Enquanto o respeito aos Direitos Humanos nas transações comerciais aos poucos entra na agenda de instituições e governos, a ONU estuda tratado sobre jurisdição extraterritorial para enquadrar empresas violadoras
A questão do respeito aos Direitos Humanos no acesso a mercados tornou-se uma preocupação proeminente na agenda internacional desde os anos 1990. A liberalização do comércio, as desregulamentações locais e as privatizações no mundo todo abriram caminho para as empresas operarem globalmente, e os impactos dessas operações nos Direitos Humanos acompanharam o ritmo veloz da expansão. Ainda que o comércio transnacional, especialmente em períodos de crise econômica global, não trate essa questão como uma prioridade e muitos vejam o risco de ser usada para alimentar o protecionismo, avanços têm se dado sobretudo no campo empresarial, como forma de acessar mercados e obter diferenciais competitivos. A História recente traz exemplos nesse sentido.
Em 2000, a Organização das Nações Unidas (ONU) lançou o Pacto Global, plataforma que conclama as empresas a adotar princípios universais e a ser parceiras das Nações Unidas de forma a promover e amplificar as contribuições positivas dos negócios para a sociedade. Em junho de 2011, o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou por consenso os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos elaborados pelo representante especial do secretário-geral das Nações Unidas, professor John Ruggie. O documento cou conhecido como Princípios Ruggie [1] . Em 2012, a ONU instituiu um fórum anual sobre empresas e Direitos Humanos, que ocorre em dezembro.
[1]Os 31 Princípios Ruggie, elaborados a partir de normas de Direitos Humanos preexistentes, sustentam-se em três pilares: proteger, que trata da obrigação dos Estados de resguardar os Direitos Humanos; respeitar, que aborda a responsabilidade das empresas quanto aos Direitos Humanos; e reparar, que dispõe sobre a necessidade de que existam recursos eficazes para a reparação dos danos, em caso de descumprimento desses direitos pelas empresas
Juana Kweitel, diretora de programas da ONG Conectas, com sede em São Paulo, afirma que os Princípios Ruggie mudaram o olhar sobre a questão da responsabilidade das empresas. “O documento inclui a prevenção, ou seja, sugere que a empresa tem de agir para prevenir os impactos negativos sobre os Direitos Humanos provocados por suas operações”, esclarece.
No documento, as empresas são solicitadas a respeitar, no mínimo, os direitos enunciados na Carta Internacional de Direitos Humanos e os princípios relativos aos direitos fundamentais estabelecidos na Declaração da Organização Internacional do Trabalho.
Segundo Juana, hoje o Conselho de Direitos Humanos da ONU discute um tratado de jurisdição extraterritorial para dar conta do tema. “Na abertura do Fórum sobre Empresas e Direitos Humanos, em 2012, o próprio Ruggie afirmou que maior clareza jurídica seria necessária, tanto para as vítimas como para as empresas, e que apenas um processo intergovernamental poderia fornecer essa clareza. O que parece indicar um tratado sobre o tema que seja mais claro sobre como as empresas podem ser julgadas por fatos em outros países. Não seria um novo tribunal internacional, mas aumentaria e deixaria mais clara a jurisdição das cortes nacionais”, relata.
ESFERA DE INFLUÊNCIA
O papel atribuído às diferentes instâncias na garantia do respeito aos Direitos Humanos no comércio internacional é um ponto-chave que vem ganhando espaço na discussão. “Existe entre as empresas o entendimento de que os Princípios Ruggie estão voltados para os Estados e que as corporações têm apenas a obrigação de respeitar. Respeitar, para as empresas, significa não violar, mas o que a gente entende é que elas têm uma responsabilidade maior em toda a sua esfera de influência”, afirma a advogada Flávia Scabin, professora da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas.
A compreensão de como o mercado global consegue impulsionar uma agenda de desenvolvimento local sustentável e justo é um tema relevante. E leva ao questionamento sobre como se cria um diálogo entre o setor negócios e o Estado na promoção do desenvolvimento, e também sobre os riscos que esses impulsos externos representam para os locais”, resume.
Para a professora, mecanismos já em operação demonstram o papel relevante do mercado como indutor de políticas, e do Estado como instância responsável pela fiscalização e regulamentação dessas ferramentas localmente.
Flávia cita três exemplos. O primeiro: recentemente, a União Europeia (UE) lançou uma diretiva segundo a qual qualquer produto comercializado na Europa que contenha princípios ativos da biodiversidade precisa ter sua rastreabilidade comprovada. E que sua produção deve se dar de acordo com as leis do país de origem. Ela se recorda de que tanto o Brasil como a UE são signatários da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB)
“A melhora que se espera no respeito aos Direitos Humanos ocorre mais com estímulo do que com castigo”, diz Ricupero
“Temos uma Medida Provisória desde 2001 regulamentando a aplicação dos princípios da CDB e que já traz alguns quesitos sobre como fazer contratos de repartição de benefícios com comunidades locais fornecedoras de bens e serviços. Mas a eficácia dessa MP é muito baixa, até por conta da fiscalização precária. Agora, quando o mercado, interessado na biodiversidade brasileira, força a iniciativa privada a produzir um dossiê provando que cumpriram a lei, essas empresas começam a provocar as instâncias nacionais”, acredita.
