Na letra da lei e dos discursos políticos, a participação popular é bem-vinda. Na prática, em muitos casos, estamos falando com as paredes
Lula pegou no meu braço e disse: ‘Não vamos empurrar esse projeto goela abaixo de ninguém”, lembra dom Erwin Kräutler, bispo do Xingu. Esse gesto tranquilizador aconteceu em março de 2009 durante um encontro entre o religioso e o (então) presidente da República para falar sobre a Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Dom Erwin saiu de Brasília com uma promessa solene de Lula de que uma nova audiência seria marcada para que eles conversassem mais sobre os (muitos) receios da comunidade local. “Infelizmente, esse diálogo nunca aconteceu”, lamenta o austríaco, que chegou como missionário ao Xingu em 1965 e nunca mais saiu de lá.
No fim das contas, tudo indica que Belo Monte vai – sim, senhor! – ser empurrada goela abaixo de todo mundo. A pressão para que a usina saia do papel tem sido tão intensa que em janeiro o então presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Abelardo Bayma Azevedo, pediu demissão depois de apenas dez meses no cargo.
Embora beire o anedótico, a conversa entre d. Erwin Kräutler e o ex-presidente está recheada de simbolismo. Simpatize-se ou não com Lula, deve-se reconhecer que ele possui uma certa imagem de integridade. É o que torna o caso chocante. Ou Lula contou uma mentira deslavada na cara de um piedoso homem de Deus, ou não podia fazer nada para ajudar. Não sabemos a versão correta. Mesmo assim, é difícil imaginar uma ilustração mais bem-acabada das dificuldades que a sociedade sente ao tentar fazer sua opinião ser ouvida.
Um exemplo. Ganha um doce quem já souber que o Ministério do Planejamento tem até o dia 31 de agosto para encaminhar o texto final da edição 2012-2015 do Plano Plurianual (PPA) [1] para o Congresso Nacional. Quem não estiver sabendo de nada não precisa se sentir mal, a verdade é que o processo de elaboração do novo PPA tem sido pouquíssimo divulgado.
[1] O PPA é a ferramenta mais importante de planejamento estratégico do governo. Embora as obras de infraestrutura que envolvam energia ou estradas sejam seu aspecto mais visível, também entram nele programas de preservação de bens culturais imateriais do Ministério da Cultura. Vai do segundo ano de um mandato presidencial até o final do primeiro ano do mandato seguinte.
Comparando o atual PPA ao primeiro da Era Lula (2004-2007), em março de 2003 o processo de elaboração do plano já tinha sido apresentado à imprensa nacional – a coletiva oficial ocorreu em 9 de março daquele ano – e ganhado um site, por onde o cidadão podia se informar e enviar sugestões. Muito diferente do silêncio embaraçoso de agora. É sintomático que, no final de março, o PPA 2012-2015 ainda não tinha sequer seção própria no website do ministério.
Durante duas semanas, esta reportagem insistiu com a assessoria de comunicação do Ministério do Planejamento, na tentativa de conseguir uma entrevista com os responsáveis pelo PPA. O ministério manifestou-se por escrito quando esta revista já estava fechada. Acesse as respostas aqui.
Micro versus macro
“Os canais de discussão são pouco divulgados”, critica a socióloga e urbanista Nereide Mazzucchelli, que, à frente da consultoria paulistana Territória, ganha a vida ajudando organizações públicas e privadas em projetos de responsabilidade social. “Se pensarmos nas obras do PAC [2], quando foi que pudemos participar dos debates? Não me lembro de nenhuma campanha que convidasse o cidadão a participar da escolha dessas obras”, prossegue.
[2] Lançado em 2007, o Programa de Aceleração do Crescimento centraliza investimentos em infraestrutura. Apesar dos objetivos convergentes, PAC e PPA são coisas distintas.
Para a consultora, o maior problema é que a sociedade civil não é convidada a ajudar na escolha dos modelos em que as decisões são tomadas pra valer. É tão somente na hora de o modelo tomar a forma de uma obra qualquer é que se abre uma janela para a participação popular. “Sobram as audiências públicas [3] onde vou discutir um projeto que já está praticamente todo decidido”, completa Nereide.
