O aumento brutal da proporção de idosos até meados do século impõe novas práticas ao mercado, à economia e às políticas públicas, capazes de beneficiar cidadãos em todas as idades. Para isso, é oportuno rediscutir a promessa de que a juventude pode durar para sempre
“Levante a mão quem na plateia é a favor da malária”, provoca o pesquisador britânico Aubrey de Grey, durante palestra promovida pela rede TED (Technology, Entertainment, Design). Diante da inércia do público, o palestrante admite que a razão óbvia para a antipatia unânime é que a doença tropical mata pessoas, mas ele surpreende ao anunciar que outra mazela é causa de morte para muito mais gente – cerca de 100 mil óbitos por dia em todo o mundo –, e no entanto essa não escandaliza ninguém. Trata-se da velhice.
De Grey é um biogerontologista autodidata (especialista que estuda o fenômeno do envelhecimento sob o aspecto molecular e celular), empenhado em angariar apoio para sua Fundação Matusalém, cuja finalidade é desenvolver tratamentos para dissociar a idade da probabilidade de morrer. Em outras palavras, perpetuar a juventude por até mil anos. O empreendimento pode parecer delirante, mas ninguém ainda conseguiu demonstrar que sua teoria sobre formas de intervir no metabolismo humano esteja errada, em que pese um prêmio de US$ 20 mil oferecido pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) para quem alcançasse tal feito.
Ainda que as pretensões de De Grey sejam pura ficção científica, sua bandeira guarda relação com realidades contemporâneas bem concretas, aquelas que o leitor decerto já conhece: o avanço da medicina trouxe patamares inéditos de longevidade [1] a proporção de idosos está aumentando barbaramente, graças à baixa fecundidade na maioria dos países. Aparentemente, estamos vivendo mais e melhor.
[1] No Brasil, a expectativa de vida é de pouco mais de 73 anos, na média. No Japão, país com a maior esperança de vida do mundo, essa marca passa dos 82 anos
Mas há outro fenômeno, neste caso cultural, que faz com que o exótico cientista britânico nem pareça tão distante assim do senso comum. Já foi dito que vivemos em uma sociedade obcecada pela juventude e é possível identificar uma infinidade de mensagens segundo as quais a velhice propriamente dita – aquela do declínio cognitivo e das limitações físicas – está em extinção. De Grey poderia perguntar “tem algum velho aqui?” e receber de volta o mesmo silêncio cúmplice da plateia.
São muitas as interpretações possíveis para o estado de negação coletiva desta que é uma das poucas certezas da vida. A psicóloga Marisa Moura Verdade, especialista em psicologia da morte, arrisca a sua: tem a ver com uma espécie de mito do herói 2.0. “Numa sociedade em que você só é legal se for forte, poderoso, bem-sucedido, é fácil ficar viciado em heroísmo. Essa ideia está muito acoplada à juventude, desde a mitologia. Hércules morreu cedo, Aquiles também. Os heróis não envelhecem nunca.”
O significado do envelhecimento sofreu transformações tão radicais que levou a antropóloga Guita Grin Debert a escrever o livro A Reinvenção da Velhice. Ali, ela descreve como evoluiu a noção de que a fase final da vida pode ser dedicada à fruição e às delícias não mais exclusivas da juventude, desde a criação da aposentadoria, no final do século XIX, até o surgimento do termo “terceira idade”, na década de 1970.
Foi nessa época, com a criação das universidades para a terceira idade, na França, que se consolidou a oportunidade de aproveitar o tempo do idoso de forma socialmente integrada, para além do ambiente doméstico.
Até aí, nada mal. Faz todo o sentido perseguir o envelhecimento sadio e autônomo numa fase que tende a ser a mais longa da vida (acreditando-se que chegar aos 90 anos não é mais uma proeza), se comparada a outros períodos delineados como a infância, a adolescência, a juventude e a meia-idade.
Mas o panorama deixa de ser tão colorido se levarmos em conta o que Guita chama de “reprivatização da velhice”. Em poucas palavras, significa dizer que envelhecer bem passou a ser um problema seu. Só seu. Faça atividades físicas, não fume, vá ao médico regularmente e, acima de tudo, não esqueça a previdência privada. Anotou? Tudo vai dar certo.