O segundo exemplo é a regulação privada transnacional – a popular certificação, que atesta determinadas qualidades do produto. “Hoje as normas de certificação são muito exigentes. O que nos leva a pensar nos riscos que se criam quando há mecanismos de fora impulsionando o desenvolvimento local por meio do mercado: o maior deles é a exclusão do pequeno proprietário. Muitos não se certificam, porque não conseguem cumprir os requisitos, ou não conseguem pagar pelo processo de certificação.”
Tal tipo de incentivo de fora para dentro é produtivo do ponto de vista do impacto e da criação de um nicho, mas tem de ser visto com muito cuidado, aponta Flávia. “Em um país desigual, tende a excluir. Daí a importância do papel do governo brasileiro, de construir políticas para fazer com que essas pessoas tenham acesso, ao menos mais igualitário, ao mercado.”
Em terceiro, a advogada cita os Princípios do Equador, referindo-se ao conjunto de regras lançadas em 2003 por dez grandes instituições financeiras, no âmbito da International Finance Corporation (IFC), para tratar a questão da concessão de crédito e dos princípios sociais e ambientais em mercados emergentes. “A força deles é que os bancos voluntariamente assinaram e passaram a pôr essas questões na agenda. Pois os Princípios de Ruggie não são vinculativos, mas apenas diretrizes cujo cumprimento não se consegue cobrar.”
Entretanto, embora os Princípios do Equador sejam uma importante ferramenta de mercado, os bancos não precisam prestar contas, e não há scalização sobre o cumprimento das normas. “O que existe é uma metodologia que divide o impacto empresarial em três grandes blocos. Dependendo do impacto, a empresa é mais exigida do ponto de vista de medidas socioambientais”, explica a advogada.
Flávia menciona, ainda, a norma ISO 26000, editada há dois anos. “É voluntária e não certificada. Funciona mais como orientação, que aborda questões de gênero, de proteção de crianças e adolescentes, ambientais, entre outras.”
OMC E PROTECIONISMO
Autora do livro Direito Internacional do Desenvolvimento Sustentável e a OMC (São Paulo: Quartier Latin, 2013), Ligia Maura Costa, professora da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV-Eaesp), analisou 423 disputas no âmbito da instituição no período de 1º de janeiro de 1995 até 31 de março de 2011. “Pouco mais de 10% eram casos em que a instituição foi chamada a se manifestar sobre sustentabilidade. Desse universo, apenas em um, que foi o caso dos asbestos (amianto), a Organização Mundial do Comércio (OMC) deu razão à UE, no sentido de reconhecer o direito do bloco a tomar uma providência para evitar a importação de amianto como medida de proteção à população”, afirma (ver quadro abaixo).
A história da OMC remonta a 1947, quando se estabeleceu o Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (Gatt) para reduzir tarifas, eliminar obstáculos nas atividades e facilitar os negócios de mercadorias. Com o passar dos anos, o acordo evoluiu em rodadas de negociações comerciais multilaterais. A OMC foi então lançada em Marrakesh em 1º de janeiro de 1995, após a conclusão da Rodada Uruguai do Gatt. Posteriormente, o Gatt deixou de existir e seus textos jurídicos foram incorporados à OMC, com o nome de “Gatt de 1994”
“Desde os tempos do Gatt, demonstrava-se uma preocupação com o meio ambiente. Mas, quando a OMC foi criada, nunca se conseguiu chegar a um acordo com relação a esse tema. Eu diria que mesmo o termo meio ambiente tem uma esfera reduzida, se comparado ao termo sustentabilidade, que englobaria, além demeio ambiente, também direitos humanos, trabalhistas, aspectos econômicos e sociais. Mas nunca se teve na OMC a possibilidade de um acordo que incluísse essas questões”, esclarece Ligia Maura.
A professora lembra que, há cerca de dez anos, a ONU estava passando por uma crise. “Foi na época da Guerra do Iraque, quando a instituição ficou um pouco desacreditada. Então, vários países começaram a trazer para a OMC matérias que teoricamente seriam muito mais relacionadas a Direitos Humanos do que efetivamente a comércio internacional. E, para todos os efeitos, em questões sobre sustentabilidade, mais abrangentes, a ONU seria o fórum mais adequado. Começaram a se questionar vários artigos da doutrina: será que a OMC pode cuidar de Direitos Humanos também?”
Segundo Ligia Maura, chegou-se à conclusão de que a OMC também não era o fórum adequado. “A OMC até pode proteger Direitos Humanos, desde que tenha havido qualquer violação a um dos seus acordos. Se qualquer matéria relacionada a direitos humanos ou trabalhistas estiver afetando o comércio internacional, a OMC pode eventualmente atuar. Mas não há um acordo específico sobre isso.”
