como a brasileira é como ser navegado pelo mar, sem cabelos que a gente possa agarrar [1].
Mas vale o esforço de aqui buscar a identificação. Ao menos, descobrimos a importância da identidade: sem ela, perde-se a noção de pertencimento e se deixa de se sentir como uma parte de um todo. “Identidade não são laços que prendem ou cerceiam, mas, sim, elos e pontes que unem”, explica a escritora e doutora em História Márcia Camargos. O que torna um povo coeso, já diziam outros autores, é tudo o que ele recorda e comemora em conjunto. Sem valores ou referências para lembrar, o indivíduo nada tem a perder – e nem a ganhar. Identidade faz com que o outro seja importante para você, e você para o outro.
[1] Os dois primeiros parágrafos contêm trechos adaptados das letras Isto aqui, o que é? (Ary Barroso), Brasil Pandeiro (Assis Valente), Brasil (Cazuza, Nilo Romero e George Israel), Miss Brasil 2000 (Rita Lee e Lee Marcucci) e Timoneiro (Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho). No título, Sampa (Caetano Veloso).
“Quanto mais certo de sua identidade – quem é, onde está e a que pertence, – menor a possibilidade de se sentir ameaçado pelo que é diferente.” Márcia diz isso especialmente tocada após uma rápida passagem por Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.
Um lugar que ela interpreta como erigido sem qualquer noção de pertencimento. Que ergueu uma enormidade de monumentos artificiais à riqueza, ao mesmo tempo que desprezava saberes ancestrais árabes, beduínos. Tenta ser palatável ao Ocidente, hipervalorizando os aspectos mais epidérmicos, superficiais, e não pelo respeito a valores humanos. Ela relata, por exemplo, que os trabalhadores estrangeiros atraídos pelos empregos em Dubai têm ordem expressa de deixar o emirado assim que são demitidos. Não se aceita a presença de desempregados. E as mulheres ainda são perseguidas dentro de uma visão estreita do islamismo.
Ao cruzar as ruas que separam os edifícios climatizados de Dubai, Márcia reparou na areia do deserto que escapava pelas frestas do asfalto, como se tentasse, grão por grão, devolver algum traço de identidade àquele lugar. Secretamente, ela torce para que a areia um dia cubra o que considera uma excrescência da civilização. Será Dubai apenas uma caricatura dos tempos ocidentais modernos?
O afeto
Cultivar mais o laço empregatício do que o humano, definindo as pessoas pela função e utilidade, não é uma exclusividade de lá. Nas regiões Sul e Sudeste brasileiras, o nordestino também costuma ser bem-vindo enquanto mão de obra barata. O mesmo vale para imigrantes árabes, turcos, africanos e indianos em muitos países europeus, em manifestações de maior ou menor grau da xenofobia, do preconceito, da intolerância. (mais em “Tolerante? Feliz? Confiável?” ao final desta reportagem)
– Respeitem meus cabelos, brancos – pede o compositor paraibano Chico César, que fez esta música em defesa das particularidades humanas – Se eu quero pixaim, deixa,/ se eu quero assanhar, deixa./ Cabelo veio da África,/ junto com meus santos.
Respeito? Tolerância? “Não quero tolerar ninguém. Quero é sentir a alegria da diferença. Quero amar o diferente”, provoca Carlos Walter Porto-Gonçalves, professor de pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense, e autor do livro A Globalização da Natureza e a Natureza da Globalização.
Gilberto Gil, em entrevista nesta edição, fala de um José de Anchieta que amou o diferente e colocou os índios no colo, em um momento fundador da sociedade brasileira. A colunista Daniela Gomes Pinto discorre sobre a turma de faculdade que escancarava suas diferenças pessoais e se curtia assim.
Quando veio morar no Brasil, a professora nascida na Suíça Liv Sovik, da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ficou admirada com a expansividade, com a capacidade comunicativa e afetiva dos brasileiros em geral. “Quando se gosta, há um entusiasmo, uma entrega. O brasileiro se conecta mesmo com seu interlocutor.” Para ela, o preconceito e o racismo que aqui se manifestam com força denotam, ainda que pelo lado ruim, uma consciência da presença do outro, em vez de simplesmente ignorá-lo. “Aqui, é impossível sair de casa sem interagir de alguma forma com alguém”, observa Liv.