A observação da antropóloga sugere um retorno à época em que o envelhecimento era uma questão de foro íntimo, um recolhimento de curta duração antes da morte, que só dizia respeito à família ou às instituições de caridade. Mas trata-se de uma privatização inteiramente nova. Nova porque ainda incorpora a influência da revolução da aposentadoria, quando a velhice evoca a “solidariedade pública entre as gerações” e passa a ser um problema social.
Resultado: hoje, fala-se exaustivamente sobre o envelhecimento ativo [2], tema que permanece sendo de interesse público, mas, se acaso alguém falhar, “é porque não cuidou do corpo como deveria, não estabeleceu boas relações com a família, não se envolveu em atividades motivadoras. Esse discurso se revela desde a prática médica até a comunicação de massas”, diz Guita. (No artigo O velho na propaganda, Guita Grin Debert aprofunda essa ideia com exemplos e entrevistas)
[2] Conceito criado pela OMS que se define como “processo de otimização das oportunidades de saúde, participação e segurança, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida à medida que as pessoas ficam mais velhas”
Um dos sintomas, segundo a especialista, são as políticas públicas, que estariam quase que exclusivamente voltadas para os idosos sem dificuldades físicas ou mentais, capazes de participar de programas para a terceira idade com práticas culturais e esportivas. Para os idosos debilitados pouco se oferece. Outro indicador seria o propalado mercado da terceira idade, que, para Guita, é muito mais de combate à velhice, como cosméticos e cirurgias plásticas, que de amparo às limitações da idade.
Consternado com o que considera uma “excessiva transferência da responsabilidade da velhice para o cidadão e para as famílias”, o jornalista Jorge Félix, também mestre e pesquisador do tema no Núcleo de Pesquisas Políticas para o Desenvolvimento Humano da PUC-SP, escreveu o livro Viver Muito: Outras ideias sobre envelhecer bem no século XXI (e como isso afeta a economia e o seu futuro), da editora Leya.
Para Félix, a “reprivatização da velhice” coincide com outro discurso, disseminado a partir da década de 1980, segundo o qual o Estado não pode ser responsável por tudo. É uma bela verdade, diz ele, e teria sido também uma saudável evolução não tivesse esse discurso evoluído para “a nova realidade de que o Estado, aos poucos, não é mais responsável por nada. Transporte, saúde, educação, tudo tem de correr por conta do contribuinte”, escreveu o jornalista.
No livro, Félix não hesita em informar que o ideal do idoso morador de Copacabana, que desfruta de sua aposentadoria integral caminhando no calçadão e tomando água de coco, é para poucos. O autor até mesmo aposta que o risco de uma velhice empobrecida é maior para “a geração iPod”. Mas, no final das contas, a mensagem de seu trabalho é que envelhecer bem, seja para os indivíduos, seja para o País, depende de múltiplos atores atuando em conjunto. Depende dos cidadãos, do Estado, das empresas e da economia.
Essa correlação de fatores fica mais clara quando se tem a dimensão da diversidade de impactos que acompanha o envelhecimento populacional. O Brasil tem hoje 21 milhões de pessoas com mais de 60 anos, o que equivale a 11% da população. Em 2050, segundo projeção do Banco Mundial, serão 64 milhões de idosos, ou quase um terço do total de brasileiros. A proporção é maior do que a verificada no Japão, atualmente o país mais envelhecido do mundo.
Isso muda tudo. Comportamentos, mercado de trabalho, políticas públicas, saúde, educação, economia, todos os pressupostos terão de ser revistos à luz da nova demografia, sob pena de comprometer o desenvolvimento.
Lá vem a bomba
José Eustáquio Diniz Alves, professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas, do IBGE, faz questão de ressaltar o quanto a sua especialidade – a demografia – sempre foi cercada de fatalismos. “Existe, no debate sobre população, um constante clima de desespero ou porque cresce muito ou porque está ameaçada a diminuir. Nas décadas de 50 e 60, quando ocorreu o maior crescimento da História, surgiu o livro A Bomba Populacional (de Paul Ehrlich, 1968) e todo mundo passou a usar essa expressão. Depois, com o envelhecimento, passou a ser a ‘implosão populacional’.” (mais em reportagem sobre demografia)
Para Alves, nenhum panorama é trágico, inevitavelmente. Tudo depende de se aproveitar o primeiro bônus demográfico para gerar um segundo. Explica-se: o primeiro é agora, quando a população economicamente ativa (PEA) é muito maior que a dos dependentes, circunstância ideal para o crescimento econômico. Se essa população envelhecer bem preparada, do ponto de vista da formação, da poupança e da longevidade com qualidade de vida, a próxima fase pode ser também virtuosa, diz o demógrafo.
