Alimento ancestral indígena consumido em situação de escassez e esquecido no tempo é pesquisado por cientistas a partir das inquietudes de um jovem de 17 anos que pode ganhar o Nobel do Ensino Médio nesta semana, nos Estados Unidos. O trabalho ajuda na valorização do conhecimento tradicional, inclusão de pequenos produtores e segurança alimentar, no contexto da “bioeconomia criativa” como enfrentamento à mudança climática
Cena um: Um campinho de futebol do sítio da família, na vizinhança de Manaus (AM), é transformado em Sistema Agroflorestal (SAF) com o objetivo de provar que é possível produzir alimentos em pequena área de solo pobre, como se caracterizam as terras da maioria dos ribeirinhos na Amazônia – e assim gerar renda e benefícios à nutrição. Na lista das espécies vegetais escolhidas pelo neto no projeto, a avó nota a presença de uma em especial, o ariá: “Comia bastante quando criança; nunca mais vi, décadas atrás havia muito nas feiras”. Como o alimento está associado ao conhecimento tradicional? Por que o consumo diminuiu? O que aconteceu?
Cena dois: O estudante manauara Eli Minev-Benzecry, 17 anos, é selecionado entre 800 expositores da tradicional feira de ciências Mostratec, a mais concorrida do País, em Novo Hamburgo (RS), com o prêmio de representar o Brasil na grandiosa Regeneron ISEF, nos Estados Unidos, em 2025. No evento científico global, meca das aspirações de jovens estudantes mundo afora, o trabalho amazônico em torno do esquecido ariá é candidato ao Nobel do Ensino Médio pela contribuição à segurança alimentar e enfrentamento da mudança climática.
O anúncio ocorrerá nesta sexta-feira, 16 de maio, mas seja qual for o resultado, a trajetória de pesquisas desde as perguntas no campinho de futebol até a atual expectativa do podium já é motivo de aplausos, no cenário brasileiro de apostas na bioeconomia. Um enredo de vários atores, histórias e descobertas, com o pano de fundo da tradição alimentar indígena, na qual o ariá se apresenta ao mundo.
“Descobrir a qualidade nutricional, as formas de uso e o potencial econômico foi decisivo no projeto, reforçando a relevância cultural do alimento”, afirma Minev.
O tubérculo amazônico, com consistência de uma batata e sabor próximo ao do milho verde, reunia lacunas de informação que intrigavam o estudante-pesquisador. E essa inquietude passou a ser pauta da ciência, depois que ele bateu à porta da bióloga Noêmia Ishikawa, cientista especializada em cogumelos nativos da região no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
Ela já havia orientado o trabalho do talentoso irmão de Minev – Samuel Minev-Benzecry – no desenvolvimento do Linklado, teclado digital que permite a escrita em 36 línguas indígenas. Brilhava um sinal positivo para a doutora em Micologia e escritora de livros infantojuvenis abraçar uma nova missão, agora com o ariá.
Alimento de 9 mil anos
Com participação ativa do jovem Minev, os pesquisadores iniciaram uma varredura de informações sobre a planta, a começar pela escuta a comunidades tradicionais. Foram intensas reuniões semanais de uma hora e meia, desde fevereiro de 2024, com pesquisas e revisão de artigos científicos, análises de laboratório, estudos agronômicos, visitas a feiras e outros trabalhos – descobertas que compõem o recém-lançado livro Ariá – Um Alimento de Memória Afetiva, publicado pela Editora Inpa em coedição com a Editora Valer.
Foram identificados diferentes nomes não-indígenas para o ariá em 20 países da América do Sul e Central. Em 19 povos indígenas da Pan-Amazônia, os pesquisadores encontraram referências de nomenclatura que variam conforme as diversas línguas.