Partilhe-se ou não dessa opinião, o jeito caloroso do brasileiro é visto como uma grande contribuição para um mundo que corre o risco de estabelecer relações frias, impessoais, guiadas pela assepsia do politicamente correto.
Para o economista Eduardo Giannetti da Fonseca, apesar de toda a precariedade material e das condições objetivas de vida, as pessoas no Brasil não se rendem, e preservam uma certa vitalidade e espontaneidade dos afetos. “É o que (o filósofo Jean-Jacques) Rousseau chamava de ‘o doce sentimento da existência'”, diz o professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper).
A civilidade
Mas esse brasileirismo tem o seu lado B, pondera Giannetti. É justamente a preponderância do vínculo pessoal e afetivo que torna as leis no Brasil tão frágeis na prática. Por isso ele considera como grande utopia brasileira preservar o vigor dos afetos e essa espontaneidade do sentimento e da cordialidade – no sentido original desenvolvido por Sérgio Buarque de Holanda [3] -, ao mesmo tempo que se alcança um padrão razoavelmente civilizado de convivência, baseado em normas, leis, e respeito de base ética.
[3] Para o historiador, o homem cordial é aquele que se move fundamentalmente pela paixão do coração (do latim cordis), ou seja, abraça tanto a doçura como a raiva – como atenta Porto- Gonçalves. Assim, a violência do nosso cotidiano tem muito a ver com isso.
– Freud dizia que a civilização acarreta o mal-estar. O risco do Brasil é ficar com o mal-estar e sem a civilização, ou seja, perdem-se a inocência e o vigor e não se obtém a prosperidade. Mas acho que estamos nos salvando de combinar o pior dos dois mundos – diz Giannetti.
As razões para acreditar nisso são de que o Brasil, segundo ele, está vivendo um momento de grande confiança em relação a seu futuro, como há muito tempo não se via: o País passou relativamente bem por uma forte crise financeira mundial, com redução da desigualdade e melhoria real do emprego e da renda. A participação do cidadão nas urnas também é crescente, fortalecendo, de certa forma, a democracia.
Isso gera dois questionamentos. O primeiro é o risco de que as recentes conquistas levem a uma complacência, uma fé cega de que tudo, a partir de agora, vai se resolver. O embaixador Rubens Ricupero, diretor da Faculdade de Economia da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), teme cantar-se vitória antes do tempo. Ele lembra que a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), da qual foi secretário-geral, só considera êxito econômico o de países que crescem ininterruptamente, a taxas robustas, por dez, quinze anos ou mais. É o caso de países asiáticos e, na América Latina, apenas do Chile.
O risco é ainda maior quando vem um elemento adicional, que é a expectativa de ganhos com o pré-sal, avalia Giannetti. “A ‘maldição do petróleo’ [4] existe, é só cair na mão de um governo populista que queira usá-lo para se perpetuar no poder”, afirma.
[4] A maldição significa que a riqueza trazida pelo petróleo acaba por desestimular o desenvolvimento de um país ou região.
A transformação dos traços
O segundo questionamento a que se refere Ricupero é saber até que ponto as melhorias no âmbito econômico e material são capazes de contribuir para transformações efetivas na sociedade, no que se refere a valores humanos, em oposição a um terrível traço fundador, que foi a exploração da colônia sob os auspícios da escravidão.
– Essa é a nossa verdadeira herança maldita. O Brasil foi, por excelência, o país da escravidão, chocando-se com os valores da época e com os próprios ideais de pregação dos jesuítas – diz o embaixador.
Assim, o Brasil do afeto era o mesmo das chibatadas, fundando, quem sabe aí, o contraditório que veio caracterizar tão fortemente este país desde o começo da sua história. O Brasil é o homem que tem sede/ Ou o que vive da seca no sertão?/ Ou será que o Brasil dos dois é o mesmo/ O que vai é o que vem na contramão? (A Cara do Brasil, de Vicente Barreto e Celso Viáfora).
