Que as soluções para a crise ambiental global precisam ganhar velocidade já se sabe. Mas, apesar do desejo de transformação abrupta com tintas fortes, especialistas veem nas mudanças graduais o melhor cenário
A empresa Godrej and Boyce anunciou, em abril deste ano, que fecharia em definitivo suas portas. A última fabricante de máquinas de escrever do mundo produziu na Índia apenas mil peças, nos 12 últimos meses de sua história. A “insustentabilidade” do produto foi determinada pela criação dos computadores, cada vez mais populares a partir dos anos 1990. Pode-se dizer que, assim como as máquinas de escrever, as revoluções Francesa e Russa, por exemplo, marcaram guinadas que podem ser consideradas abruptas – e, nesses dois últimos casos, violentas – no curso da história.
Dentro do aspecto ambiental, o debate ao redor da economia verde remete às grandes transformações do passado. Esse processo levará ao desenvolvimento sustentável ou apenas marcará passo, até que os diversos setores da sociedade encontrem alguma saída mais honrosa para poupar um pouco o planeta da predação?
“Rupturas, entendidas como guinadas abruptas de direção, não vejo como positivas ou até mesmo boas. São muito perigosas, pois os efeitos são quase sempre imprevisíveis”, afirma Aerton Paiva, da consultoria Gestão Origami. Para o especialista, o clima de Fla-Flu ao redor do desenvolvimento sustentável é uma forma equivocada de abordar o problema.
“Mas, se temos condições de guinar em alguns temas, que guinemos. Nas outras situações, que sejamos focados, pragmáticos, em busca de uma solução”, diz Paiva. O consultor exemplifica itens que não podem ser tratados de forma gradual, ao contrário. “Existem assuntos da sustentabilidade que estamos mais do que calejados em saber como são e como se resolvem, como a relação promíscua entre empresas e partidos políticos no campo do financiamento de campanhas, ou então a propina para o guarda rodoviário”, afirma. Ele também lista nesse campo os limites às emissões, a redução do consumo energético e o rigor nos licenciamentos ambientais.
Do outro lado da linha desenhada por Paiva, existem itens que não são colocados nesse balaio, porque, embora gostássemos que tais mudanças ocorressem, não sabemos como fazer isso. E, portanto, precisamos nos debruçar mais sobre esses problemas para entender o melhor caminho. Nesse sentido, os exemplos que cita são vários.
Eles vão do uso do PVC para bolsas de sangue até a segurança alimentar, coisas das quais não se pode abrir mão. Passam por não conseguir declarar independência total do carro, pela falta de transporte público adequado, e chegam até as questões do uso da energia nuclear, da qual não podem prescindir os países que não tenham condições de seguir caminhos mais “limpos” e precisem de segurança energética.
Mas o próprio especialista ressalva que a escolha pelo caminho lento e gradual nem sempre é descolada da vontade de “ganhar tempo”. Ele toma como exemplo a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Uma saída direta e reta poderia ser a tributação da geração de lixo e a criação de um fundo para a regularização dos processos de tratamento dos resíduos, que crescem ano após ano.
Mas, ao contrário, a política foi conduzida pelo governo federal de forma ampla e abrangente. A seu ver, esse é um caso típico em que a velocidade reduzida é necessária para que não ocorram choques entre interesses políticos, o que inviabilizaria a aprovação da lei.
INOVAÇÕES SEM RUPTURA
O ambientalista Roberto Smeraldi, diretor da ONG Amigos da Terra – Amazônia Brasileira, também partilha da visão de que a transformação não precisa ser imposta por mudanças abruptas. O que não significa que o ritmo do processo atual o agrade. Para ele, a questão é que ainda se consideram as questões ambientais como custo.
“Existe um desdobramento grave que pode ocorrer com esse atraso que estamos vivendo. Se a sociedade não optar por colocar preço em certos processos – como o uso intensivo do carbono –, não será possível gerar investimento ao longo das cadeias” que leve à implementação lenta e gradual da chamada economia verde.
