As cenas do evento da Massa Crítica semana passada em Porto Alegre são quase inacreditáveis: dezenas de ciclistas atropelados por um carro. Passado o choque inicial, vale refletir sobre os motivos da aparente “guerra” entre motoristas e ciclistas – não só no Brasil, mas em várias partes do mundo. E ainda sobre como inserir a bicicleta – um meio de locomoção limpo, barato e que faz bem para a saúde – nas políticas públicas de transporte.
Aqui na Austrália, apesar de uma cultura bastante receptiva à bicicleta, os ciclistas estão acostumados a ouvir impropérios vindos de motoristas e passageiros de carros. Isso sem falar no risco de acabar no hospital – um médico de Melbourne afirma que os acidentes aumentaram tanto que a situação toma os contornos de uma epidemia. Um estudo feito pela Monash University, também em Melbourne, indica que nove entre dez acidentes são causados pelos motoristas.
Nos Estados Unidos, em 2009, 51 mil ciclistas ficaram feridos em decorrência de acidentes no trânsito e 630 morreram – o número equivale a 1,9% de todas as mortes no trânsito. Com exceção de algumas cidades que cultuam a bicicleta – como Portland, no Oregon –, os EUA são o paraíso automotivo e mesmo viagens mais curtas do que uma milha (1,6 km) são feitas majoritariamente de carro.
Uma reportagem recente na revista Outside cita pesquisas que mostram que a divisão de pessoas em grupos pode levar ao que se chama de “categorização social”, com penalização para quem é de fora do grupo. Motoristas e ciclistas com certeza pertencem a grupos diferentes e a dinâmica de “categorização social” aparece nas ruas e estradas. O mesmo problema parece acontecer entre ciclistas e pedestres. Em Brisbane, capital do estado australiano de Queensland, uma ciclovia no centro da cidade teve de ser reformada para separar ciclistas e pedestres depois de vários acidentes – nesse caso, os ciclistas são apontados como culpados em 65% dos casos.
Não acredito que todos os motoristas odeiem ciclistas – muitos não estão acostumados a compartilhar a rua com bicicletas e não sabem como reagir. Também é verdade que muitos ciclistas não conhecem a legislação pertinente – ou simplesmente desrespeitam os sinais de trânsito – e dão margem a conflito. Mas há ainda o fato de que as ruas e as cidades em geral foram construídas pensando nos carros e não nos ciclistas e pedestres.
Criar vias dedicadas ao ciclismo, separadas do trânsito de automóveis, é uma das soluções para evitar conflitos e acidentes. Mas há quem defenda que o compartilhamento de ruas e avenidas é a única maneira de integrar motoristas, ciclistas e pedestres e a melhor para aumentar a percepção de todos para os riscos a que estão expostos. Com separação ou integração, fato é que a revolução que os ciclistas querem ver no transporte – com mais espaço para as magrelas – não acontece da noite para o dia.
O melhor exemplo vem da Holanda, onde hoje 27% das viagens diárias, em média, são feitas de bicicleta. Embora o país tenha tradição sobre duas rodas, foi durante a crise do petróleo nos anos 70 que a bicicleta virou política pública – o governo baniu o tráfego de automóveis aos domingos e bancou 80% dos investimentos em infra-estrutura para o ciclismo. Agiu para tornar as cidades menos amigáveis aos carros – com impostos, restrições ao estacionamento e ao uso de automóveis – e o ciclismo mais conveniente e seguro – com a construção de vias dedicadas, estacionamentos e facilidades para as bicicletas junto a estações de trens e ônibus, e sinalização especial.
Mais interessante ainda, mostra uma reportagem de Jay Walljasper, é a ênfase que os holandeses colocam na educação. Em visita a uma escola em Utrecht, ele descobriu que 95% das crianças de 10 a 12 anos vão para a escola de bicicleta. Aprender a usar a bicicleta de maneira segura é parte do currículo: há professores especialmente treinados para dar “aula de bicicleta” e as crianças freqüentam uma cidade em miniatura para testar o que aprenderam. Aos 11 anos, elas passam por um teste de suas habilidades, dessa vez na cidade real, e recebem um certificado. A aposta é que cresçam para ser ciclistas ou motoristas mais responsáveis e que, como futuros planejadores e tomadores de decisão, continuem investindo na bicicleta como meio de transporte.