O motivo é simples: os países em desenvolvimento temem que os países industrializados utilizem os Direitos Humanos como um pretexto para adotar uma nova forma de protecionismo. “A gente tem trabalho escravo na cidade de São Paulo, então, dá para entender por que os países menos desenvolvidos são totalmente contra”, diz.
No primeiro caso do gênero levado à OMC, que se tornou emblemático, os EUA proibiram as importações de camarões procedentes de quatro países asiáticos (Índia, Malásia, Paquistão e Tailândia), alegando que a forma como os camarões eram capturados prejudicava espécies ameaçadas de tartarugas marinhas. Os quatro países apresentaram uma reclamação à OMC sobre essa proibição.
“O argumento americano era proteger as tartarugas. Mas depois se viu que o que eles queriam era dar preferência ao México, em detrimento de outras nações em desenvolvimento ao importar camarões. Não estavam nem aí com as tartarugas. Então o país estava usando o argumento da sustentabilidade e, na verdade, a preocupação real era outra”, afirma Ligia Maura.
Ela lembra, porém, que os países em desenvolvimento ou de menor desenvolvimento relativo têm, por exemplo, a possibilidade de quebra de patente se estiverem enfrentando uma epidemia. “Isso foi instituído na Declaração de Saúde Pública, que surgiu na Rodada de Doha no âmbito do acordo Trips, sigla em inglês para Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio. Esta é uma possibilidade para países em desenvolvimento que até o Brasil já usou no caso dos medicamentos para Aids, a primeira vez em 2001, quando o José Serra era ministro da Saúde”, diz.
TEATRO
Para o embaixador Rubens Ricupero, houve – e ainda há – enorme resistência, tanto no Gatt quanto na OMC, a estabelecer ligação entre comércio e Direitos Humanos. Secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) nos mandatos de 1995 a 1999 e de 1999 a 2004, e subsecretário-geral da ONU no mesmo período, Ricupero diz que a tradição é tratar o comércio por seus próprios méritos.
“De tudo o que se discutiu de concreto no Gatt/OMC, o que mais se aproxima de uma conexão entre comércio e Direitos Humanos é a ideia de que deveria haver, em todos os acordos, uma cláusula segundo a qual os países devem respeitar os direitos trabalhistas mínimos. Pois os que não respeitam têm vantagens desleais: podem vender mais barato”, resume Ricupero. Segundo ele, o Brasil e todos os países em desenvolvimento sempre foram contra a introdução da cláusula trabalhista no Gatt/OMC, porque temem que isso possa ser usado abusivamente por outros países.
Procurado pela reportagem para falar sobre o tema dos direitos humanos no comércio internacional, o Ministério das Relações Exteriores não se pronunciou até o fechamento da edição. “Fui presidente do Conselho do Gatt em 1989 e nas reuniões mensais do conselho os EUA tentavam introduzir esse tema. Aí, votava-se e eram 15 votos a favor e 40 contra. E isso acontecia todos os meses, já tinha virado uma espécie de teatro”, lembra o embaixador. Para Ricupero, o único “avanço” nesse sentido é que os americanos aplicaram a cláusula trabalhista por meio de acordos bilaterais . “Os EUA fazem isso, não porque sejam defensores dos Direitos Humanos, mas porque os sindicatos americanos não querem concorrência”, resume Ricupero.
[2]Negociações comerciais assumidas entre duas nações ou blocos cuja finalidade principal é facilitar o movimento de mercadorias e serviços entre suas partes. Há mais de 300 desses acordos em vigor.
Segundo diversos especialistas em comércio internacional, os acordos bilaterais têm uma lógica oposta à da OMC e estão destruindo um pilar da instituição, segundo o qual não pode haver discriminação entre diferentes fornecedores, ou seja: se um país faz uma concessão a uma determinada nação, precisa fazer a mesma concessão para todos os países-membros da OMC. Em maio, em visita à Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE) do Senado, o diretor-geral da OMC, Roberto Azevêdo, explicou que a organização não tem participação nas negociações bilaterais, mas supervisiona os acordos para verificar se estão em consonância com as regras por ela estabelecidas.
De acordo com o documento Guia Prático sobre a OMC e Outros Acordos Comerciais para Defensores dos Direitos Humanos (3D e Conectas, 2007), os pactos bilaterais frequentemente impõem requisitos mais rígidos em algumas áreas do que aqueles preconizados pela OMC. “Muitos grupos da sociedade civil acusam esses acordos de serem mecanismos usados por países poderosos para obter concessões em áreas como a dos direitos de propriedade intelectual e a do acesso a mercados por parte de economias mais fracas, principalmente os acordos bilaterais assinados entre os Estados Unidos e os países em desenvolvimento.”
Para Ricupero, os Direitos Humanos têm seus próprios fóruns, e a OMC não é um deles. “O Brasil pode manter relações comerciais com a China e o Irã, mas em questões de direitos humanos, na ONU, pode ter posições contrárias a eles, por exemplo. Devemos nos pautar pela evidência de cada caso. Agora, achar que o Brasil não deve vender ou comprar da China e do Irã não faz sentido”, opina. “Acredito que deve haver um sistema de comércio que leve em conta as diferenças entre os países e que, ao conceder benefícios comerciais, esse sistema possa inuenciar os beneciários a estender as benesses à população, mas não sou favorável a estabelecer a questão do respeito aos Direitos Humanos como condicionante em operações comerciais internacionais”, arma o embaixador.