Se as medidas não forem tomadas enquanto houver tempo, Smeraldi teme que se passe direto para a fase da proibição, com o objetivo de se queimarem etapas, devido ao espaço curto de tempo. O atalho, para que as imposições não se antecipem às soluções ambientais, diz Smeraldi, é o que ele chama de “inovações sem rupturas”, que aumentem a eficiência do processo e, com isso, reduzam a dependência de recursos naturais. “Novidades que considerem a economia de ciclo fechado, a logística reversa, e por aí vai.”
Se a imprevisibilidade das grandes rupturas é descartada pelos especialistas consultados para esta reportagem, a palavra “inovação” é praticamente unanimidade.
Assim como Smeraldi, Carlos Eduardo Frickmann Young, economista e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é enfático em defender as inovações ambientais que, a seu ver, fazem parte dos processos normal de inovação da empresa.
Com base na análise de empregos e rendimentos – medida de crescimento que ele considera mais adequada que o PIB para expressar o bem-estar social –, o economista afirma que o crescimento espúrio, baseado na degradação dos recursos naturais, pode produzir um rendimento inferior às opções econômicas alternativas que concentrem a produção em bens de maior valor agregado e menos nocivos ao ambiente. “Mais contaminação e desgaste de recursos não conduzirão a um crescimento mais inclusivo, se não o contrário”, defende Young.
De acordo com Young, a competitividade das empresas dependerá cada vez mais do desempenho ecológico e de sua capacidade de inovação. “E o melhoramento desse setor não se dará graças às ‘forças naturais’ do mercado. É preciso que políticas públicas coerentes e dirigidas sejam implantadas.” A ruptura, para o professor, consiste em qualificar os investimentos públicos. “Não é qualquer gasto que é necessário. Mas aquele voltado para a melhora das questões ambientais e sociais”, diz. (mais sobre investimentos públicos e PAC)
PARAFERNÁLIA DE PROTOCOLOS
Se o setor privado tem função central nas transformações, como as empresas estão desempenhando seu papel? O consultor Giovanni Barontini, da Fábrica Éthica e um dos organizadores do Carbon Disclosure Project (CDP) [1] no Brasil, é incisivo: “O que elas estão fazendo pouco agrega na transformação da realidade”. Barontini argumenta que a ação empresarial ocorre apenas no que ele chama de um quarto da realidade. “A economia verde, para existir, precisa perpassar quatro quadrantes: o de fora e o de dentro das organizações, além dos de dentro (consciência) e de fora (cultura) dos indivíduos.” A fase atual, observa ele, é apenas a das ferramentas, “a da parafernália dos protocolos, códigos e indicadores”.
[1] Projeto em que empresas são convidadas a relatar seus inventários de emissão de carbono
Questionado se, no mundo real, as empresas podem mudar seus processos sem prejuízo aos seus negócios, o consultor segue a mesma linha de Young, da UFRJ. “Sem essas transformações, elas devem perder mais do que ganhar, dentro de cinco a dez anos.”
Mas, desta vez, a visão sobre o papel que o setor privado vem desempenhando está longe da unanimidade. “Não concordo com a afirmação de que as empresas são lentas para incorporar a sustentabilidade por mera decisão planejada e arquitetada por um grupo de líderes do mal”, diz Paiva, da Origami.
Com base em sua vivência nos últimos dez anos, em que vem lidando com grandes corporações, o consultor desenha um quadro aparentemente promissor, apesar de algumas ressalvas. “É verdade que tenho visto profissionais de sustentabilidade discutindo de forma ainda muito ideológica o problema, sem apresentar soluções viáveis. De que adianta falarmos em redução de consumo se isso se tem mostrado inviável nos últimos 20 anos? Como falar isso com um mundo que não para de crescer?”
Ao ver pouca ressonância entre o mundo dos desejos e a vida real, Paiva busca virar o jogo. “Quando apresentamos às empresas uma perspectiva de curto, médio e longo prazo, usando seu dialeto (econômico-financeiro), demonstrando que essas pressões (as externalidades) se voltarão contra elas, e ao mesmo tempo apresentando um plano de 40 anos com etapas muito claras, a compreensão muda.”