Numa sociedade que envelhece muito e rapidamente, como é o caso do Brasil, a PEA é o patrimônio mais importante. Félix ressalta duas missões fundamentais: manter as pessoas trabalhando por mais tempo e garantir que, mesmo depois da aposentadoria, a independência física e financeira se preserve ao máximo, para reduzir o encargo sobre as gerações mais jovens. Esses desafios também podem ser representados em duas áreas fundamentais: educação e saúde, ambas ligadas à autonomia.
Vamos começar pela segunda. “A nossa lógica sempre foi hospitalar, de tratamento. Agora temos que fazer o contrário”, diz o médico Renato Veras, professor da UFRJ e especialista em saúde coletiva e envelhecimento humano. Mudar esse foco, do tratamento para a prevenção, é como manobrar um transatlântico. A estrutura de saúde centrada em doenças agudas em uma população jovem, cujo atendimento geralmente leva à cura, é completamente diferente daquela que tem de se deparar com doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, mais frequentes numa sociedade envelhecida.
“Há 30 anos, o número de especialistas, exames complementares e equipamentos era muito menor. Era uma medicina mais simplista. A sofisticação ampliou o tempo de vida, é uma grande conquista, porém o custo aumentou muito”, afirma Veras. Essa é uma conta essencialmente pública, já que os altos preços de plano de saúde para quem tem mais de 60 anos afugentam essa clientela. Mais de 70% dos idosos brasileiros, hoje, são usuários do Sistema Único de Saúde (SUS).
A mudança requer uma gestão mais profissional na saúde pública, diz o especialista, voltada para a eficiência do uso dos recursos. “Hoje quase todo mundo repete que é favorável à prevenção. Mas, quando você vai ver, o que oferecem é palestra, uma besteirinha aqui e ali. Quando eu falo em prevenção, é uma coisa mais estruturada, de monitoramento direto dos pacientes, que não deixe as doenças crônicas evoluírem.”
O descaso histórico com a educação revela-se no saldo para os idosos brasileiros da atualidade. O analfabetismo funcional atinge mais de 50% deles. No futuro, essa proporção será menor, mas as exigências de um mercado de trabalho cada vez mais competitivo passam a ser maiores. Para Félix, a manutenção dos profissionais para além dos 60 anos dependerá de formação continuada e da diversificação das competências, o que implica rever o “fetichismo” brasileiro pelo diploma universitário, ampliando o acesso ao ensino técnico.
Fique conosco por mais alguns parágrafos, que a fieira de novos desafios para o futuro não para de crescer. Se o leitor tem entre 20 e 40 anos, pergunta-se: quem cuidará de você caso atinja uma idade avançada, com debilidade física ou mental? Para a Constituição brasileira, essa é uma responsabilidade das famílias. Mas como se articulará essa entidade diante das novas configurações contemporâneas, o alto número de divórcios, a emancipação feminina, menos filhos e a ascensão social que permite que familiares vivam em cidades e até países diferentes?
A conclusão fatal é que a velhice do futuro será mais cara. Seja porque o capital social dos núcleos familiares está rarefeito, seja porque a informalidade atinge hoje mais da metade dos trabalhadores no País – o que os exclui de benefícios como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço –, ou ainda por causa do aquecimento global. Sim, as mudanças do clima também trazem implicações para o orçamento dos idosos do futuro. “Hoje você paga tudo que pagava no passado para ter um carro, mas agora já tem uma nova taxinha, a do Controlar ”, explica Félix.
O exemplo citado por ele, em Viver Muito, é a água, tão essencial e cujo acesso tende a encarecer, devido às transformações ambientais. Segundo o Banco Mundial, a combinação da mudança do clima com o aumento da população reduzirá pela metade a quantidade de água per capita no planeta, até 2050.
Crise e oportunidade
Agora vamos às boas notícias. Há motivos razoáveis para crer que a nova demografia seja capaz de forçar mudanças positivas, em benefício de toda a sociedade. O primeiro deles envolve, como já dissemos, rediscutir o papel do Estado na cobertura de serviços essenciais, como educação, saúde e transporte.
Apesar de ressaltar que a atual crise econômica está motivando o movimento contrário – ou seja, a redução do Welfare State –, a economista Ana Amélia Camarano, uma das maiores especialistas brasileiras no tema do envelhecimento, reforça a mensagem de que concentrar esforços apenas na diminuição dos custos da Previdência não resolve o problema.