[3] Geralmente realizadas no contexto do Licenciamento Ambiental de grandes obras, as audiências públicas permitem que qualquer cidadão faça perguntas e apresente sugestões sobre o tema em debate.
Deve ser por isso que tais audiências acabam ficando com um jeito danado de exercício de psicodrama. Evidente que elas são essenciais para dar vez e voz à população interessada numa determinada obra ou projeto, mas a ferramenta tem limites. Segundo o coordenador de licenciamento do Ibama, Thomaz de Toledo, é comum ver conflitos ideológicos desaguarem nas audiências.“Tem gente que aparece querendo questionar toda a matriz energética brasileira. Só que o objeto da audiência são os impactos de uma obra em particular”, explica o técnico.
Embora simpatize com o que qualifica como “manifestações válidas” dos cidadãos, Toledo ressalta que embaralhar as estações pode ter um efeito nocivo. “Perdemos oportunidade de falar sobre o projeto específico”, alerta.
Na prática, significa que levar certas questões para as audiências equivale a tentar redecorar uma casa em chamas. Esse é o sentimento do coordenador do Programa de Mudanças Climáticas do WWF-Brasil, Carlos Rittl. “É pouco efetivo discutir os projetos individualmente. Você consegue impor uma condicionante aqui e ali, mas não mudar o empreendimento”, reclama. “O que precisamos é de um olhar macro sobre as necessidades do País”, protesta.
A ideia é parar de tentar mudar o Brasil no varejo e partir para o atacado. Para que gastar energia tentando conseguir mudanças mínimas se podemos, por exemplo, optar por mais investimentos em eficiência energética e fontes eólicas? Ricardo Montagner, da coordenação do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), informa que essa organização – famosa pela postura combativa – anda tentando agir nesse sentido. “Estamos trabalhando em uma plataforma energética que veja a energia como direito e não como mercadoria”, explica, acrescentando que, em meados de março, representantes do MAB começaram a circular por órgãos governamentais com cópias do plano debaixo do braço.
Grandes obras
A guerra só será vencida se chegarmos ao andar de cima, mas tem uma porção de batalhas no térreo que não devem ser menosprezadas e não estão nada fáceis de ganhar.
Sobram acusações a respeito da postura que o governo tem adotado sempre que seus projetos estratégicos são contrariados. “Onde tem resistência de grupos organizados você até consegue alguma compensação, mas sobre as obras do PAC não tem diálogo possível. Eles vão executar e pronto”, resume o assessor da Pastoral da Terra, Roberto Malvezzi, caracterizando a postura como “autoritária e contrária aos direitos coletivos dos povos locais”.
O coordenador de políticas públicas do Greenpeace, Nilo D’Avila, não tem dúvidas de que anda faltando tato e bota a culpa no que ele chama de uma “postura cartorial em relação ao processo de licenciamento”. “Virou tudo cartório, eles (o governo) não querem fazer consulta nenhuma, querem só mais um carimbo para conseguir a licença ambiental e começar a construir”, ataca, ironizando que, na falta do carimbo, “eles até inventam figuras jurídicas novas como a ‘licença fracionada’” [4].
[4] Diz-se que uma licença ambiental foi fracionada quando cada etapa do projeto é licenciada individualmente. Assim, etapas preliminares, como canteiros e infraestrutura de construção, podem ser iniciadas antes de todas as condicionantes serem cumpridas.
Fica ainda mais difícil confiar na boa vontade governamental, quando se tomam decisões impopulares sem o menor aviso. O caso mais recente é o pacote de decretos acertado entre as pastas da Casa Civil, dos Transportes e do Meio Ambiente, que dispensaria obras de duplicação, melhorias e manutenção de estradas e ferrovias já construídas, com grande impacto em termos de desmatamento, já que são indutoras de ocupação. O pacote estende-se a outros itens, como portos, hidrovias, linhas de transmissão e exploração de petróleo.