Ele conta que, nos dois últimos anos, existem empresas que assumiram metas claras, com definição de orçamento, que eram inimagináveis há cinco anos. “Não se pode dizer que essas corporações estão apenas tentando ganhar tempo (no sentido de usar a economia verde apenas para continuar crescendo de forma insustentável)”, afirma Paiva.[:en]Que as soluções para a crise ambiental global precisam ganhar velocidade já se sabe. Mas, apesar do desejo de transformação abrupta com tintas fortes, especialistas veem nas mudanças graduais o melhor cenário
A empresa Godrej and Boyce anunciou, em abril deste ano, que fecharia em definitivo suas portas. A última fabricante de máquinas de escrever do mundo produziu na Índia apenas mil peças, nos 12 últimos meses de sua história. A “insustentabilidade” do produto foi determinada pela criação dos computadores, cada vez mais populares a partir dos anos 1990. Pode-se dizer que, assim como as máquinas de escrever, as revoluções Francesa e Russa, por exemplo, marcaram guinadas que podem ser consideradas abruptas – e, nesses dois últimos casos, violentas – no curso da história.
Dentro do aspecto ambiental, o debate ao redor da economia verde remete às grandes transformações do passado. Esse processo levará ao desenvolvimento sustentável ou apenas marcará passo, até que os diversos setores da sociedade encontrem alguma saída mais honrosa para poupar um pouco o planeta da predação?
“Rupturas, entendidas como guinadas abruptas de direção, não vejo como positivas ou até mesmo boas. São muito perigosas, pois os efeitos são quase sempre imprevisíveis”, afirma Aerton Paiva, da consultoria Gestão Origami. Para o especialista, o clima de Fla-Flu ao redor do desenvolvimento sustentável é uma forma equivocada de abordar o problema.
“Mas, se temos condições de guinar em alguns temas, que guinemos. Nas outras situações, que sejamos focados, pragmáticos, em busca de uma solução”, diz Paiva. O consultor exemplifica itens que não podem ser tratados de forma gradual, ao contrário. “Existem assuntos da sustentabilidade que estamos mais do que calejados em saber como são e como se resolvem, como a relação promíscua entre empresas e partidos políticos no campo do financiamento de campanhas, ou então a propina para o guarda rodoviário”, afirma. Ele também lista nesse campo os limites às emissões, a redução do consumo energético e o rigor nos licenciamentos ambientais.
Do outro lado da linha desenhada por Paiva, existem itens que não são colocados nesse balaio, porque, embora gostássemos que tais mudanças ocorressem, não sabemos como fazer isso. E, portanto, precisamos nos debruçar mais sobre esses problemas para entender o melhor caminho. Nesse sentido, os exemplos que cita são vários.
Eles vão do uso do PVC para bolsas de sangue até a segurança alimentar, coisas das quais não se pode abrir mão. Passam por não conseguir declarar independência total do carro, pela falta de transporte público adequado, e chegam até as questões do uso da energia nuclear, da qual não podem prescindir os países que não tenham condições de seguir caminhos mais “limpos” e precisem de segurança energética.
Mas o próprio especialista ressalva que a escolha pelo caminho lento e gradual nem sempre é descolada da vontade de “ganhar tempo”. Ele toma como exemplo a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Uma saída direta e reta poderia ser a tributação da geração de lixo e a criação de um fundo para a regularização dos processos de tratamento dos resíduos, que crescem ano após ano.
Mas, ao contrário, a política foi conduzida pelo governo federal de forma ampla e abrangente. A seu ver, esse é um caso típico em que a velocidade reduzida é necessária para que não ocorram choques entre interesses políticos, o que inviabilizaria a aprovação da lei.
INOVAÇÕES SEM RUPTURA
O ambientalista Roberto Smeraldi, diretor da ONG Amigos da Terra – Amazônia Brasileira, também partilha da visão de que a transformação não precisa ser imposta por mudanças abruptas. O que não significa que o ritmo do processo atual o agrade. Para ele, a questão é que ainda se consideram as questões ambientais como custo.
“Existe um desdobramento grave que pode ocorrer com esse atraso que estamos vivendo. Se a sociedade não optar por colocar preço em certos processos – como o uso intensivo do carbono –, não será possível gerar investimento ao longo das cadeias” que leve à implementação lenta e gradual da chamada economia verde.
