A obsolescência programada tem-se tornado cada vez mais abusiva. A mudança de valores e a migração da economia de produtos para a de serviços são alguns antídotos para a sociedade descartável
O aniversário de 110 anos de uma lâmpada – acesa – causou alvoroço em junho deste ano na cidade de Livermore, na Califórnia, Estados Unidos. Feita à mão pelo inventor Adolphe Chaillet para presentear o Corpo de Bombeiros local, a lâmpada de 60 watts foi festejada pelas ruas, conquistou posição no livro dos recordes e virou uma das principais atrações turísticas da região. Ganhou até página em rede social. A notícia sobre a comemoração alastrou-se pelo mundo e acendeu uma série de questionamentos para milhares de consumidores. Se é possível uma lâmpada funcionar por tanto tempo, por qual razão modelos duráveis como este não estão disponíveis no armazém de cada esquina?
Talvez o criador da lâmpada tivesse essa resposta. Mas a vida de Chaillet não foi tão longa quanto a de sua invenção, e com ele morreu também a tecnologia que permitia a longevidade do filamento. No entanto, ainda que fosse possível reproduzi-la, dificilmente a lâmpada centenária sobreviveria à força de um acordo firmado na década de 1920 pelos fabricantes de lâmpadas. Ao se dar conta de que as pessoas consumiriam cada vez menos se o produto durasse mais, o setor protagonizou o primeiro cartel mundial, vigente até hoje. De lá para cá, todas as lâmpadas que chegam às prateleiras já nascem marcadas para morrer no mesmo limite “xis” de horas.
A história desse cartel revela práticas industriais pouco claras, para não dizer obscuras, baseadas numa artimanha mercadológica conhecida pelo nome de obsolescência programada. A estratégia consiste na fabricação de produtos planejados para funcionar por um período curto, tendo de ser substituídos por outros mais modernos, em uma lógica dedicada a estimular o consumo constante – motor do capitalismo tradicional. O documentário produzido pela televisão espanhola RTVE, Comprar, Descartar, Comprar: a história secreta da obsolescência programada, conta bem essa prática empresarial desde os anos 1920.
Ao longo dos anos, a obsolescência programada tem-se tornado cada vez mais abusiva. De um lado, a indústria justifica: o consumo não pode parar. De outro, a população dá de ombros: o ato de consumir está tão arraigado que é considerado absolutamente natural pela maioria. Mas há uma terceira via – o coro dos descontentes que, aos poucos, impulsiona alternativas. Trata-se, principalmente, de iniciativas voltadas para uma revisão de padrões e hábitos de consumo.
De acordo com o professor Hélio Silva, autor do livro Marketing: Uma visão crítica, esse movimento também tem forçado o mercado a repensar sua atuação, até hoje baseada na velha ideia de que os recursos naturais são infinitos. A tendência, nesse sentido, é ampliar a oferta de serviços e diminuir a quantidade de artigos fabricados. Essa nova economia estaria cada vez mais centrada em “processos” do que em “produtos”, valorizando o conhecimento e a criatividade. Exemplo: quando se vende o serviço mobilidade por meio de um car sharing, em vez de vender o produto carro, o mercado não vê mais vantagem na obsolescência. Ao contrário, o interesse passa a ser de que o carro compartilhado dure mais tempo.
“Tecnologia também é conhecimento e esse é o grande capital da atualidade. Isso significa dizer que não é necessário ampliar a produção e, sim, aprimorar a qualidade do que já temos. Ou seja, desenvolver tecnologias menos impactantes ambientalmente e que cumpram com alguma função social”, reforça Silva, que leciona publicidade no Senac-SP.
O professor acredita que a guinada das empresas só virá com pressão social. Para ele, as organizações continuam agindo como há 50 anos, porque se movem pela oportunidade de negócios e até agora tem sido muito rentável apostar em produtos. Se duas ou três empresas dominam cada segmento do mercado, a margem de saída para o consumidor fica praticamente suprimida. “O que vislumbro é a organização da sociedade civil em iniciativas conjuntas”, defende.
Multidão insatisfeita
Apaixonada por tecnologia, a socióloga e jornalista Brunna Rosa viveu dias amargos com seu iPhone no mês de agosto. Após identificar que o aparelho não emitia sinais vitais, a moradora da capital fluminense buscou o auxílio da marca fabricante. “Imagine a minha surpresa ao descobrir que a Apple não se responsabiliza pela assistência técnica dos iPhone. Produzem o material, mas, segundo eles, esse é um problema das operadoras. É surreal”, reclama.
Indagada sobre a durabilidade de seus produtos, a Apple Brasil afirmou que “não tem porta-vozes que possam conceder entrevistas” e sugeriu que a reportagem visitasse uma página web sobre a relação da empresa com o meio ambiente. Enquanto isso, Brunna constatou que enviar o aparelho para o conserto também não traz nenhuma vantagem econômica: o custo seria de R$ 813, ante R$ 900 por um aparelho novo.