Ele usa o exemplo dos EUA. “Com freqüência os EUA aplicam sanções. É comum argumentarem que elas têm como causa questões de Direitos Humanos, mas sabemos que é apenas a política externa americana. Até porque as sanções americanas são bastante seletivas: eles não as aplicam aos seus aliados. Sou muito contrário ao uso desse tipo de condicionamento. A melhora que se espera no respeito aos Direitos Humanos ocorre mais com estímulo do que com castigo”, defende Ricupero.
CAMINHO POSSÍVEL
Em seu livro Direito Internacional do Desenvolvimento Sustentável e a OMC, Ligia Maura, da FGV, observa que a evolução do comércio mundial trouxe e trará mudanças à OMC. “Não é despropositado armar que a noção de direito internacional do desenvolvimento sustentável pode passar a fazer parte integrante dos acordos da OMC, no futuro.”
A professora alerta, entretanto, para os efeitos resultantes dessas mudanças nas regras do sistema multilateral de comércio: “Proibir importações de países em desenvolvimento ou de menor desenvolvimento relativo, cujos métodos de produção representem perigos à humanidade, sob um enfoque de proteção aos aspectos sociais ou econômicos, pode dar aos países desenvolvidos o poder ‘supremo’ de obstaculizar, legalmente, o sistema multilateral de comércio”. O caminho das certificações, da observância dos Princípios Ruggie, das políticas de compras (públicas ou não) indutoras de boas práticas e do fomento a mecanismos de operação bancária que possam premiar, com crédito, os produtores que têm boa performance social e ambiental parece ser, por enquanto, a única via disponível no sentido de harmonizar comércio e Direitos Humanos.
É claro que esse caminho depende, e muito, da cobrança da sociedade com relação às empresas, aos governos e ao envolvimento de instituições multilaterais com o tema.
O caso do amianto
No início da década passada, o tribunal de arbitragem da OMC deu razão à França contra o Canadá na queixa apresentada por este país contra a proibição adotada pelo governo francês de toda importação e comercialização do amianto em seu território. O amianto é um produto comprovadamente cancerígeno que já foi proibido em mais de 30 países e teve sua utilização restrita em vários outros. No Brasil ainda é permitido. O Canadá é o maior produtor do mundo e a França era seu maior mercado. A importância da decisão da OMC decorre do fato de que, tradicionalmente, a instituição limita-se a apreciar apenas os aspectos estritamente comerciais.
Abusos: rol extenso e heterogêneo
Embora ainda haja uma lacuna de canais de denúncia de violações por parte das empresas, é inegável que o advento das ferramentas digitais contribuiu significativamente para o controle social sobre a atuação de empresas e Estados no tocante ao respeito aos direitos humanos nacional e internacionalmente. Prova disso foram os casos que pipocaram nas redes sociais nos últimos seis a sete anos, envolvendo denúncias de grifes acusadas de usar trabalho escravo na confecção de roupas.
O rol de violações aos Direitos Humanos por empresas é extenso e heterogêneo. No documento Acesso à Justiça: violações de Direitos Humanos por empresas (2011), da Comissão Internacional de Juristas, relativo ao Brasil, consideram-se desde o histórico caso do amianto (ver quadro acima) até episódios de revista íntima em ambiente de trabalho, passando por derramamento de petróleo em águas brasileiras, trabalho escravo urbano, publicidade infantil abusiva e pornografia infantil na internet.
Em 2008, a ONU publicou um relatório com base em amostragem de 320 alegações de abuso postadas na página do Centro de Pesquisa em Negócios e Direitos Humanos (Business and Human Rights Resource Center), entre fevereiro de 2005 e dezembro de 2007. Intitulado Empresas e Direitos Humanos: um estudo de escopo e dos padrões de abuso relacionados com Direitos Humanos envolvendo corporações, o documento mostrou que há alegações de impacto nos direitos humanos em todos os setores da indústria no amplo espectro dos Direitos Humanos – incluindo os civis e políticos, econômicos, sociais e culturais, além dos direitos trabalhistas. Também ficou claro que danos ambientais estão conectados a impactos nos Direitos Humanos. O acesso à água de qualidade foi citado em 20% dos casos, nos quais as empresas supostamente impediram acesso à água limpa ou poluíram uma fonte de água limpa.
De acordo com o documento da ONU, o setor responsável pelo maior número de queixas de violação foi o setor extrativista (28%), e a Ásia, a região campeã em casos relatados, seguida da África e da América Latina.