A esta altura, Belo Monte tornou-se um caso emblemático de como a oposição entre governo e sociedade civil pode ficar encarniçada. O projeto prevê três barragens no Rio Xingu que, juntas, podem gerar até 11,2 mil megawatts, o que faz dela a terceira maior usina do planeta – atrás da binacional Brasil-Paraguai Itaipu e da chinesa Três Gargantas. Oficialmente, a obra custará R$ 19 bilhões, mas há quem diga que ela não sai por menos de R$ 30 bilhões e também que, durante a estiagem, a capacidade de geração deve despencar para 40% da capacidade total.
Dom Erwin Kräutler pinta o caso com cores fortes. O lago da barragem deve desalojar 30 mil pessoas, que até agora não sabem bem para onde serão levadas. “Não estamos falando de 30 famílias, mas de dezenas de milhares de pessoas que moram aqui há três ou quatro gerações e têm rosto e nome… para qual futuro estão indo?”, preocupa-se. Em seu relato, as audiências públicas em Altamira – município que deve ficar cercado pelo lago da usina – não passaram de um rito. “O governo federal não estava a fim de discutir nada, só queriam colocar a população a par do que tinha sido decidido”, diz, consternado. (Mais na seção Retrato dest edição)
Antes que alguém imagine que ele possa estar exagerando na dose, Ricardo Montagner aponta que durante quatro anos o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) investigou denúncias sobre violações de direitos humanos apresentadas pelo MAB. A conclusão foi a de que “o padrão vigente de implantação de barragens tem propiciado de maneira recorrente graves violações de direitos humanos”.
Sem discussão
Não é a primeira vez – nem a primeira obra – que o governo é acusado de chegar às audiências públicas sem disposição para escutar. Roberto Malvezzi vem acompanhando outro imbróglio famoso há anos: a transposição do Rio São Francisco. “O governo chegou com a decisão de fazer a obra já tomada e toda a conversa teria de ser a posteriori. Nunca perguntaram para a população se ela concordava ou se queria alguma outra coisa”, relata.
Rittl, do WWF, considera que audiências são importantes, mas “têm-se mostrado pouco efetivas”, por não terem caráter deliberativo. “A prioridade desses empreendimentos é sempre o próprio empreendimento; em contrapartida, atender as condicionantes socioambientais e cumprir as promessas de mitigação não são”, reclama.
Evidentemente, a análise do Ibama é menos sombria. Toledo garante que é possível conseguir modificações importantes nas audiências e aponta o caso da Hidrelétrica de Teles Pires, em Mato Grosso, no qual uma série de compensações e demandas objetivas foi incorporada. Mas reconhece que a Resolução Conama Nº 9 – que regulamenta as audiências – é de 1987 e, portanto, há espaço para melhoria. “Grande parte do tempo das audiências é gasta com esclarecimentos de pontos que poderiam ser antecipados por outros meios”, esclarece, indicando que, não fosse por isso, sobraria mais tempo para o que interessa.
E nem toda a culpa deve ser debitada na conta do governo. Nereide ressalta que “nem sempre levamos a participação a sério” e que a cidadania plena exige que o cidadão comum assuma responsabilidades. “A participação é uma coisa recente, e o responsável por essa educação é o ente público. Ele tem obrigação de trazer a população para esse processo”, comenta. O conselho exala bom-senso, especialmente quando se lembra que esses projetos são bancados pelo cofre da viúva – dinheiro de nossos impostos. “Quando começaram a construir a usina de Jirau, todo mundo avisou que seria impossível fazer com o orçamento previsto. O preço já está em 50% a mais e estamos falando de uma obra de R$ 9 bilhões”, pontua Nilo D’Avila, do Greenpeace.
Isso sem mencionar a onda de protestos – alguns bastante violentos – que estourou entre os trabalhadores de Jirau em 16 de março e se espalhavam pelos canteiros de obras da usina de Pecém, no Ceará, e da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco. Os operários reclamam de condições abusivas de trabalho e baixos salários.
