Rotas de fuga existem e mostram que há vida inteligente fora do simples ato de comprar, comprar, comprar.
POR MARIA LUTTERBACH*
O termômetro em Barcelona marca 5 graus e eu quero crer na propaganda de uma loja que já promete a chegada da primavera. Como manda o calendário da moda, a próxima estação aparece na vitrine dois meses antes das primeiras flores. E as pessoas correm às compras, já que também é época de liquidações. Vai ver que, arrematando um vestido novo, conseguem se distrair um pouco do vento gelado.
Com ou sem crise, os espanhóis compram aos montes durante as “rebajas”, como são chamadas aqui as temporadas de promoção. Uma amiga, que não resistiu e voltou da rua carregada de novidades nas sacolas, me oferece uma pilha de roupas usadas das quais vai se desfazer. Pergunto por que ela abre mão de peças tão novas, algumas ainda com etiqueta. “Custam 3, 4 euros cada uma. Quando você começar a comprar, vai entender”, explica. Ponto para a indústria da moda. E para mim, que reabasteço o guarda- roupa sem colaborar diretamente com essa frenética e suspeitíssima cadeia de produção de desejos.
Afinal, todo mundo sabe que uma peça de roupa não pode sair tão barata impunemente. E o recente escândalo sobre trabalho escravo de imigrantes na multinacional Zara em São Paulo é só uma pérola desse colar de muitas voltas. Não é simples escapar do ciclo, mas as rotas de fuga existem e provam que dá para consumir com menos histeria e mais consciência. Bom exemplo é o que não falta.
Um primeiro passo para repensar nossos hábitos como consumidores é aderir à compra de itens de segunda mão. Garimpando, dá para encontrar muito do que a gente precisa em bom estado e muito mais barato. Isso ainda significa deixar de comprar coisas novas, que demandariam matéria prima, C02 e trabalho – às vezes ilegal – para serem produzidas e chegarem até você.
Aqui em Barcelona, as feiras de usados costumam acontecer nas ruas, de um jeito bem improvisado. Quem quer levar mercadorias se cadastra antes e, no dia combinado, é só chegar e expor. Conheci uma dessas no bairro do Raval há uns três meses, quando ia a Berlim, e me dei conta de que não tinha roupa para enfrentar o frio de lá, este, sim, para valer. Com algumas moedas resolvi meu problema e ainda ajudei quem estava ali a voltar com menos coisas (e uns trocados a mais) para casa.
Mas foi só caminhando por Berlim que entendi como a cultura de reaproveitamento e consumo responsável pode realmente fazer a diferença em uma cidade. As lendárias casas ocupadas, utilizadas como estúdios por artistas e profissionais liberais, são apenas a faceta mais divulgada de uma postura que se reflete em todos os cantos. Seja nos próprios mercados de rua, como o dominical Mauerpark, em Prenzlauer Berg, seja nas chamadas cozinhas populares (Volksküche), onde são servidas refeições vegetarianas ou veganas por cerca de 1 euro.
Está claro que a capacidade berlinense para reciclar e economizar tem a ver com a escassez enfrentada em tempos difíceis. Para ficar com um só exemplo, as “mulheres dos escombros” (Trümmerfrauen) entraram para a história da Alemanha ao fazer uma gigantesca faxina nas cidades arrasadas pela Segunda Guerra. Em cima dos montes de escombros, elas separavam tijolos e outros materiais que seriam reaproveitados na reconstrução dos edifícios.
Hoje, é difícil entrar em um bar, loja ou restaurante da capital germânica que não guarde essa memória de reutilização – e a onda vintage reforça a tendência. A prática também se dissemina entre jovens estilistas e designers adeptos do upcycling, processo de transformar resíduos e objetos descartados em novos produtos com valor agregado. Em Berlim há várias marcas, como a Milch, que desenha roupas e acessórios a partir de restos de tecidos e aviamentos. Além de usar materiais que já estão em circulação, esses coletivos de moda têm em comum o repúdio à fabricação de roupa em massa. [1]
[1] Sobre upcycling de roupas em Berlim, visite semidomesticated.com e upcycling-fashion.
Uma resposta brasileira ao consumo exagerado e à especulação são feiras de troca como a do Centro de São Paulo, ou a realizada pelo Cineclube Socioambiental.
Às vezes, as trocas são feitas diretamente – uma planta por um corte de cabelo – e, em outras, é usada uma moeda que só tem valor dentro do evento. Nesse contexto, o consumidor vira também produtor, o que facilita o entendimento sobre cooperação e reciprocidade. Quem não quer participar de uma feira grande tem como opção o velho e bom bazar entre amigos, que rende no mínimo uma boa limpeza nos armários.
Por falar em desapego, outra prática de Barcelona que merece ser replicada é o “Dia dos Trastes”. Em dias alternados, moradores de determinada região da cidade deixam roupas, móveis e outros objetos nas ruas e quem passa pode levar o que quiser – ou o que puder carregar. Toda semana eu ganho um livro “novo” nessa brincadeira e, na última, achei uma estante que agora virou a casa deles. Sim, dá para ficar contente com pouco – e desse jeito é bem mais civilizado.