*Esta reportagem é resultado da parceria firmada entre PÁGINA22 e Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), que prevê a publicação mensal de textos sobre temas estratégicos para a construção da Plataforma Brasil Democrático e Sustentável.[:en]Enquanto o respeito aos Direitos Humanos nas transações comerciais aos poucos entra na agenda de instituições e governos, a ONU estuda tratado sobre jurisdição extraterritorial para enquadrar empresas violadoras
A questão do respeito aos Direitos Humanos no acesso a mercados tornou-se uma preocupação proeminente na agenda internacional desde os anos 1990. A liberalização do comércio, as desregulamentações locais e as privatizações no mundo todo abriram caminho para as empresas operarem globalmente, e os impactos dessas operações nos Direitos Humanos acompanharam o ritmo veloz da expansão. Ainda que o comércio transnacional, especialmente em períodos de crise econômica global, não trate essa questão como uma prioridade e muitos vejam o risco de ser usada para alimentar o protecionismo, avanços têm se dado sobretudo no campo empresarial, como forma de acessar mercados e obter diferenciais competitivos. A História recente traz exemplos nesse sentido.
Em 2000, a Organização das Nações Unidas (ONU) lançou o Pacto Global, plataforma que conclama as empresas a adotar princípios universais e a ser parceiras das Nações Unidas de forma a promover e amplificar as contribuições positivas dos negócios para a sociedade. Em junho de 2011, o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou por consenso os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos elaborados pelo representante especial do secretário-geral das Nações Unidas, professor John Ruggie. O documento cou conhecido como Princípios Ruggie [1] . Em 2012, a ONU instituiu um fórum anual sobre empresas e Direitos Humanos, que ocorre em dezembro.
[1]Os 31 Princípios Ruggie, elaborados a partir de normas de Direitos Humanos preexistentes, sustentam-se em três pilares: proteger, que trata da obrigação dos Estados de resguardar os Direitos Humanos; respeitar, que aborda a responsabilidade das empresas quanto aos Direitos Humanos; e reparar, que dispõe sobre a necessidade de que existam recursos eficazes para a reparação dos danos, em caso de descumprimento desses direitos pelas empresas
Juana Kweitel, diretora de programas da ONG Conectas, com sede em São Paulo, afirma que os Princípios Ruggie mudaram o olhar sobre a questão da responsabilidade das empresas. “O documento inclui a prevenção, ou seja, sugere que a empresa tem de agir para prevenir os impactos negativos sobre os Direitos Humanos provocados por suas operações”, esclarece.
No documento, as empresas são solicitadas a respeitar, no mínimo, os direitos enunciados na Carta Internacional de Direitos Humanos e os princípios relativos aos direitos fundamentais estabelecidos na Declaração da Organização Internacional do Trabalho.
Segundo Juana, hoje o Conselho de Direitos Humanos da ONU discute um tratado de jurisdição extraterritorial para dar conta do tema. “Na abertura do Fórum sobre Empresas e Direitos Humanos, em 2012, o próprio Ruggie afirmou que maior clareza jurídica seria necessária, tanto para as vítimas como para as empresas, e que apenas um processo intergovernamental poderia fornecer essa clareza. O que parece indicar um tratado sobre o tema que seja mais claro sobre como as empresas podem ser julgadas por fatos em outros países. Não seria um novo tribunal internacional, mas aumentaria e deixaria mais clara a jurisdição das cortes nacionais”, relata.
ESFERA DE INFLUÊNCIA
O papel atribuído às diferentes instâncias na garantia do respeito aos Direitos Humanos no comércio internacional é um ponto-chave que vem ganhando espaço na discussão. “Existe entre as empresas o entendimento de que os Princípios Ruggie estão voltados para os Estados e que as corporações têm apenas a obrigação de respeitar. Respeitar, para as empresas, significa não violar, mas o que a gente entende é que elas têm uma responsabilidade maior em toda a sua esfera de influência”, afirma a advogada Flávia Scabin, professora da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas.
A compreensão de como o mercado global consegue impulsionar uma agenda de desenvolvimento local sustentável e justo é um tema relevante. E leva ao questionamento sobre como se cria um diálogo entre o setor negócios e o Estado na promoção do desenvolvimento, e também sobre os riscos que esses impulsos externos representam para os locais”, resume.
Para a professora, mecanismos já em operação demonstram o papel relevante do mercado como indutor de políticas, e do Estado como instância responsável pela fiscalização e regulamentação dessas ferramentas localmente.
Flávia cita três exemplos. O primeiro: recentemente, a União Europeia (UE) lançou uma diretiva segundo a qual qualquer produto comercializado na Europa que contenha princípios ativos da biodiversidade precisa ter sua rastreabilidade comprovada. E que sua produção deve se dar de acordo com as leis do país de origem. Ela se recorda de que tanto o Brasil como a UE são signatários da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB)
“A melhora que se espera no respeito aos Direitos Humanos ocorre mais com estímulo do que com castigo”, diz Ricupero
“Temos uma Medida Provisória desde 2001 regulamentando a aplicação dos princípios da CDB e que já traz alguns quesitos sobre como fazer contratos de repartição de benefícios com comunidades locais fornecedoras de bens e serviços. Mas a eficácia dessa MP é muito baixa, até por conta da fiscalização precária. Agora, quando o mercado, interessado na biodiversidade brasileira, força a iniciativa privada a produzir um dossiê provando que cumpriram a lei, essas empresas começam a provocar as instâncias nacionais”, acredita.