É importante que a gente resolva essa questão porque, como vimos, reclamar para o bispo não vai resolver. E não é por falta de empenho do bispo.[:en]Na letra da lei e dos discursos políticos, a participação popular é bem-vinda. Na prática, em muitos casos, estamos falando com as paredes
Lula pegou no meu braço e disse: ‘Não vamos empurrar esse projeto goela abaixo de ninguém”, lembra dom Erwin Kräutler, bispo do Xingu. Esse gesto tranquilizador aconteceu em março de 2009 durante um encontro entre o religioso e o (então) presidente da República para falar sobre a Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Dom Erwin saiu de Brasília com uma promessa solene de Lula de que uma nova audiência seria marcada para que eles conversassem mais sobre os (muitos) receios da comunidade local. “Infelizmente, esse diálogo nunca aconteceu”, lamenta o austríaco, que chegou como missionário ao Xingu em 1965 e nunca mais saiu de lá.
No fim das contas, tudo indica que Belo Monte vai – sim, senhor! – ser empurrada goela abaixo de todo mundo. A pressão para que a usina saia do papel tem sido tão intensa que em janeiro o então presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Abelardo Bayma Azevedo, pediu demissão depois de apenas dez meses no cargo.
Embora beire o anedótico, a conversa entre d. Erwin Kräutler e o ex-presidente está recheada de simbolismo. Simpatize-se ou não com Lula, deve-se reconhecer que ele possui uma certa imagem de integridade. É o que torna o caso chocante. Ou Lula contou uma mentira deslavada na cara de um piedoso homem de Deus, ou não podia fazer nada para ajudar. Não sabemos a versão correta. Mesmo assim, é difícil imaginar uma ilustração mais bem-acabada das dificuldades que a sociedade sente ao tentar fazer sua opinião ser ouvida.
Um exemplo. Ganha um doce quem já souber que o Ministério do Planejamento tem até o dia 31 de agosto para encaminhar o texto final da edição 2012-2015 do Plano Plurianual (PPA) [1] para o Congresso Nacional. Quem não estiver sabendo de nada não precisa se sentir mal, a verdade é que o processo de elaboração do novo PPA tem sido pouquíssimo divulgado.
[1] O PPA é a ferramenta mais importante de planejamento estratégico do governo. Embora as obras de infraestrutura que envolvam energia ou estradas sejam seu aspecto mais visível, também entram nele programas de preservação de bens culturais imateriais do Ministério da Cultura. Vai do segundo ano de um mandato presidencial até o final do primeiro ano do mandato seguinte.
Comparando o atual PPA ao primeiro da Era Lula (2004-2007), em março de 2003 o processo de elaboração do plano já tinha sido apresentado à imprensa nacional – a coletiva oficial ocorreu em 9 de março daquele ano – e ganhado um site, por onde o cidadão podia se informar e enviar sugestões. Muito diferente do silêncio embaraçoso de agora. É sintomático que, no final de março, o PPA 2012-2015 ainda não tinha sequer seção própria no website do ministério.
Durante duas semanas, esta reportagem insistiu com a assessoria de comunicação do Ministério do Planejamento, na tentativa de conseguir uma entrevista com os responsáveis pelo PPA. O ministério manifestou-se por escrito quando esta revista já estava fechada. Acesse as respostas aqui.
Micro versus macro
“Os canais de discussão são pouco divulgados”, critica a socióloga e urbanista Nereide Mazzucchelli, que, à frente da consultoria paulistana Territória, ganha a vida ajudando organizações públicas e privadas em projetos de responsabilidade social. “Se pensarmos nas obras do PAC [2], quando foi que pudemos participar dos debates? Não me lembro de nenhuma campanha que convidasse o cidadão a participar da escolha dessas obras”, prossegue.
[2] Lançado em 2007, o Programa de Aceleração do Crescimento centraliza investimentos em infraestrutura. Apesar dos objetivos convergentes, PAC e PPA são coisas distintas.
Para a consultora, o maior problema é que a sociedade civil não é convidada a ajudar na escolha dos modelos em que as decisões são tomadas pra valer. É tão somente na hora de o modelo tomar a forma de uma obra qualquer é que se abre uma janela para a participação popular. “Sobram as audiências públicas [3] onde vou discutir um projeto que já está praticamente todo decidido”, completa Nereide.