Evidências arqueológicas
“Foi impressionante constatar evidências arqueológicas do ariá que remontam há 9 mil anos”, ressalta Ishikawa, coordenadora do projeto Diálogos Científicos Multiculturais da Sociobiodiversidade da Amazônia com Potencial Bioeconômico, que abrange as pesquisas com o ariá e tem Minev, ainda no Ensino Médio, como colaborador. O trabalho é financiado por edital do Programa de Pesquisa em Biodiversidade (PPBio), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
A presença de amido em peças cerâmicas da culinária ancestral dá pistas sobre essa antiguidade, reforçando a complexidade cultural no manejo das plantas pelos povos antepassados, conforme pesquisas do arqueólogo Eduardo Neves, da Universidade de São Paulo. Em 1535, o ariá esteve presente nos primeiros relatos dos espanhóis na ocupação das Antilhas, retratando a importância da planta na época.
Os registros científicos, porém, ocorrem desde o século XVIII, como a primeira descrição botânica da espécie, publicada em 1775 por Jean Baptiste Christophe Fusée-Aublet, na obra Histoire des Plantes de la Guiane Françoise. Após revisões ao longo da história, hoje o nome científico do ariá – ou lairém, como é chamado em regiões de língua espanhola – é Goeppertia allouia.
Na Amazônia brasileira, o alimento indígena foi substituído pela batata portuguesa no processo de colonização, mas ainda resiste vivo nos quintais, embora em quantidades bem menores para usos culturalmente erodidos no tempo.
“A tradição nas aldeias é o consumo do ariá como alternativa alimentar em dias de chuva, quando caça e pesca estão em baixa”, revela Tyson Ferreira, mestrando indígena do Programa de Pós-Graduação em Ecologia do Inpa. “Precisamos ressignificar e fortalecer o alimento não só para situações de dificuldade.”

Alto valor nutricional
No cenário amazônico, o motivo do esquecimento também está na valorização urbana do que chega de fora em lugar do produto regional, com reflexo na alteração de hábitos na troca por alimentos industrializados. Há, porém, boas razões para repensar o que ficou para trás – e isso é uma questão de saúde. Além do inegável aspecto cultural, uma maior valorização do ariá justifica-se pela importância nutricional dessas raízes que crescem no formato de touceiras nas roças.
Análise bioquímica realizada pelo projeto revela que esse alimento ancestral fornece os nove aminoácidos essenciais ao corpo humano – assim como peixes, carnes, ovos, cogumelos e a tradicional mistura de arroz e feijão, informa o livro, traduzido na língua Tukano por Rosilda Maria Cordeiro da Silva.
O ariá possui três aminoácidos a mais do que a mandioca, analisados neste projeto (isoleucina, fenilalanina e metionina). Ou seja, apresenta maior poder nutricional em relação à farinha, de alto consumo na Amazônia.
Além disso, diz Minev, a pesquisa do ciclo de vida mostra que o tubérculo é colhido principalmente entre julho e outubro, o que coincide com o período de seca na região amazônica, justamente a época de maior dificuldade para a chegada de alimentos mais diversificados às comunidades que ficam isoladas e vulneráveis à fome. A alternativa que já está lá na região, mas precisa ser disseminada, pode ajudar na segurança alimentar diante da necessidade de adaptação aos impactos da mudança climática.
Diante desses atributos, “por que temos tantas batatas e não ariá?”, questiona Ishikawa, à frente de uma equipe de 12 pesquisadores, inclusive indígenas.
Silvio Sanches Barreto, da etnia Bará, mestre e doutor em Antropologia Social, não tinha qualquer referência sobre o tubérculo até mostrar fotos para a mãe e os mais velhos da comunidade, no Alto Rio Negro, no Amazonas.
“Eles comiam na infância quando o pai não conseguia caçar ou pescar e a mãe buscava a solução na roça como subsistência”, conta Barreto. “Era um alimento consumido na dificuldade para variar o prato: às vezes, em suas roças, as mulheres ‘pescavam’ melhor que os homens nos rios”.