Em razão disso, a luta contra a desigualdade precisa ser o grande valor a ser trabalhado pelo brasileiro, na visão de Ricupero. Essa luta vem no contexto de quatro “ideias-força” que ajudam a definir o que é o progresso humano: a dos direitos humanos, a do meio ambiente, a da igualdade de gênero, e a do desenvolvimento. “Esta última o papa Paulo VI definiu muito bem como ‘a promoção de todos os homens e a promoção do homem como um todo’.”
Na direção dessa busca de integridade, o que a inclusão social pelo consumo e pelo assistencialismo – que parece ser a tônica do próximo mandato presidencial – pode trazer? Após décadas de demanda reprimida, as classes sociais mais baixas ascendem ao mundo das compras, do transporte aéreo [5], do turismo, enquanto as indigentes superam a linha de miséria.
Para Márcia Camargos, a movimentação econômica, qualquer que seja, permite às pessoas adquirirem maior consciência da realidade que as cerca, facilitando o seu processo de transformação em cidadãos que vão reivindicar melhorias na saúde, no transporte, na educação [6], e assim por diante. “Poder de compra e mobilidade social dão sentido de cidadania.”
[5] Segundo o Instituto Data Popular, especializado em pesquisas de consumo das classes C, D e E, entre julho passado e julho do ano que vem 8,7 milhões de pessoas no Brasil terão feito a sua primeira viagem de avião.
Diferenciar consumo de consumismo é, portanto, crucial. “Nem tudo o que é consumo e investimento em infraestrutura é ruim”, ressalta José Augusto Pádua, professor do Departamento de História da UFRJ, lembrando que são elementos importantes das pernas econômica e social da sustentabilidade.
[6] Também de acordo com o Data Popular, as classes C e D já respondiam por 72,4% dos estudantes universitários em 2009. Em 2002, a participação desses estratos sociais era de 45,3%.
A preocupação é que o consumo resvale facilmente no consumismo. O geógrafo Milton Santos, em Por Uma Outra Globalização, foi feroz no seu entendimento da expressão. Escreveu que consumismo e competitividade levam ao emagrecimento moral e intelectual da pessoa, à redução da personalidade e da visão do mundo, convidando, também, a esquecer a oposição fundamental entre a figura do consumidor e a do cidadão, o sujeito esclarecido que cobra melhoras na sociedade.
Na sequência, o geógrafo ressalvou que no Brasil essa oposição entre o consumidor e o cidadão é menos sentida. Mas isso porque as classes chamadas superiores, incluindo as médias, foram condicionadas a querer privilégios, e não direitos. “Estas jamais quiseram ser cidadãs. E as pobres nunca puderam.”
Estudioso da obra de Santos, Wagner Costa Ribeiro, professor do Departamento de Geografia e coordenador do Grupo de Pesquisa em Ciências Ambientais do Instituto de Estudos Avançados, da USP, critica o desenvolvimento centrado não na realização do indivíduo e na obra que constrói em sua vida, mas apenas na acumulação de riqueza, que começou com geladeira, televisão, fogão e celular. “Não sei se a meta agora é incluir o carro nessa ‘cesta básica’. Esse ciclo de consumo não vai se sustentar. O carro, para começar, não cabe na favela.” Depois, não dá para todos os habitantes do mundo terem um carro, não há planeta suficiente para isso.
Em vez de todos se renderem à sedução do automóvel como objeto de consumo, a luta não deveria ser por transporte e moradia de qualidade? Mas como exigir esse tipo de sacrifício das classes emergentes, quando as favorecidas há tempos se beneficiam do modelo consumista e individualista? Poder ter ou não um carro, viajar ou não de avião – os dilemmas são desdobramentos de uma questão anterior: o significado do próprio conceito de modernidade e progresso.
Outra proposta
Quando pergunTamos ao professor Porto-Gonçalves sobre modernidade e atraso no Brasil, ele atenta para o problema que a própria pergunta contém. Que referencial de modernidade estamos usando? O moderno-desenvolvimentismo europeu e estadunidense, que resultou em um modelo fracassado de bem-estar e de bem viver? De que civilidade estamos falando? Ele se lembra do filósofo e sociólogo Theodor Adorno, para quem toda civilização é um ato de barbárie.