“Não é simplesmente fazer uma lei e mudar a idade mínima (para a aposentadoria). Você tem de reduzir preconceitos no mercado de trabalho, instituir uma política da saúde ocupacional, capacitação e atualização dessa mão de obra”, diz Ana Amélia. “Hoje há uma substituição da oferta – ou piora na qualidade – dos serviços oferecidos pelo Estado e um aumento de programas de renda. É mais fácil transferir renda do que fazer uma boa creche, treinar pessoal de saúde, fazer asilo. É assim: ‘Eu te dou renda, você se vira’.”
Outra tendência tem a ver com o que o Jorge Félix chama de economia da longevidade, uma nova lógica que se volta para o bem-estar da população como única forma de garantir a manutenção da PEA e a continuidade do desenvolvimento, no contexto de uma sociedade envelhecida.
“Esse capitalismo que beneficia o setor financeiro em detrimento da economia real é completamente incompatível com o bem-estar. Como? Colocando trabalhador na informalidade, explorando mais a mão de obra em termos de carga horária, não distribuindo o lucro… Eu não tenho dúvida de que o que vai balizar uma nova receita econômica é a dinâmica populacional.”
Isso também significa romper o preconceito contra os idosos no mercado de trabalho, o que, segundo a ministra britânica da Igualdade Social, Harriet Harman, acarreta perdas de mais de 30 bilhões de libras para o PIB daquele país. Simples assim: atualmente, no Brasil, entram dez pessoas no mercado de trabalho para cada idoso que se aposenta. Em 2050, essa proporção passará a ser de um para um. Será cada vez mais difícil para as empresas ignorar o profissional qualificado com mais de 60 anos e, consequentemente, o papel do setor privado na promoção da qualidade de vida.
Segundo Félix, o antagonismo que se criou em torno dos idosos e sua relação com inovação e tecnologia tem menos a ver com a idade e muito mais com a exclusão desse segmento do sistema educacional brasileiro.
E, até para o urbanismo, o envelhecimento da população traz boas recomendações. O médico Alexandre Kalache, responsável durante 12 anos pelos programas para a terceira idade da Organização Mundial da Saúde, formulou, em 2007, o Guia Global: Cidade Amiga do Idoso.
O manual vem recheado de boas práticas, como redução da poluição do ar, mobilidade acessível e confortável – o que inclui as calçadas –, ampliação de áreas verdes e espaços para atividade física, tudo aquilo que torna uma cidade amigável, ao fim e ao cabo, para todo mundo. Talvez por isso a OMS trabalhe com o conceito de “sociedade para todas as idades”, mote do Ano Internacional do Idoso, em 1999.
Mas, para que toda essa revisão de paradigmas se torne realidade, é preciso, antes de qualquer coisa, reconhecer que a velhice chegará para todos (na melhor das hipóteses!), apesar do que nos dizem o mercado, a publicidade, boa parcela dos jornalistas e também a encantadora Elza Soares, em entrevista nesta edição.
A psicóloga Marisa Verdade conta que passou a usar uma bengala por causa de artrose. Uma amiga, quando a viu pela primeira vez com o suporte, caiu em prantos. Marisa infere que a reação tem a ver com a associação velhice = morte, sua área de especialidade. Ela explica que essa dificuldade de lidar com a finitude da vida é ainda mais acentuada nos dias hoje, já que temos pouco contato com a morte no cotidiano, o que nos impede de “domesticar o evento”.
“Quando eu era criança, a minha mãe me levava para comprar frango aqui na rua. A gente escolhia o animal, e a vendedora matava e depenava ali na nossa frente. Os velórios, também, costumavam ser na casa das pessoas. Hoje em dia quem é que tem esse contato com a morte?”, indaga.
Entre as tantas despedidas que a idade avançada encerra, uma das mais importantes de elaborar com desenvoltura, segundo a psicóloga, é a dos referenciais de felicidade em outras fases da vida. Ela costumava brincar com um amigo da mesma faixa etária, que insistia em defender “o espírito jovem”, o “menino” dentro dele: “Mas me deixa viver o novo de ser velha! Eu nunca tive esse corpo, esse jeito de andar. A gente é levado a acreditar que novidade só existe na juventude, e não é verdade”.