[3] Geralmente realizadas no contexto do Licenciamento Ambiental de grandes obras, as audiências públicas permitem que qualquer cidadão faça perguntas e apresente sugestões sobre o tema em debate.
Deve ser por isso que tais audiências acabam ficando com um jeito danado de exercício de psicodrama. Evidente que elas são essenciais para dar vez e voz à população interessada numa determinada obra ou projeto, mas a ferramenta tem limites. Segundo o coordenador de licenciamento do Ibama, Thomaz de Toledo, é comum ver conflitos ideológicos desaguarem nas audiências.“Tem gente que aparece querendo questionar toda a matriz energética brasileira. Só que o objeto da audiência são os impactos de uma obra em particular”, explica o técnico.
Embora simpatize com o que qualifica como “manifestações válidas” dos cidadãos, Toledo ressalta que embaralhar as estações pode ter um efeito nocivo. “Perdemos oportunidade de falar sobre o projeto específico”, alerta.
Na prática, significa que levar certas questões para as audiências equivale a tentar redecorar uma casa em chamas. Esse é o sentimento do coordenador do Programa de Mudanças Climáticas do WWF-Brasil, Carlos Rittl. “É pouco efetivo discutir os projetos individualmente. Você consegue impor uma condicionante aqui e ali, mas não mudar o empreendimento”, reclama. “O que precisamos é de um olhar macro sobre as necessidades do País”, protesta.
A ideia é parar de tentar mudar o Brasil no varejo e partir para o atacado. Para que gastar energia tentando conseguir mudanças mínimas se podemos, por exemplo, optar por mais investimentos em eficiência energética e fontes eólicas? Ricardo Montagner, da coordenação do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), informa que essa organização – famosa pela postura combativa – anda tentando agir nesse sentido. “Estamos trabalhando em uma plataforma energética que veja a energia como direito e não como mercadoria”, explica, acrescentando que, em meados de março, representantes do MAB começaram a circular por órgãos governamentais com cópias do plano debaixo do braço.
Grandes obras
A guerra só será vencida se chegarmos ao andar de cima, mas tem uma porção de batalhas no térreo que não devem ser menosprezadas e não estão nada fáceis de ganhar.
Sobram acusações a respeito da postura que o governo tem adotado sempre que seus projetos estratégicos são contrariados. “Onde tem resistência de grupos organizados você até consegue alguma compensação, mas sobre as obras do PAC não tem diálogo possível. Eles vão executar e pronto”, resume o assessor da Pastoral da Terra, Roberto Malvezzi, caracterizando a postura como “autoritária e contrária aos direitos coletivos dos povos locais”.
O coordenador de políticas públicas do Greenpeace, Nilo D’Avila, não tem dúvidas de que anda faltando tato e bota a culpa no que ele chama de uma “postura cartorial em relação ao processo de licenciamento”. “Virou tudo cartório, eles (o governo) não querem fazer consulta nenhuma, querem só mais um carimbo para conseguir a licença ambiental e começar a construir”, ataca, ironizando que, na falta do carimbo, “eles até inventam figuras jurídicas novas como a ‘licença fracionada’” [4].
[4] Diz-se que uma licença ambiental foi fracionada quando cada etapa do projeto é licenciada individualmente. Assim, etapas preliminares, como canteiros e infraestrutura de construção, podem ser iniciadas antes de todas as condicionantes serem cumpridas.
Fica ainda mais difícil confiar na boa vontade governamental, quando se tomam decisões impopulares sem o menor aviso. O caso mais recente é o pacote de decretos acertado entre as pastas da Casa Civil, dos Transportes e do Meio Ambiente, que dispensaria obras de duplicação, melhorias e manutenção de estradas e ferrovias já construídas, com grande impacto em termos de desmatamento, já que são indutoras de ocupação. O pacote estende-se a outros itens, como portos, hidrovias, linhas de transmissão e exploração de petróleo.