O último levantamento realizado pelos Procon em todo o País, referente a 2010, revela que o problema vivido por Brunna é experimentado por uma multidão de brasileiros. O segmento aparelho celular foi o campeão no ranking geral de protestos, representando 32% dos 67 mil casos analisados. Os três principais alvos de contestação são garantia, defeitos de fabricação e falta de peças para a reposição.
A coordenadora do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), Lisa Gunn, acredita que a legislação vigente salvaguarda os direitos dos consumidores individualmente, mas que minimizar os danos ambientais impostos pelo consumo excessivo é uma atitude que passa, necessariamente, pelo bolso das empresas. “Percebemos que o mercado incorporou o discurso da sustentabilidade a seu favor, mas pouco ou nada está sendo feito na prática. Os fabricantes precisam arcar com as consequências ambientais dos seus produtos e esse custo precisa ser maior do que o lucro que eles têm com a obsolescência programada”, afirma.
Na avaliação de Lisa, a nova Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) – em vigor desde agosto de 2010, após tramitar por duas décadas no Congresso Nacional – pode trazer avanços do ponto de vista do uso e consumo mais racional de recursos naturais e energéticos. “Temos expectativa de que seja implementada a logística reversa [1]. Não adianta o fabricante simplesmente pintar de verde aquilo que produz. Queremos que chegue o tempo em que as empresas deixem de lançar um novo produto a cada seis meses e se dediquem a formular novas funcionalidades para um mesmo produto”, diz.
[1] Um dos pontos mais polêmicos da PNRS, a logística reversa dispõe sobre a gestão dos resíduos e fixa regras claras para o retorno de produtos e embalagens ao seu centro produtivo ou descarte, considerando o cuidado com o meio ambiente
A reportagem buscou entrevistar representantes da Associação Nacional de Fabricantes de Produtos Eletroeletrônicos e das marcas Nokia, LG, além da Apple, sobre a obsolescência programada – mas sem sucesso.
Reciclagem e reúso
Enquanto a mudança de valores e de comportamento em relação ao consumo leva tempo para se firmar, algumas iniciativas ao menos contribuem para diminuir o impacto de tanto resíduo gerado. Segundo estimativa do Pnuma, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, cada brasileiro descarta 0,5 quilo de lixo eletrônico por ano, o que nos colocaria na triste posição de país, entre os emergentes, que mais produz esse tipo de resíduo per capita. O agravante de conter metais pesados coloca o lixo eletrônico na lista dos produtos mais difíceis de reutilizar.
O atrativo financeiro, no entanto, seduz catadores de materiais recicláveis, que muitas vezes deixam a segurança com a própria saúde e o meio ambiente em segundo plano, abrindo equipamentos eletrônicos “na base da marretada” para extrair peças valiosas. “Veja o caso dos monitores de computador. O catador sabe que lá dentro tem fio de cobre, que tem um valor elevado no mercado. Mas ignora a existência de cádmio, fósforo, chumbo, mercúrio e platina, entre outros”, ressalta a engenheira química Araci Musolino, coordenadora de projetos do Instituto GEA – organização que trabalha com educação ambiental e apoio à implantação de coleta seletiva. [2]
[2] O Instituto GEA responde a dúvidas da população sobre lixo, coleta seletiva e reciclagem. (11) 3058-1088 ou institutogea@uol.com.br
De olho nessa realidade, o GEA e o Laboratório de Sustentabilidade da Universidade de São Paulo criaram o Projeto Eco-Eletro, que capacita catadores organizados em cooperativas na Grande São Paulo a tratar o equipamento eletrônico de maneira mais segura e rentável. Inaugurada em abril deste ano, a iniciativa já traz bons frutos e diversas cooperativas da região estão atuando de acordo com os conhecimentos adquiridos na sala de aula.
Gambiarra qualificada
Desmistificar o uso de equipamentos tecnológicos é uma das propostas do movimento MetaReciclagem. Trata-se de um grupo de pessoas que têm uma relação artesanal com a tecnologia: nas mãos deles, artigos como cafeteiras, tampas de panela e videocassetes podem dar origem a um computador de última geração. “Não tratamos de “reciclagem”, objetivamente, mas de “reúso” de equipamentos. E isso surge como uma resposta à obsolescência programada”, explica Felipe Fonseca, um dos fundadores da rede.
A propriedade intelectual do desenvolvimento tecnológico está no centro da discussão proposta pelo movimento. A existência de códigos e procedimentos industriais não permite que o usuário faça adaptação de produtos de acordo com suas necessidades. Uma das consequências desse modelo é que a maioria da população ainda considera a tecnologia uma caixa-preta, um bicho de sete cabeças.
De um lado a indústria mantém seus códigos de programação guardados a sete chaves no quarto escuro das patentes tecnológicas. De outro, a lâmpada centenária de Livermore nos sugere que é fundamental manter a teimosia acesa.