Para terminar, ela cita o psicólogo junguiano James Hillman, para quem a velhice é “vida em fase de partida”. Mas é vida.[:en]O aumento brutal da proporção de idosos até meados do século impõe novas práticas ao mercado, à economia e às políticas públicas, capazes de beneficiar cidadãos em todas as idades. Para isso, é oportuno rediscutir a promessa de que a juventude pode durar para sempre
“Levante a mão quem na plateia é a favor da malária”, provoca o pesquisador britânico Aubrey de Grey, durante palestra promovida pela rede TED (Technology, Entertainment, Design). Diante da inércia do público, o palestrante admite que a razão óbvia para a antipatia unânime é que a doença tropical mata pessoas, mas ele surpreende ao anunciar que outra mazela é causa de morte para muito mais gente – cerca de 100 mil óbitos por dia em todo o mundo –, e no entanto essa não escandaliza ninguém. Trata-se da velhice.
De Grey é um biogerontologista autodidata (especialista que estuda o fenômeno do envelhecimento sob o aspecto molecular e celular), empenhado em angariar apoio para sua Fundação Matusalém, cuja finalidade é desenvolver tratamentos para dissociar a idade da probabilidade de morrer. Em outras palavras, perpetuar a juventude por até mil anos. O empreendimento pode parecer delirante, mas ninguém ainda conseguiu demonstrar que sua teoria sobre formas de intervir no metabolismo humano esteja errada, em que pese um prêmio de US$ 20 mil oferecido pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) para quem alcançasse tal feito.
Ainda que as pretensões de De Grey sejam pura ficção científica, sua bandeira guarda relação com realidades contemporâneas bem concretas, aquelas que o leitor decerto já conhece: o avanço da medicina trouxe patamares inéditos de longevidade [1] a proporção de idosos está aumentando barbaramente, graças à baixa fecundidade na maioria dos países. Aparentemente, estamos vivendo mais e melhor.
[1] No Brasil, a expectativa de vida é de pouco mais de 73 anos, na média. No Japão, país com a maior esperança de vida do mundo, essa marca passa dos 82 anos
Mas há outro fenômeno, neste caso cultural, que faz com que o exótico cientista britânico nem pareça tão distante assim do senso comum. Já foi dito que vivemos em uma sociedade obcecada pela juventude e é possível identificar uma infinidade de mensagens segundo as quais a velhice propriamente dita – aquela do declínio cognitivo e das limitações físicas – está em extinção. De Grey poderia perguntar “tem algum velho aqui?” e receber de volta o mesmo silêncio cúmplice da plateia.
São muitas as interpretações possíveis para o estado de negação coletiva desta que é uma das poucas certezas da vida. A psicóloga Marisa Moura Verdade, especialista em psicologia da morte, arrisca a sua: tem a ver com uma espécie de mito do herói 2.0. “Numa sociedade em que você só é legal se for forte, poderoso, bem-sucedido, é fácil ficar viciado em heroísmo. Essa ideia está muito acoplada à juventude, desde a mitologia. Hércules morreu cedo, Aquiles também. Os heróis não envelhecem nunca.”
O significado do envelhecimento sofreu transformações tão radicais que levou a antropóloga Guita Grin Debert a escrever o livro A Reinvenção da Velhice. Ali, ela descreve como evoluiu a noção de que a fase final da vida pode ser dedicada à fruição e às delícias não mais exclusivas da juventude, desde a criação da aposentadoria, no final do século XIX, até o surgimento do termo “terceira idade”, na década de 1970.
Foi nessa época, com a criação das universidades para a terceira idade, na França, que se consolidou a oportunidade de aproveitar o tempo do idoso de forma socialmente integrada, para além do ambiente doméstico.
Até aí, nada mal. Faz todo o sentido perseguir o envelhecimento sadio e autônomo numa fase que tende a ser a mais longa da vida (acreditando-se que chegar aos 90 anos não é mais uma proeza), se comparada a outros períodos delineados como a infância, a adolescência, a juventude e a meia-idade.
Mas o panorama deixa de ser tão colorido se levarmos em conta o que Guita chama de “reprivatização da velhice”. Em poucas palavras, significa dizer que envelhecer bem passou a ser um problema seu. Só seu. Faça atividades físicas, não fume, vá ao médico regularmente e, acima de tudo, não esqueça a previdência privada. Anotou? Tudo vai dar certo.