O segundo exemplo é a regulação privada transnacional – a popular certificação, que atesta determinadas qualidades do produto. “Hoje as normas de certificação são muito exigentes. O que nos leva a pensar nos riscos que se criam quando há mecanismos de fora impulsionando o desenvolvimento local por meio do mercado: o maior deles é a exclusão do pequeno proprietário. Muitos não se certificam, porque não conseguem cumprir os requisitos, ou não conseguem pagar pelo processo de certificação.”
Tal tipo de incentivo de fora para dentro é produtivo do ponto de vista do impacto e da criação de um nicho, mas tem de ser visto com muito cuidado, aponta Flávia. “Em um país desigual, tende a excluir. Daí a importância do papel do governo brasileiro, de construir políticas para fazer com que essas pessoas tenham acesso, ao menos mais igualitário, ao mercado.”
Em terceiro, a advogada cita os Princípios do Equador, referindo-se ao conjunto de regras lançadas em 2003 por dez grandes instituições financeiras, no âmbito da International Finance Corporation (IFC), para tratar a questão da concessão de crédito e dos princípios sociais e ambientais em mercados emergentes. “A força deles é que os bancos voluntariamente assinaram e passaram a pôr essas questões na agenda. Pois os Princípios de Ruggie não são vinculativos, mas apenas diretrizes cujo cumprimento não se consegue cobrar.”
Entretanto, embora os Princípios do Equador sejam uma importante ferramenta de mercado, os bancos não precisam prestar contas, e não há scalização sobre o cumprimento das normas. “O que existe é uma metodologia que divide o impacto empresarial em três grandes blocos. Dependendo do impacto, a empresa é mais exigida do ponto de vista de medidas socioambientais”, explica a advogada.
Flávia menciona, ainda, a norma ISO 26000, editada há dois anos. “É voluntária e não certificada. Funciona mais como orientação, que aborda questões de gênero, de proteção de crianças e adolescentes, ambientais, entre outras.”
OMC E PROTECIONISMO
Autora do livro Direito Internacional do Desenvolvimento Sustentável e a OMC (São Paulo: Quartier Latin, 2013), Ligia Maura Costa, professora da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV-Eaesp), analisou 423 disputas no âmbito da instituição no período de 1º de janeiro de 1995 até 31 de março de 2011. “Pouco mais de 10% eram casos em que a instituição foi chamada a se manifestar sobre sustentabilidade. Desse universo, apenas em um, que foi o caso dos asbestos (amianto), a Organização Mundial do Comércio (OMC) deu razão à UE, no sentido de reconhecer o direito do bloco a tomar uma providência para evitar a importação de amianto como medida de proteção à população”, afirma (ver quadro abaixo).
A história da OMC remonta a 1947, quando se estabeleceu o Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (Gatt) para reduzir tarifas, eliminar obstáculos nas atividades e facilitar os negócios de mercadorias. Com o passar dos anos, o acordo evoluiu em rodadas de negociações comerciais multilaterais. A OMC foi então lançada em Marrakesh em 1º de janeiro de 1995, após a conclusão da Rodada Uruguai do Gatt. Posteriormente, o Gatt deixou de existir e seus textos jurídicos foram incorporados à OMC, com o nome de “Gatt de 1994”
“Desde os tempos do Gatt, demonstrava-se uma preocupação com o meio ambiente. Mas, quando a OMC foi criada, nunca se conseguiu chegar a um acordo com relação a esse tema. Eu diria que mesmo o termo meio ambiente tem uma esfera reduzida, se comparado ao termo sustentabilidade, que englobaria, além demeio ambiente, também direitos humanos, trabalhistas, aspectos econômicos e sociais. Mas nunca se teve na OMC a possibilidade de um acordo que incluísse essas questões”, esclarece Ligia Maura.
A professora lembra que, há cerca de dez anos, a ONU estava passando por uma crise. “Foi na época da Guerra do Iraque, quando a instituição ficou um pouco desacreditada. Então, vários países começaram a trazer para a OMC matérias que teoricamente seriam muito mais relacionadas a Direitos Humanos do que efetivamente a comércio internacional. E, para todos os efeitos, em questões sobre sustentabilidade, mais abrangentes, a ONU seria o fórum mais adequado. Começaram a se questionar vários artigos da doutrina: será que a OMC pode cuidar de Direitos Humanos também?”
Segundo Ligia Maura, chegou-se à conclusão de que a OMC também não era o fórum adequado. “A OMC até pode proteger Direitos Humanos, desde que tenha havido qualquer violação a um dos seus acordos. Se qualquer matéria relacionada a direitos humanos ou trabalhistas estiver afetando o comércio internacional, a OMC pode eventualmente atuar. Mas não há um acordo específico sobre isso.”
