É fácil ser contra os “grandes” e a favor dos “pequenos”. mas e quando os “grandes” somos nós?
Faz pouco tempo, voltei da Chapada Diamantina, lugar que adotei como o mais lindo do mundo. A primeira vez que estive por lá foi em 1995. A partir daí, passei a frequentar regularmente a região, mas fazia sete anos que não pisava naquelas terras.
A Rua das Pedras, de Lençóis, que já foi a rua do comércio da cidade, agora é fechada para carros e desfila mesinhas nas suas calçadas e pisos de pedra. É tudo colorido feito a Vila Madalena de São Paulo – as toalhas das mesas, as plaquinhas do comércio, as roupas dos donos. Uma festa que enche os olhos e que me alegraria, facinha que sou para essa beleza de tecido de chita. Mas me entristece olhar para
essa rua hoje. A Rua das Pedras nunca foi colorida. Na minha lembrança, ela era cinza e amarelo.
Um cinza duro de pedra, um amarelo gasto do tempo. Não tinha ninguém sorrindo naquela rua. Seu Fulano, que perdeu o braço, tinha aquele olhar triste e terrivelmente doce, com seus cavalos e sua casinha vendendo garrafinhas de areia. Seu Sicrano sentava com olhar distante atrás do balcão de seu boteco, escuro, apertado e amontoado de garrafas empoeiradas em suas estantes.
Mas a Rua das Pedras tinha crianças, montes delas. E elas jogavam bola, num futebol cômico, considerando a ladeira que configura a rua. Começavam lá em cima, e vinham correndo, descendo e inventando o que podiam de futebol para respeitar aquele descidão. Era uma algazarra. Durante anos, se eu tinha vontade de chorar baixinho um choro contente de vida, eu repetia pra mim mesma aquela frase maravilhosa que escutei das crianças na Rua das Pedras: “Óia o diiiiiiiibre!”
Mas a Rua das Pedras de hoje tem menos crianças e, definitivamente, não dá mais para jogar futebol. Não com tantas mesas e tantas pessoas e tantas máquinas fotográficas e tantos cafés. Paramos em um, onde uma dona carioca sensualmente atenciosa nos ofereceu diversos tipos de bebidas, depois diversos tipos de açúcares,depois diversos tipos de xícaras. Tivemos que segurar a risada quando ela nos avisou que o café estava em “fase final de preparação”. E explodimos quando ela deu uma piscadela e fez um jogo de boca, sinalizando à distância que o suco de abacaxi também estava em fase final. Não, na Rua das Pedras da minha memória só tinha suco de maracujá-do-mato, adoçado ululantemente com açúcar União, num doce que fazia a gente quase desmaiar, mas gelado na medida em que segurava a gente em pé.
O guia que me levou pela primeira vez a tantos lugares lindos agora tem 30 anos. Ele tinha 15 quando o conheci. É inteligente, esperto, simpático. Mas está amargo, talvez por ter vivido nos últimos anos uma vida estranha – convivendo com turistas que ele chama de “amigos” e que o consideram um “amigo” – mas sem nem de longe ter amizade alguma com eles, a não ser a cervejinha após a trilha. O que será que passa na cabeça de um jovem que convive com tanta gente jovem, mas com tantas mais oportunidades que ele? O que o faz levantar da cama todos os dias para encontrar seus “amigos”, sabendo que esses amigos vão embora e que ele ficará lá? Não sei, mas os olhos e as conversas e o copo de cerveja às 10 da manhã deste meu “amigo” de 30 anos me fez pensar no quanto eu fiz mal a ele.
O jovem casal dono da pousada mais charmosa do meu passado não é mais tão jovem – nem tão charmoso. Parecem cansados da vida. A pousada parece menos cuidada, com a sensação de um entreposto de pessoas apenas. Contam histórias e mais histórias de violência e descaso público na cidade. Sempre contaram, é bem verdade. Mas algo mudou. A pousada agora é cercada, os quartos precisam ser trancados quando vamos tomar café da manhã. Os micos que vinham comer perto dos hóspedes continuam vindo. Mas eles, que sempre comeram banana crua e nada mais, agora se servem de banana cozida, de banana frita, do que vier. Assim como o guia, os donos da pousada e a Rua das Pedras, eles também estão driblando o tempo e as mudanças nessa cidade que um dia já foi deles.
Quanto a mim, trabalhei nos últimos quatro anos da minha vida com os impactos sociais e ambientais de grandes obras em municípios amazônicos. Aprendi muito me coloquei muitas vezes do lado de quem recebe um visitante indesejado e tem de se adaptar, a duras custas, a essa realidade. E agora, refletindo sobre minhas férias no lugar que sempre considerei o meu lugar mais lindo do mundo, dei-me conta, estarrecida, que sou eu também uma pequena grande obra – e isso não é um autoelogio.
*Pesquisadora do GVces e mestre em Desenvolvimento e meio ambiente pela london School of Economics and Political Science