De fato, é um modelo que apartou o homem da natureza, que se alimentou da exploração predatória dos recursos naturais – distribuídos de forma absolutamente desigual [7] -, e colocou o homem a serviço da acumulação de riquezas. Há também uma desorganização social: a sociedade está basicamente dividida entre pessoas desesperadas em busca de trabalho para sobreviver e pessoas exaustas por trabalhar em excesso. Apesar de toda a evolução tecnocientífica, trabalha-se tanto como no início da Revolução Industrial (mais na edição 38 de Página22, sobre o Tempo).
[7] Segundo a ONU, 20% dos mais ricos consomem 84% da matéria e energia transformadas anualmente no mundo.
– Vejo tudo isso como uma crise que não é só do capitalismo: é uma crise civilizatória – diz Porto-Gonçalves, – ainda assim, há cinco séculos, o Brasil segue esse exemplo de modernidade que tem levado o planeta ao colapso e as pessoas à infelicidade.
Um dia eu quero ser índio/ viver pelado pintado de verde/ num eterno domingo, cantava Rita Lee em Baila Comigo. Sintomático que a busca de um bem viver aflore com força pelas brechas do cotidiano. Chega o final da semana e as pessoas logo esquecem o cansaço do trabalho para viver seu domingo. Um certo resgate da identidade ancestral vem na forma do trekking na mata, da tanga à beira-mar, do encontro da tribo em volta do fogo no churrasco com os amigos, do banho de rio, do banho de sol. Já na segunda-feira, engravatam o primitivo e retomam seu dia a dia “moderno” – observa Porto-Gonçalves.
O professor logo esclarece que não quer virar um Yanomami. Deseja, sim, um modelo capaz de trazer um novo sentido de felicidade, um novo sentido para o bem viver, com justiça social e justiça ambiental.
Talvez isso seja o mais inovador. Não precisamos repetir nem mesmo o modelo das sociedades consideradas mais “evoluídas”. “Quem disse que queremos ser uma Escandinávia?”, pergunta Giannetti. Ainda mais considerando-se que a abordagem sobre o moderno e o arcaico é imposta pelo modelo dominante, como afirma Giuseppe Cocco, professor titular na Escola de Comunicação da UFRJ e autor do livro MundoBraz: o Devir Mundo do Brasil e o Devir Brasil do Mundo. “A grande chance que o Brasil tem hoje é de ir além dessa dicotomia, construindo e inventando a sua inserção no mundo e a inserção do mundo dentro dele”, defende.
Outro poder
Quando perguntado sobre a possibilidade de transformação dos traços fundadores, Cocco responde que estes são sempre mutáveis e que hoje em dia essa renovação está cada vez mais aberta a movimentos capazes de constituir novos sentidos. “Acho que a figura central disso é a do pobre. Se pensar que o capitalismo neoliberal organizado em rede explorou os pobres como tais, hoje, por outro lado, vemos que os pobres se organizam dentro de uma nova ordem, renovando os fundamentos.”
O que nos remete de novo a Milton Santos, em Por Uma Outra Globalização. Lá ele escreveu sobre a potência dos pobres na produção do presente e do futuro, subvertendo a ordem hegemônica. Isso porque “os pobres não se entregam”. A cada dia descobrem formas inéditas de trabalho e luta diante das dificuldades. “Nessa condição de alerta permanente, não têm repouso intelectual. A herança do passado é temperada pelo sentimento de urgência, essa consciência do novo que é, também, um motor do conhecimento.”
Além do caráter inovador dessa inversão de forças, as dinâmicas sociais populares teriam, no Brasil, um valor estratégico devido à sua multiplicidade, à sua diversidade, à sua “dinâmica da diferença”, para usar uma expressão de Cocco.
A descrição de uma cena no Rio de Janeiro por uma mulher francesa do século XIX dá elementos para discutir como essas forças “de baixo” são poderosas o suficiente para afetar as “de cima”. Liv Sovik, da UFRJ, em seus estudos sobre a relação do brasileiro com o corpo, deparou-se com o relato de Adèle Toussaint-Samson, que entre 1849 e 1870 morou no Rio e publicou Uma parisiense no Brasil.