O motivo é simples: os países em desenvolvimento temem que os países industrializados utilizem os Direitos Humanos como um pretexto para adotar uma nova forma de protecionismo. “A gente tem trabalho escravo na cidade de São Paulo, então, dá para entender por que os países menos desenvolvidos são totalmente contra”, diz.
No primeiro caso do gênero levado à OMC, que se tornou emblemático, os EUA proibiram as importações de camarões procedentes de quatro países asiáticos (Índia, Malásia, Paquistão e Tailândia), alegando que a forma como os camarões eram capturados prejudicava espécies ameaçadas de tartarugas marinhas. Os quatro países apresentaram uma reclamação à OMC sobre essa proibição.
“O argumento americano era proteger as tartarugas. Mas depois se viu que o que eles queriam era dar preferência ao México, em detrimento de outras nações em desenvolvimento ao importar camarões. Não estavam nem aí com as tartarugas. Então o país estava usando o argumento da sustentabilidade e, na verdade, a preocupação real era outra”, afirma Ligia Maura.
Ela lembra, porém, que os países em desenvolvimento ou de menor desenvolvimento relativo têm, por exemplo, a possibilidade de quebra de patente se estiverem enfrentando uma epidemia. “Isso foi instituído na Declaração de Saúde Pública, que surgiu na Rodada de Doha no âmbito do acordo Trips, sigla em inglês para Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio. Esta é uma possibilidade para países em desenvolvimento que até o Brasil já usou no caso dos medicamentos para Aids, a primeira vez em 2001, quando o José Serra era ministro da Saúde”, diz.
TEATRO
Para o embaixador Rubens Ricupero, houve – e ainda há – enorme resistência, tanto no Gatt quanto na OMC, a estabelecer ligação entre comércio e Direitos Humanos. Secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) nos mandatos de 1995 a 1999 e de 1999 a 2004, e subsecretário-geral da ONU no mesmo período, Ricupero diz que a tradição é tratar o comércio por seus próprios méritos.
“De tudo o que se discutiu de concreto no Gatt/OMC, o que mais se aproxima de uma conexão entre comércio e Direitos Humanos é a ideia de que deveria haver, em todos os acordos, uma cláusula segundo a qual os países devem respeitar os direitos trabalhistas mínimos. Pois os que não respeitam têm vantagens desleais: podem vender mais barato”, resume Ricupero. Segundo ele, o Brasil e todos os países em desenvolvimento sempre foram contra a introdução da cláusula trabalhista no Gatt/OMC, porque temem que isso possa ser usado abusivamente por outros países.
Procurado pela reportagem para falar sobre o tema dos direitos humanos no comércio internacional, o Ministério das Relações Exteriores não se pronunciou até o fechamento da edição. “Fui presidente do Conselho do Gatt em 1989 e nas reuniões mensais do conselho os EUA tentavam introduzir esse tema. Aí, votava-se e eram 15 votos a favor e 40 contra. E isso acontecia todos os meses, já tinha virado uma espécie de teatro”, lembra o embaixador. Para Ricupero, o único “avanço” nesse sentido é que os americanos aplicaram a cláusula trabalhista por meio de acordos bilaterais . “Os EUA fazem isso, não porque sejam defensores dos Direitos Humanos, mas porque os sindicatos americanos não querem concorrência”, resume Ricupero.
[2]Negociações comerciais assumidas entre duas nações ou blocos cuja finalidade principal é facilitar o movimento de mercadorias e serviços entre suas partes. Há mais de 300 desses acordos em vigor.
Segundo diversos especialistas em comércio internacional, os acordos bilaterais têm uma lógica oposta à da OMC e estão destruindo um pilar da instituição, segundo o qual não pode haver discriminação entre diferentes fornecedores, ou seja: se um país faz uma concessão a uma determinada nação, precisa fazer a mesma concessão para todos os países-membros da OMC. Em maio, em visita à Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE) do Senado, o diretor-geral da OMC, Roberto Azevêdo, explicou que a organização não tem participação nas negociações bilaterais, mas supervisiona os acordos para verificar se estão em consonância com as regras por ela estabelecidas.
De acordo com o documento Guia Prático sobre a OMC e Outros Acordos Comerciais para Defensores dos Direitos Humanos (3D e Conectas, 2007), os pactos bilaterais frequentemente impõem requisitos mais rígidos em algumas áreas do que aqueles preconizados pela OMC. “Muitos grupos da sociedade civil acusam esses acordos de serem mecanismos usados por países poderosos para obter concessões em áreas como a dos direitos de propriedade intelectual e a do acesso a mercados por parte de economias mais fracas, principalmente os acordos bilaterais assinados entre os Estados Unidos e os países em desenvolvimento.”
Para Ricupero, os Direitos Humanos têm seus próprios fóruns, e a OMC não é um deles. “O Brasil pode manter relações comerciais com a China e o Irã, mas em questões de direitos humanos, na ONU, pode ter posições contrárias a eles, por exemplo. Devemos nos pautar pela evidência de cada caso. Agora, achar que o Brasil não deve vender ou comprar da China e do Irã não faz sentido”, opina. “Acredito que deve haver um sistema de comércio que leve em conta as diferenças entre os países e que, ao conceder benefícios comerciais, esse sistema possa inuenciar os beneciários a estender as benesses à população, mas não sou favorável a estabelecer a questão do respeito aos Direitos Humanos como condicionante em operações comerciais internacionais”, arma o embaixador.
