Do céu ao chão A energia solar mudou a realidade de uma comunidade na Guiné-Bissau, proporcionando água limpa, telecomunicação, oportunidades de formação e trabalho. São pistas de que a dependência externa tende a diminuir
“A iluminação noturna trouxe uma alegria imensa para nosso povo.” Foram essas as palavras usadas em um discurso em Genebra por Agostinho António Lopes, 48, morador de Bissa – localizada a cerca de 40 quilômetros de Bissau, capital deste país do oeste africano. No ano passado, 35 painéis solares foram instalados na comunidade no escopo do Projeto de Desenvolvimento da Agricultura e Pecuária, financiado pelo Ibas, um fundo de cooperação Sul-Sul, implementado pela Índia, o Brasil e a África do Sul em diversos países do Sul Global.
Na Guiné-Bissau, o projeto, que é executado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), visa combater a fome e a pobreza por meio do reforço das capacidades técnicas e tecnológicas dos produtores rurais em 24 “tabancas” – como as aldeias são chamadas na língua crioula da Guiné-Bissau.
Bissa, com 3.071 habitantes, é uma das tabancas-piloto para a instalação da energia solar. Se, em seu discurso, Agostinho ressaltou a maior segurança com a iluminação, a possibilidade de os jovens poderem estudar à noite e de as famílias se reunirem para ver televisão e “descobrirem mais sobre o que acontece do outro lado do mundo”, talvez ele tenha omitido a maior revolução que a energia solar trouxe: a mecanização do acesso à água.
Direito humano fundamental, reafirmado em uma resolução das Nações Unidas em julho do ano passado, a dificuldade do acesso à água e ao saneamento básico são entraves para Guiné-Bissau. Estimativas do governo apontam que menos da metade da população tem acesso à água potável e 18%, ao saneamento básico.
No centro de Bissa já havia um furo d’água, como os poços são chamados. Antes da energia solar, a coleta era manual. Mulheres e crianças investiam mais de cinco horas diárias no processo de amarrar uma corda a um balde, debruçar-se na borda do poço e puxar o balde de 5 litros para a superfície, erguê-lo sobre a cabeça e caminhar até suas casas. Hoje o processo é muito mais rápido e eficiente. Basta abrir a torneira e a água sai em abundância.
As mulheres garantem que os casos de diarreia diminuíram bastante, pois, segundo elas, com um fluxo maior, a água “vem mais pura”. Mulheres e crianças, responsáveis pelas visitas ao poço, têm mais tempo para se dedicar aos estudos e às brincadeiras, respectivamente. Em Bissa, há aulas no período da noite e os alunos e alunas podem agora voltar para suas casas com segurança, com os cinco postes de iluminação instalados.
A aposta na energia solar faz todo o sentido tanto do ponto de vista econômico quanto do socioambiental. A distribuição de energia pública é inexistente na zona rural do país e muito ineficiente nos centros urbanos. Quem tem dinheiro usa gerador movido a diesel, combustível importado e altamente poluente.
Mais do que recursos técnicos e financeiros, o caso de sucesso de Bissa deve-se, acima de tudo, à organização da comunidade. É a capacidade de se reinventar que tem feito o investimento surtir efeito e dar pistas de que a dependência externa tende a diminuir. (mais em reportagem “Ajuda em xeque”) A Associação Wluty, que significa “mudança” na língua africana pepel, é uma organização comunitária, criada para ser o principal ponto de apoio ao desenvolvimento da tabanca. Com o aumento da produção resultante do apoio técnico e financeiro do Fundo Ibas, os pais e as mães conseguem pagar mensalidades para a associação e garantem o acesso de suas crianças à escola e à creche.
A Wluty criou também o programa Mutualismo de Saúde, espécie de convênio médico para o tratamento nos centros de saúde. Para a associação, o pagamento pelos serviços que presta é questão de princípio, uma forma de evitar o assistencialismo. As sessões de cinema infantil, por exemplo, são pagas com castanhas-de-caju, principal produto agrícola do país.
Para a manutenção dos painéis solares, a associação criou um sistema de carregamento de celulares. Na sede da associação, 20 tomadas estão à disposição dos moradores, que pagam o equivalente a R$ 0,50 para recarregar as baterias. Os recursos são depositados em uma conta bancária e utilizados de acordo com a demanda de manutenção.
A comunidade autogere a segurança dos painéis para evitar casos de roubo, identificados em outras tabancas. Uma próxima etapa será também a canalização da água. E, se a organização continuar assim, muito em breve são os próprios moradores e moradoras que poderão contar em tempo real suas conquistas. A instalação de computadores com acesso à internet está no plano de ação da Wluty.
*Jornalista e mestre em relações internacionais e estudos de desenvolvimento. viveu um ano na Guiné-Bissau, onde trabalhou para o Programa de Fortalecimento do Estado de Direito e Segurança, do PNUD.