A observação da antropóloga sugere um retorno à época em que o envelhecimento era uma questão de foro íntimo, um recolhimento de curta duração antes da morte, que só dizia respeito à família ou às instituições de caridade. Mas trata-se de uma privatização inteiramente nova. Nova porque ainda incorpora a influência da revolução da aposentadoria, quando a velhice evoca a “solidariedade pública entre as gerações” e passa a ser um problema social.
Resultado: hoje, fala-se exaustivamente sobre o envelhecimento ativo [2], tema que permanece sendo de interesse público, mas, se acaso alguém falhar, “é porque não cuidou do corpo como deveria, não estabeleceu boas relações com a família, não se envolveu em atividades motivadoras. Esse discurso se revela desde a prática médica até a comunicação de massas”, diz Guita. (No artigo O velho na propaganda, Guita Grin Debert aprofunda essa ideia com exemplos e entrevistas)
[2] Conceito criado pela OMS que se define como “processo de otimização das oportunidades de saúde, participação e segurança, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida à medida que as pessoas ficam mais velhas”
Um dos sintomas, segundo a especialista, são as políticas públicas, que estariam quase que exclusivamente voltadas para os idosos sem dificuldades físicas ou mentais, capazes de participar de programas para a terceira idade com práticas culturais e esportivas. Para os idosos debilitados pouco se oferece. Outro indicador seria o propalado mercado da terceira idade, que, para Guita, é muito mais de combate à velhice, como cosméticos e cirurgias plásticas, que de amparo às limitações da idade.
Consternado com o que considera uma “excessiva transferência da responsabilidade da velhice para o cidadão e para as famílias”, o jornalista Jorge Félix, também mestre e pesquisador do tema no Núcleo de Pesquisas Políticas para o Desenvolvimento Humano da PUC-SP, escreveu o livro Viver Muito: Outras ideias sobre envelhecer bem no século XXI (e como isso afeta a economia e o seu futuro), da editora Leya.
Para Félix, a “reprivatização da velhice” coincide com outro discurso, disseminado a partir da década de 1980, segundo o qual o Estado não pode ser responsável por tudo. É uma bela verdade, diz ele, e teria sido também uma saudável evolução não tivesse esse discurso evoluído para “a nova realidade de que o Estado, aos poucos, não é mais responsável por nada. Transporte, saúde, educação, tudo tem de correr por conta do contribuinte”, escreveu o jornalista.
No livro, Félix não hesita em informar que o ideal do idoso morador de Copacabana, que desfruta de sua aposentadoria integral caminhando no calçadão e tomando água de coco, é para poucos. O autor até mesmo aposta que o risco de uma velhice empobrecida é maior para “a geração iPod”. Mas, no final das contas, a mensagem de seu trabalho é que envelhecer bem, seja para os indivíduos, seja para o País, depende de múltiplos atores atuando em conjunto. Depende dos cidadãos, do Estado, das empresas e da economia.
Essa correlação de fatores fica mais clara quando se tem a dimensão da diversidade de impactos que acompanha o envelhecimento populacional. O Brasil tem hoje 21 milhões de pessoas com mais de 60 anos, o que equivale a 11% da população. Em 2050, segundo projeção do Banco Mundial, serão 64 milhões de idosos, ou quase um terço do total de brasileiros. A proporção é maior do que a verificada no Japão, atualmente o país mais envelhecido do mundo.
Isso muda tudo. Comportamentos, mercado de trabalho, políticas públicas, saúde, educação, economia, todos os pressupostos terão de ser revistos à luz da nova demografia, sob pena de comprometer o desenvolvimento.
Lá vem a bomba
José Eustáquio Diniz Alves, professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas, do IBGE, faz questão de ressaltar o quanto a sua especialidade – a demografia – sempre foi cercada de fatalismos. “Existe, no debate sobre população, um constante clima de desespero ou porque cresce muito ou porque está ameaçada a diminuir. Nas décadas de 50 e 60, quando ocorreu o maior crescimento da História, surgiu o livro A Bomba Populacional (de Paul Ehrlich, 1968) e todo mundo passou a usar essa expressão. Depois, com o envelhecimento, passou a ser a ‘implosão populacional’.” (mais em reportagem sobre demografia)
Para Alves, nenhum panorama é trágico, inevitavelmente. Tudo depende de se aproveitar o primeiro bônus demográfico para gerar um segundo. Explica-se: o primeiro é agora, quando a população economicamente ativa (PEA) é muito maior que a dos dependentes, circunstância ideal para o crescimento econômico. Se essa população envelhecer bem preparada, do ponto de vista da formação, da poupança e da longevidade com qualidade de vida, a próxima fase pode ser também virtuosa, diz o demógrafo.