Ele usa o exemplo dos EUA. “Com freqüência os EUA aplicam sanções. É comum argumentarem que elas têm como causa questões de Direitos Humanos, mas sabemos que é apenas a política externa americana. Até porque as sanções americanas são bastante seletivas: eles não as aplicam aos seus aliados. Sou muito contrário ao uso desse tipo de condicionamento. A melhora que se espera no respeito aos Direitos Humanos ocorre mais com estímulo do que com castigo”, defende Ricupero.
CAMINHO POSSÍVEL
Em seu livro Direito Internacional do Desenvolvimento Sustentável e a OMC, Ligia Maura, da FGV, observa que a evolução do comércio mundial trouxe e trará mudanças à OMC. “Não é despropositado armar que a noção de direito internacional do desenvolvimento sustentável pode passar a fazer parte integrante dos acordos da OMC, no futuro.”
A professora alerta, entretanto, para os efeitos resultantes dessas mudanças nas regras do sistema multilateral de comércio: “Proibir importações de países em desenvolvimento ou de menor desenvolvimento relativo, cujos métodos de produção representem perigos à humanidade, sob um enfoque de proteção aos aspectos sociais ou econômicos, pode dar aos países desenvolvidos o poder ‘supremo’ de obstaculizar, legalmente, o sistema multilateral de comércio”. O caminho das certificações, da observância dos Princípios Ruggie, das políticas de compras (públicas ou não) indutoras de boas práticas e do fomento a mecanismos de operação bancária que possam premiar, com crédito, os produtores que têm boa performance social e ambiental parece ser, por enquanto, a única via disponível no sentido de harmonizar comércio e Direitos Humanos.
É claro que esse caminho depende, e muito, da cobrança da sociedade com relação às empresas, aos governos e ao envolvimento de instituições multilaterais com o tema.
O caso do amianto
No início da década passada, o tribunal de arbitragem da OMC deu razão à França contra o Canadá na queixa apresentada por este país contra a proibição adotada pelo governo francês de toda importação e comercialização do amianto em seu território. O amianto é um produto comprovadamente cancerígeno que já foi proibido em mais de 30 países e teve sua utilização restrita em vários outros. No Brasil ainda é permitido. O Canadá é o maior produtor do mundo e a França era seu maior mercado. A importância da decisão da OMC decorre do fato de que, tradicionalmente, a instituição limita-se a apreciar apenas os aspectos estritamente comerciais.
Abusos: rol extenso e heterogêneo
Embora ainda haja uma lacuna de canais de denúncia de violações por parte das empresas, é inegável que o advento das ferramentas digitais contribuiu significativamente para o controle social sobre a atuação de empresas e Estados no tocante ao respeito aos direitos humanos nacional e internacionalmente. Prova disso foram os casos que pipocaram nas redes sociais nos últimos seis a sete anos, envolvendo denúncias de grifes acusadas de usar trabalho escravo na confecção de roupas.
O rol de violações aos Direitos Humanos por empresas é extenso e heterogêneo. No documento Acesso à Justiça: violações de Direitos Humanos por empresas (2011), da Comissão Internacional de Juristas, relativo ao Brasil, consideram-se desde o histórico caso do amianto (ver quadro acima) até episódios de revista íntima em ambiente de trabalho, passando por derramamento de petróleo em águas brasileiras, trabalho escravo urbano, publicidade infantil abusiva e pornografia infantil na internet.
Em 2008, a ONU publicou um relatório com base em amostragem de 320 alegações de abuso postadas na página do Centro de Pesquisa em Negócios e Direitos Humanos (Business and Human Rights Resource Center), entre fevereiro de 2005 e dezembro de 2007. Intitulado Empresas e Direitos Humanos: um estudo de escopo e dos padrões de abuso relacionados com Direitos Humanos envolvendo corporações, o documento mostrou que há alegações de impacto nos direitos humanos em todos os setores da indústria no amplo espectro dos Direitos Humanos – incluindo os civis e políticos, econômicos, sociais e culturais, além dos direitos trabalhistas. Também ficou claro que danos ambientais estão conectados a impactos nos Direitos Humanos. O acesso à água de qualidade foi citado em 20% dos casos, nos quais as empresas supostamente impediram acesso à água limpa ou poluíram uma fonte de água limpa.
De acordo com o documento da ONU, o setor responsável pelo maior número de queixas de violação foi o setor extrativista (28%), e a Ásia, a região campeã em casos relatados, seguida da África e da América Latina.
*Esta reportagem é resultado da parceria firmada entre PÁGINA22 e Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), que prevê a publicação mensal de textos sobre temas estratégicos para a construção da Plataforma Brasil Democrático e Sustentável.