* JORNALISTA, ESTUDA EDIÇÃO DE LIVROS EM BARCELONA
[:en]Rotas de fuga existem e mostram que há vida inteligente fora do simples ato de comprar, comprar, comprar.
POR MARIA LUTTERBACH*
O termômetro em Barcelona marca 5 graus e eu quero crer na propaganda de uma loja que já promete a chegada da primavera. Como manda o calendário da moda, a próxima estação aparece na vitrine dois meses antes das primeiras flores. E as pessoas correm às compras, já que também é época de liquidações. Vai ver que, arrematando um vestido novo, conseguem se distrair um pouco do vento gelado.
Com ou sem crise, os espanhóis compram aos montes durante as “rebajas”, como são chamadas aqui as temporadas de promoção. Uma amiga, que não resistiu e voltou da rua carregada de novidades nas sacolas, me oferece uma pilha de roupas usadas das quais vai se desfazer. Pergunto por que ela abre mão de peças tão novas, algumas ainda com etiqueta. “Custam 3, 4 euros cada uma. Quando você começar a comprar, vai entender”, explica. Ponto para a indústria da moda. E para mim, que reabasteço o guarda- roupa sem colaborar diretamente com essa frenética e suspeitíssima cadeia de produção de desejos.
Afinal, todo mundo sabe que uma peça de roupa não pode sair tão barata impunemente. E o recente escândalo sobre trabalho escravo de imigrantes na multinacional Zara em São Paulo é só uma pérola desse colar de muitas voltas. Não é simples escapar do ciclo, mas as rotas de fuga existem e provam que dá para consumir com menos histeria e mais consciência. Bom exemplo é o que não falta.
Um primeiro passo para repensar nossos hábitos como consumidores é aderir à compra de itens de segunda mão. Garimpando, dá para encontrar muito do que a gente precisa em bom estado e muito mais barato. Isso ainda significa deixar de comprar coisas novas, que demandariam matéria prima, C02 e trabalho – às vezes ilegal – para serem produzidas e chegarem até você.
Aqui em Barcelona, as feiras de usados costumam acontecer nas ruas, de um jeito bem improvisado. Quem quer levar mercadorias se cadastra antes e, no dia combinado, é só chegar e expor. Conheci uma dessas no bairro do Raval há uns três meses, quando ia a Berlim, e me dei conta de que não tinha roupa para enfrentar o frio de lá, este, sim, para valer. Com algumas moedas resolvi meu problema e ainda ajudei quem estava ali a voltar com menos coisas (e uns trocados a mais) para casa.
Mas foi só caminhando por Berlim que entendi como a cultura de reaproveitamento e consumo responsável pode realmente fazer a diferença em uma cidade. As lendárias casas ocupadas, utilizadas como estúdios por artistas e profissionais liberais, são apenas a faceta mais divulgada de uma postura que se reflete em todos os cantos. Seja nos próprios mercados de rua, como o dominical Mauerpark, em Prenzlauer Berg, seja nas chamadas cozinhas populares (Volksküche), onde são servidas refeições vegetarianas ou veganas por cerca de 1 euro.
Está claro que a capacidade berlinense para reciclar e economizar tem a ver com a escassez enfrentada em tempos difíceis. Para ficar com um só exemplo, as “mulheres dos escombros” (Trümmerfrauen) entraram para a história da Alemanha ao fazer uma gigantesca faxina nas cidades arrasadas pela Segunda Guerra. Em cima dos montes de escombros, elas separavam tijolos e outros materiais que seriam reaproveitados na reconstrução dos edifícios.
Hoje, é difícil entrar em um bar, loja ou restaurante da capital germânica que não guarde essa memória de reutilização – e a onda vintage reforça a tendência. A prática também se dissemina entre jovens estilistas e designers adeptos do upcycling, processo de transformar resíduos e objetos descartados em novos produtos com valor agregado. Em Berlim há várias marcas, como a Milch, que desenha roupas e acessórios a partir de restos de tecidos e aviamentos. Além de usar materiais que já estão em circulação, esses coletivos de moda têm em comum o repúdio à fabricação de roupa em massa. [1]
[1] Sobre upcycling de roupas em Berlim, visite semidomesticated.com e upcycling-fashion.
Uma resposta brasileira ao consumo exagerado e à especulação são feiras de troca como a do Centro de São Paulo, ou a realizada pelo Cineclube Socioambiental.
Às vezes, as trocas são feitas diretamente – uma planta por um corte de cabelo – e, em outras, é usada uma moeda que só tem valor dentro do evento. Nesse contexto, o consumidor vira também produtor, o que facilita o entendimento sobre cooperação e reciprocidade. Quem não quer participar de uma feira grande tem como opção o velho e bom bazar entre amigos, que rende no mínimo uma boa limpeza nos armários.
Por falar em desapego, outra prática de Barcelona que merece ser replicada é o “Dia dos Trastes”. Em dias alternados, moradores de determinada região da cidade deixam roupas, móveis e outros objetos nas ruas e quem passa pode levar o que quiser – ou o que puder carregar. Toda semana eu ganho um livro “novo” nessa brincadeira e, na última, achei uma estante que agora virou a casa deles. Sim, dá para ficar contente com pouco – e desse jeito é bem mais civilizado.
* JORNALISTA, ESTUDA EDIÇÃO DE LIVROS EM BARCELONA