Numa sociedade que envelhece muito e rapidamente, como é o caso do Brasil, a PEA é o patrimônio mais importante. Félix ressalta duas missões fundamentais: manter as pessoas trabalhando por mais tempo e garantir que, mesmo depois da aposentadoria, a independência física e financeira se preserve ao máximo, para reduzir o encargo sobre as gerações mais jovens. Esses desafios também podem ser representados em duas áreas fundamentais: educação e saúde, ambas ligadas à autonomia.
Vamos começar pela segunda. “A nossa lógica sempre foi hospitalar, de tratamento. Agora temos que fazer o contrário”, diz o médico Renato Veras, professor da UFRJ e especialista em saúde coletiva e envelhecimento humano. Mudar esse foco, do tratamento para a prevenção, é como manobrar um transatlântico. A estrutura de saúde centrada em doenças agudas em uma população jovem, cujo atendimento geralmente leva à cura, é completamente diferente daquela que tem de se deparar com doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, mais frequentes numa sociedade envelhecida.
“Há 30 anos, o número de especialistas, exames complementares e equipamentos era muito menor. Era uma medicina mais simplista. A sofisticação ampliou o tempo de vida, é uma grande conquista, porém o custo aumentou muito”, afirma Veras. Essa é uma conta essencialmente pública, já que os altos preços de plano de saúde para quem tem mais de 60 anos afugentam essa clientela. Mais de 70% dos idosos brasileiros, hoje, são usuários do Sistema Único de Saúde (SUS).
A mudança requer uma gestão mais profissional na saúde pública, diz o especialista, voltada para a eficiência do uso dos recursos. “Hoje quase todo mundo repete que é favorável à prevenção. Mas, quando você vai ver, o que oferecem é palestra, uma besteirinha aqui e ali. Quando eu falo em prevenção, é uma coisa mais estruturada, de monitoramento direto dos pacientes, que não deixe as doenças crônicas evoluírem.”
O descaso histórico com a educação revela-se no saldo para os idosos brasileiros da atualidade. O analfabetismo funcional atinge mais de 50% deles. No futuro, essa proporção será menor, mas as exigências de um mercado de trabalho cada vez mais competitivo passam a ser maiores. Para Félix, a manutenção dos profissionais para além dos 60 anos dependerá de formação continuada e da diversificação das competências, o que implica rever o “fetichismo” brasileiro pelo diploma universitário, ampliando o acesso ao ensino técnico.
Fique conosco por mais alguns parágrafos, que a fieira de novos desafios para o futuro não para de crescer. Se o leitor tem entre 20 e 40 anos, pergunta-se: quem cuidará de você caso atinja uma idade avançada, com debilidade física ou mental? Para a Constituição brasileira, essa é uma responsabilidade das famílias. Mas como se articulará essa entidade diante das novas configurações contemporâneas, o alto número de divórcios, a emancipação feminina, menos filhos e a ascensão social que permite que familiares vivam em cidades e até países diferentes?
A conclusão fatal é que a velhice do futuro será mais cara. Seja porque o capital social dos núcleos familiares está rarefeito, seja porque a informalidade atinge hoje mais da metade dos trabalhadores no País – o que os exclui de benefícios como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço –, ou ainda por causa do aquecimento global. Sim, as mudanças do clima também trazem implicações para o orçamento dos idosos do futuro. “Hoje você paga tudo que pagava no passado para ter um carro, mas agora já tem uma nova taxinha, a do Controlar ”, explica Félix.
O exemplo citado por ele, em Viver Muito, é a água, tão essencial e cujo acesso tende a encarecer, devido às transformações ambientais. Segundo o Banco Mundial, a combinação da mudança do clima com o aumento da população reduzirá pela metade a quantidade de água per capita no planeta, até 2050.
Crise e oportunidade
Agora vamos às boas notícias. Há motivos razoáveis para crer que a nova demografia seja capaz de forçar mudanças positivas, em benefício de toda a sociedade. O primeiro deles envolve, como já dissemos, rediscutir o papel do Estado na cobertura de serviços essenciais, como educação, saúde e transporte.
Apesar de ressaltar que a atual crise econômica está motivando o movimento contrário – ou seja, a redução do Welfare State –, a economista Ana Amélia Camarano, uma das maiores especialistas brasileiras no tema do envelhecimento, reforça a mensagem de que concentrar esforços apenas na diminuição dos custos da Previdência não resolve o problema.