A expectativa do indígena é aproveitar a visibilidade do trabalho de pesquisa para empreender um negócio junto com a mãe e a esposa na cidade, visando à produção de bebida alcoólica fermentada a partir do ariá, também uma tradição nas aldeias. “A nossa visão de sustentabilidade prevê caminhos de suprir necessidades”, explica Barreto, na esperança de que as famílias voltem agora a plantar como meio de sustento econômico, além da identidade cultural.
“O ariá não desapareceu, mas ficou adormecido nos roçados e precisa despertar”, ilustra Tyson Ferreira, pesquisador indígena Sateré-Mawé, do Rio Andirá, em Barreirinha (AM). O alimento, conhecido pela etnia como awyato sa’ara, tinha maior uso pelos bisavós junto ao cará, mandioca e batata.
“Após nossa pesquisa, devido ao fácil plantio, cada família já tem uns 20 pés nas aldeias”, diz Ferreira, ao destacar a “crocância suculenta” da iguaria. Na visão dele, com maior valorização cultural e econômica, a tendência é o alimento se afastar do rótulo como “comida de ‘panema’” – expressão indígena de significados vários, como azarado, não afortunado, caçador ou pescador infeliz.
Continuidade ao legado do bisavô
Não faltam motivos para o ariá sair deste lugar e adquirir status de orgulho para indígenas e ribeirinhos, na medida em que a ciência se alia ao conhecimento tradicional para requalificar o alimento pela segurança nutricional e fonte de renda que mantém a floresta em pé.
“Nós, pesquisadores, já podíamos ter feito esse trabalho, mas precisou vir um rapaz de 17 anos nos estimular com seus questionamentos”, brinca Ishikawa, doutora dedicada ao estudo de cogumelos nativos indígenas que têm conquistado maior reconhecimento e visibilidade.
Com o apoio da cientista, Minev dá continuidade ao histórico da família de origem judaica-marroquina, marcado pelo movimento visionário do bisavô – o economista e escritor Samuel Benchimol (1923-2002), que há mais de 50 anos falava da necessidade de o mundo valorizar os benefícios ambientais da floresta amazônica.
“O ariá está ligado a essa crença no futuro sustentável da região, a qual tenho orgulho de continuar”, ressalta Eli Minev. A mãe, Ilana Minev, e o tio, Denis Minev, à frente do Grupo Bemol – uma das maiores redes de varejo do Amazonas – ocupam espaços de liderança no apoio à inovação e empreendedorismo na região.
O plano dos pesquisadores com o ariá é ir além e transpor os muros dos institutos de pesquisa e universidades. Ruby Vargas-Isla, engenheira agrônoma peruana radicada há 19 anos em Manaus, uma das orientadoras das pesquisas, já plantou a espécie no projeto Hortas Urbanas, realizado em parceria com o Centro de Produção Orgânica do Amazonas (Cenpoam), na capital amazonense.
O objetivo é montar um banco com sementes de nove regiões diferentes para fornecer mudas à população. “Na medida em que a demanda aumenta, há mais chances de chegar aos supermercados e não somente a feiras orgânicas como hoje”, diz Vargas-Isla, que comia ariá com a avó, em Iquitos, no Peru, e plantou uma moita no sítio para matar a saudade.
Ela vê potencial para o alimento ganhar fama pelas mãos de chefs de cozinha influentes nas tendências da gastronomia, a exemplo das criações de Alex Atala (restaurantes D.O.M e Dalva & Dito, em São Paulo) e Débora Shornik (restaurante Caxiri, em Manaus), exibidas no livro.

A “bioeconomia criativa” conecta diversidade cultural, inovação e uso sustentável da floresta – e dá a largada no caminho de Minev relacionado ao futuro da Amazônia. Com projeto de mergulhar profissionalmente no campo da economia e bioengenharia, o próximo passo – diz o estudante – é aplicar até dezembro para ingresso em faculdades americanas. Retornar o conhecimento em benefício da Amazônia é um plano inevitável. Que as conexões da Regeneron ISEF, nesta semana, nos Estados Unidos, tragam inspirações e novas histórias a contar.
Leia também a primeira reportagem da série Bioeconomia Criativa.