Ao escrever sobre as negras Mina (originárias de etnias Mina do Benin e do Togo, na África Ocidental) – que, ornadas dos mais belos enfeites, “acocoravam-se” na Rua Direita -, Adèle destila seu racismo, mas com uma ponta de ciúmes, contra aquelas negras de “enorme boca de lábios bestiais” que muitos homens estrangeiros achavam belas e por elas faziam loucuras.
O que mais chama a atenção de Liv é a admiração de Adèle pelo andar desembaraçado e altivo das negras. “O que têm de pouco vulgar é o andar. Elas caminham de cabeça erguida, o busto muito saliente, a cintura arqueada, os braços em equilíbrio, sustentando sua carga de frutas, sempre colocada sobre a cabeça.”
Liv buscou entender por que o corpo se tornou para o brasileiro um elemento de valor, de autoestima, de um estarno- mundo de forma altiva – o corpo como um domínio, como um território. O gingado das negras, sustenta a professora, foi de certa forma assimilado pelas mulheres das elites no Brasil, como uma forma de libertação feminina. Para as mulheres brancas, cobertas de roupas das cabeças aos pés, infantilizadas, mantidas em casa e sempre acompanhadas nas ruas por criados, era de invejar as negras de finas blusas abertas, andando com desenvoltura ao ar livre, sem o jugo patriarcal, libertas sexualmente.
As oportunidades
Nesse processo de “empoderamento das bases”, o jogo estratégico do Brasil emergente na geopolítica passa necessariamente por seu corpo: o imenso território tropical. “Todos os Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) possuem extensos territórios, mas só o brasileiro é tropical”, observa Pádua, da UFRJ.
E essa tropicalidade, antes vista pelo mundo apenas como exótica e determinante do atraso socioeconômico, já ganhou novos e melhores significados, na visão do professor. As ressignificações vêm por meio do reconhecimento mundial da importância da biodiversidade – tema que só ganhou visibilidade há poucas décadas -, das bacias hidrológicas e da alta capacidade de renovação da biomassa nos trópicos, como o eucalipto e a cana-de-açúcar.
O caso do etanol, inclusive, é citado por Wagner Costa Ribeiro, da USP, como o exemplo dessa inversão de forças: em meio à demanda de escala mundial que é a produção de automóveis, surge um elemento local que interfere no global, inclusive no âmbito da mudança climática.
A partir desse novo sentido de tropicalidade, Eduardo Giannetti considera que meio ambiente e capital humano são os dois vetores estratégicos brasileiros por excelência. Eles, até mesmo, alimentam-se mutuamente, pois a educação e a formação de competências levam à melhor gestão do meio ambiente. E as boas condições ambientais são vitais para a educação – a começar do saneamento [8], que tem reflexos no desenvolvimento de um país maiores do que se imaginava.
[8] Doenças parasitárias ou infecciosas na primeira infância afetam a formação do cérebro, gerando déficits cognitivos permanentes.
Uma enorme janela que se abre para o Brasil é a demográfica, lembra o economista. Serão duas décadas com oportunidades de ouro para o País: a queda na natalidade permitirá aumentar o investimento humano per capita. Haverá mais jovens e adultos trabalhando para sustentar crianças e idosos. “E também um amadurecimento da sociedade à medida que o tom geral não será dado de forma tão marcante pelo jovem.”
O crescimento demográfico desenfreado teve impactos profundos na sociedade. O Brasil simplesmente triplicou [9] a população em 45 anos e ainda houve um deslocamento brutal da população no território. “A gente não se dá conta da enormidade e dos efeitos que isso tem na vida brasileira, na urbanização, na educação, na saúde, no emprego. Não fizemos os investimentos para lidar com isso, o que gerou um caos.”
[9] De 1950 a 1995, a população passou de cerca de 50 milhões a 150 milhões de habitantes.
Mas a janela em breve se fecha. Depois virá o envelhecimento das populações, com outras problemáticas. Para se ter ideia, em 1980 havia cerca de nove pessoas trabalhando para sustentar um aposentado. Em 2050, essa relação vai despencar para 1,2. Como vamos nos organizar para isso?
Será um bom exercício do que Giannettichama de musculatura da espera. Sacrificar-se hoje para colher benefícios amanhã. Isso vale para educação, sustentabilidade, previdência (mais em “Trocas no tempo”, ao final desta reportagem).