“Não é simplesmente fazer uma lei e mudar a idade mínima (para a aposentadoria). Você tem de reduzir preconceitos no mercado de trabalho, instituir uma política da saúde ocupacional, capacitação e atualização dessa mão de obra”, diz Ana Amélia. “Hoje há uma substituição da oferta – ou piora na qualidade – dos serviços oferecidos pelo Estado e um aumento de programas de renda. É mais fácil transferir renda do que fazer uma boa creche, treinar pessoal de saúde, fazer asilo. É assim: ‘Eu te dou renda, você se vira’.”
Outra tendência tem a ver com o que o Jorge Félix chama de economia da longevidade, uma nova lógica que se volta para o bem-estar da população como única forma de garantir a manutenção da PEA e a continuidade do desenvolvimento, no contexto de uma sociedade envelhecida.
“Esse capitalismo que beneficia o setor financeiro em detrimento da economia real é completamente incompatível com o bem-estar. Como? Colocando trabalhador na informalidade, explorando mais a mão de obra em termos de carga horária, não distribuindo o lucro… Eu não tenho dúvida de que o que vai balizar uma nova receita econômica é a dinâmica populacional.”
Isso também significa romper o preconceito contra os idosos no mercado de trabalho, o que, segundo a ministra britânica da Igualdade Social, Harriet Harman, acarreta perdas de mais de 30 bilhões de libras para o PIB daquele país. Simples assim: atualmente, no Brasil, entram dez pessoas no mercado de trabalho para cada idoso que se aposenta. Em 2050, essa proporção passará a ser de um para um. Será cada vez mais difícil para as empresas ignorar o profissional qualificado com mais de 60 anos e, consequentemente, o papel do setor privado na promoção da qualidade de vida.
Segundo Félix, o antagonismo que se criou em torno dos idosos e sua relação com inovação e tecnologia tem menos a ver com a idade e muito mais com a exclusão desse segmento do sistema educacional brasileiro.
E, até para o urbanismo, o envelhecimento da população traz boas recomendações. O médico Alexandre Kalache, responsável durante 12 anos pelos programas para a terceira idade da Organização Mundial da Saúde, formulou, em 2007, o Guia Global: Cidade Amiga do Idoso.
O manual vem recheado de boas práticas, como redução da poluição do ar, mobilidade acessível e confortável – o que inclui as calçadas –, ampliação de áreas verdes e espaços para atividade física, tudo aquilo que torna uma cidade amigável, ao fim e ao cabo, para todo mundo. Talvez por isso a OMS trabalhe com o conceito de “sociedade para todas as idades”, mote do Ano Internacional do Idoso, em 1999.
Mas, para que toda essa revisão de paradigmas se torne realidade, é preciso, antes de qualquer coisa, reconhecer que a velhice chegará para todos (na melhor das hipóteses!), apesar do que nos dizem o mercado, a publicidade, boa parcela dos jornalistas e também a encantadora Elza Soares, em entrevista nesta edição.
A psicóloga Marisa Verdade conta que passou a usar uma bengala por causa de artrose. Uma amiga, quando a viu pela primeira vez com o suporte, caiu em prantos. Marisa infere que a reação tem a ver com a associação velhice = morte, sua área de especialidade. Ela explica que essa dificuldade de lidar com a finitude da vida é ainda mais acentuada nos dias hoje, já que temos pouco contato com a morte no cotidiano, o que nos impede de “domesticar o evento”.
“Quando eu era criança, a minha mãe me levava para comprar frango aqui na rua. A gente escolhia o animal, e a vendedora matava e depenava ali na nossa frente. Os velórios, também, costumavam ser na casa das pessoas. Hoje em dia quem é que tem esse contato com a morte?”, indaga.
Entre as tantas despedidas que a idade avançada encerra, uma das mais importantes de elaborar com desenvoltura, segundo a psicóloga, é a dos referenciais de felicidade em outras fases da vida. Ela costumava brincar com um amigo da mesma faixa etária, que insistia em defender “o espírito jovem”, o “menino” dentro dele: “Mas me deixa viver o novo de ser velha! Eu nunca tive esse corpo, esse jeito de andar. A gente é levado a acreditar que novidade só existe na juventude, e não é verdade”.
Para terminar, ela cita o psicólogo junguiano James Hillman, para quem a velhice é “vida em fase de partida”. Mas é vida.