A esta altura, Belo Monte tornou-se um caso emblemático de como a oposição entre governo e sociedade civil pode ficar encarniçada. O projeto prevê três barragens no Rio Xingu que, juntas, podem gerar até 11,2 mil megawatts, o que faz dela a terceira maior usina do planeta – atrás da binacional Brasil-Paraguai Itaipu e da chinesa Três Gargantas. Oficialmente, a obra custará R$ 19 bilhões, mas há quem diga que ela não sai por menos de R$ 30 bilhões e também que, durante a estiagem, a capacidade de geração deve despencar para 40% da capacidade total.
Dom Erwin Kräutler pinta o caso com cores fortes. O lago da barragem deve desalojar 30 mil pessoas, que até agora não sabem bem para onde serão levadas. “Não estamos falando de 30 famílias, mas de dezenas de milhares de pessoas que moram aqui há três ou quatro gerações e têm rosto e nome… para qual futuro estão indo?”, preocupa-se. Em seu relato, as audiências públicas em Altamira – município que deve ficar cercado pelo lago da usina – não passaram de um rito. “O governo federal não estava a fim de discutir nada, só queriam colocar a população a par do que tinha sido decidido”, diz, consternado. (Mais na seção Retrato dest edição)
Antes que alguém imagine que ele possa estar exagerando na dose, Ricardo Montagner aponta que durante quatro anos o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) investigou denúncias sobre violações de direitos humanos apresentadas pelo MAB. A conclusão foi a de que “o padrão vigente de implantação de barragens tem propiciado de maneira recorrente graves violações de direitos humanos”.
Sem discussão
Não é a primeira vez – nem a primeira obra – que o governo é acusado de chegar às audiências públicas sem disposição para escutar. Roberto Malvezzi vem acompanhando outro imbróglio famoso há anos: a transposição do Rio São Francisco. “O governo chegou com a decisão de fazer a obra já tomada e toda a conversa teria de ser a posteriori. Nunca perguntaram para a população se ela concordava ou se queria alguma outra coisa”, relata.
Rittl, do WWF, considera que audiências são importantes, mas “têm-se mostrado pouco efetivas”, por não terem caráter deliberativo. “A prioridade desses empreendimentos é sempre o próprio empreendimento; em contrapartida, atender as condicionantes socioambientais e cumprir as promessas de mitigação não são”, reclama.
Evidentemente, a análise do Ibama é menos sombria. Toledo garante que é possível conseguir modificações importantes nas audiências e aponta o caso da Hidrelétrica de Teles Pires, em Mato Grosso, no qual uma série de compensações e demandas objetivas foi incorporada. Mas reconhece que a Resolução Conama Nº 9 – que regulamenta as audiências – é de 1987 e, portanto, há espaço para melhoria. “Grande parte do tempo das audiências é gasta com esclarecimentos de pontos que poderiam ser antecipados por outros meios”, esclarece, indicando que, não fosse por isso, sobraria mais tempo para o que interessa.
E nem toda a culpa deve ser debitada na conta do governo. Nereide ressalta que “nem sempre levamos a participação a sério” e que a cidadania plena exige que o cidadão comum assuma responsabilidades. “A participação é uma coisa recente, e o responsável por essa educação é o ente público. Ele tem obrigação de trazer a população para esse processo”, comenta. O conselho exala bom-senso, especialmente quando se lembra que esses projetos são bancados pelo cofre da viúva – dinheiro de nossos impostos. “Quando começaram a construir a usina de Jirau, todo mundo avisou que seria impossível fazer com o orçamento previsto. O preço já está em 50% a mais e estamos falando de uma obra de R$ 9 bilhões”, pontua Nilo D’Avila, do Greenpeace.
Isso sem mencionar a onda de protestos – alguns bastante violentos – que estourou entre os trabalhadores de Jirau em 16 de março e se espalhavam pelos canteiros de obras da usina de Pecém, no Ceará, e da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco. Os operários reclamam de condições abusivas de trabalho e baixos salários.
É importante que a gente resolva essa questão porque, como vimos, reclamar para o bispo não vai resolver. E não é por falta de empenho do bispo.