“Poucas sociedades no mundo têm a capacidade de desfrutar intensamente o presente como a nossa. O futebol, o Carnaval, alegria de viver, o samba, a celebração dos afetos. Mas também poucas têm tanta dificuldade de agir no presente para construir o seu futuro.”
Tem uma marchinha que pede para deixar a festa acabar, deixar o barco correr, deixar o dia raiar, seja você quem for, seja o que Deus quiser (Noite dos Mascarados, Chico Buarque). E tem outro samba de Chico que, em tom de recolhimento à espera do dia libertador daqueles anos de chumbo, avisa: Tô me guardando pra quando o Carnaval chegar. Entre a amargura do sacrifício e o doce sentimento da existência, não é possível que não caiba um Brasil inteiro, de braços abertos e abraço redentor.
Acesse debate sobre os novos papéis dos países emergentes, pauta do Fórum Internacional Geopolítica da Cultura e da Tecnologia, realizado em São Paulo.
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Tolerante? Feliz? Confiável?
Volta e meia o noticiário relata casos de preconceito e intolerância – de jovens agredidos por homofobia em plena Avenida Paulista à estudante de Direito que tuitou mensagens conclamando morte aos nordestinos. Interessante que, no Brasil, 98% da população não se considera racista. Mas, quando se indaga à mesma amostra se há racismo no Brasil, mais de 90% respondem que sim.
Da mesma forma, a maioria não vê aqui um ambiente de confiança, mas se julga confiável. No quesito felicidade, mais de dois terços se julgam felizes, mas apenas 25% consideram o brasileiro feliz. Eduardo Giannetti da Fonseca passou a se perguntar qual é a verdade. No caso da felicidade, interpretou três cenários: ou a pessoa está errada no que diz sobre ela e certa no que diz sobre os outros, ou o contrário, ou está usando critérios diferentes para falar de si e para falar de outros. “Tendo a acreditar na terceira hipótese.”
Assim, quando pensa em si, o brasileiro considera o estado subjetivo, o próprio sentimento. Mas, quando pensa nos outros, considera o objetivo, pois o observa de fora. E vendo as condições objetivas em que a pessoa vive – moradia, emprego, transporte público, segurança – deduz que, daquele jeito, a pessoa não pode ser feliz.
Já no caso do racismo, Giannetticonsidera que se trata de autoengano. “Você tem olhos de lince para a sociedade, mas não é capaz de detectar o mesmo traço em si mesmo.” E cita François de La Rochefoucauld, filósofo francês do século XVII : “Cada um descobre nos outros as mesmas falhas que os outros descobrem nele.”
Trocas no tempo
É ponto pacífico que, sem educação, nada prospera. O estadista José Bonifácio já clamava por isso nos idos do século XVIII . O que explica, então, o atraso renitente do Brasil nesse ponto? (No Pisa, grande teste comparativo internacional de aprendizado, o Brasil fica sistematicamente nas últimas colocações entre 57 países. Vale notar que nas eleições de 2010, 53% do eleitorado não tinha o fundamental completo.)
Para Giannetti, a educação é um dos maiores exemplos do que chama de miopia temporal, ou seja, a baixa capacidade de fazer trocas no tempo: sacrifícios no presente em prol do futuro. Isso vale igualmente para a sustentabilidade (pensar nas gerações futuras) e para a previdência (poupar para o amanhã).
O economista tem uma hipótese para isso: a falta de suporte familiar para um projeto de vida. “No Brasil me preocupa a ausência da figura paterna. A mãe não dá conta da criação dos filhos sozinha e o vínculo afetivo fala mais alto. A musculatura da espera – suportar alguma frustração agora sabendo que vai ter um benefício futuro – é algo que depende muito da presença paterna. E normalmente é o pai quem exerce essa musculatura”, acredita.
Isso de forma alguma desmerece o papel da mãe, fundamental para evitar uma crise social maior que a existente, diz Porto- Gonçalves. Ao se desdobrar em múltiplas funções domésticas e profissionais, ela – que mais do que ninguém exerce sua musculatura de espera em nove meses de gravidez – é quem costura vínculos familiares e algum futuro nessa sociedade em que muitos atores masculinos buscam o aqui e agora.