Se as medidas não forem tomadas enquanto houver tempo, Smeraldi teme que se passe direto para a fase da proibição, com o objetivo de se queimarem etapas, devido ao espaço curto de tempo. O atalho, para que as imposições não se antecipem às soluções ambientais, diz Smeraldi, é o que ele chama de “inovações sem rupturas”, que aumentem a eficiência do processo e, com isso, reduzam a dependência de recursos naturais. “Novidades que considerem a economia de ciclo fechado, a logística reversa, e por aí vai.”
Se a imprevisibilidade das grandes rupturas é descartada pelos especialistas consultados para esta reportagem, a palavra “inovação” é praticamente unanimidade.
Assim como Smeraldi, Carlos Eduardo Frickmann Young, economista e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é enfático em defender as inovações ambientais que, a seu ver, fazem parte dos processos normal de inovação da empresa.
Com base na análise de empregos e rendimentos – medida de crescimento que ele considera mais adequada que o PIB para expressar o bem-estar social –, o economista afirma que o crescimento espúrio, baseado na degradação dos recursos naturais, pode produzir um rendimento inferior às opções econômicas alternativas que concentrem a produção em bens de maior valor agregado e menos nocivos ao ambiente. “Mais contaminação e desgaste de recursos não conduzirão a um crescimento mais inclusivo, se não o contrário”, defende Young.
De acordo com Young, a competitividade das empresas dependerá cada vez mais do desempenho ecológico e de sua capacidade de inovação. “E o melhoramento desse setor não se dará graças às ‘forças naturais’ do mercado. É preciso que políticas públicas coerentes e dirigidas sejam implantadas.” A ruptura, para o professor, consiste em qualificar os investimentos públicos. “Não é qualquer gasto que é necessário. Mas aquele voltado para a melhora das questões ambientais e sociais”, diz. (mais sobre investimentos públicos e PAC)
PARAFERNÁLIA DE PROTOCOLOS
Se o setor privado tem função central nas transformações, como as empresas estão desempenhando seu papel? O consultor Giovanni Barontini, da Fábrica Éthica e um dos organizadores do Carbon Disclosure Project (CDP) [1] no Brasil, é incisivo: “O que elas estão fazendo pouco agrega na transformação da realidade”. Barontini argumenta que a ação empresarial ocorre apenas no que ele chama de um quarto da realidade. “A economia verde, para existir, precisa perpassar quatro quadrantes: o de fora e o de dentro das organizações, além dos de dentro (consciência) e de fora (cultura) dos indivíduos.” A fase atual, observa ele, é apenas a das ferramentas, “a da parafernália dos protocolos, códigos e indicadores”.
[1] Projeto em que empresas são convidadas a relatar seus inventários de emissão de carbono
Questionado se, no mundo real, as empresas podem mudar seus processos sem prejuízo aos seus negócios, o consultor segue a mesma linha de Young, da UFRJ. “Sem essas transformações, elas devem perder mais do que ganhar, dentro de cinco a dez anos.”
Mas, desta vez, a visão sobre o papel que o setor privado vem desempenhando está longe da unanimidade. “Não concordo com a afirmação de que as empresas são lentas para incorporar a sustentabilidade por mera decisão planejada e arquitetada por um grupo de líderes do mal”, diz Paiva, da Origami.
Com base em sua vivência nos últimos dez anos, em que vem lidando com grandes corporações, o consultor desenha um quadro aparentemente promissor, apesar de algumas ressalvas. “É verdade que tenho visto profissionais de sustentabilidade discutindo de forma ainda muito ideológica o problema, sem apresentar soluções viáveis. De que adianta falarmos em redução de consumo se isso se tem mostrado inviável nos últimos 20 anos? Como falar isso com um mundo que não para de crescer?”
Ao ver pouca ressonância entre o mundo dos desejos e a vida real, Paiva busca virar o jogo. “Quando apresentamos às empresas uma perspectiva de curto, médio e longo prazo, usando seu dialeto (econômico-financeiro), demonstrando que essas pressões (as externalidades) se voltarão contra elas, e ao mesmo tempo apresentando um plano de 40 anos com etapas muito claras, a compreensão muda.”
Ele conta que, nos dois últimos anos, existem empresas que assumiram metas claras, com definição de orçamento, que eram inimagináveis há cinco anos. “Não se pode dizer que essas corporações estão apenas tentando ganhar tempo (no sentido de usar a economia verde apenas para continuar crescendo de forma insustentável)”, afirma Paiva.